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Registro digital do voto

Por: Carlos Rogério Camargo

1 Introdução

Assegurar que a vontade soberana do eleitor não possa ser revelada em nenhuma circunstância é um dos princípios fundamentais do modelo democrático moderno. Por essa razão, ao longo do último século foram criadas diversas cautelas para garantir que a manifestação do eleitor – registrada em cédula de papel – não fosse revelada. A principal medida de segurança adotada consistia em restringir a manipulação da cédula em papel ao momento do escrutínio no exígüo período de tempo necessário ao seu cômputo, após o que deveria ser guardada e posteriormente destruída (CE, art. 185, verbis):

Art. 185. Sessenta dias após o trânsito em julgado da diplomação de todos os candidatos eleitos nos pleitos eleitorais realizados simultaneamente e prévia publicação de edital de convocação, as cédulas serão retiradas das urnas e imediatamente incineradas, na presença do Juiz Eleitoral e em ato público, vedado a qualquer pessoa, inclusive ao Juiz, o seu exame na ocasião da incineração. (Redação dada pela Lei. n. 6.055, de 17.6.1974) [grifei].

Mais grave ainda do que a possibilidade de revelar o voto de um eleitor – ou como corolário necessário desse fato – é o risco de que a publicidade das cédulas enseje a manipulação da vontade dos eleitores por meio de coação ou suborno. Como se demonstrará neste documento, a divulgação do conjunto dos votos de uma seção eleitoral possibilitaria, em algumas circunstâncias, o controle antecipado do resultado da votação em benefício de um grupo de candidatos – não necessariamente de um mesmo partido –, que, associados, teriam meios de conduzir o resultado da eleição.

Esse problema ganha dimensão inteiramente nova com a automação do voto e o seu armazenamento (Lei n. 9.504, art. 59, § 4º, verbis):

§ 4º A urna eletrônica disporá de recursos que, mediante assinatura digital, permitam o registro digital de cada voto e a identificação da urna em que foi registrado, resguardado o anonimato do eleitor. (Redação dada pela Lei n. 10.740, de 1º.10.2003). [grifei].

Em outras palavras, a partir das eleições/2004, no sistema eletrônico foi criado um mecanismo que mimetiza o processo de votação manual por meio do registro do voto em meio magnético, criando uma metáfora digital da “cédula”. Com isso, retorna a discussão sobre a criação das necessárias cautelas para limitar o acesso público ao conteúdo dos votos, semelhante àquelas existentes para as cédulas em papel, a fim de eliminar os riscos de que sejam maculados os resultados das eleições.

2 Registro da votação em cédula

O sistema político moderno estabeleceu como princípio da democracia o sufrágio universal, direto e secreto (1), sendo, portanto, o sigilo do voto uma das suas garantias fundamentais. No entanto, na prática esse princípio é de enorme dificuldade de implementação, precisamente por que a cédula em papel era elemento indispensável para registrar a manifestação do eleitor. Por meio dela, foram desenvolvidas diversas estratégias com o objetivo de obter algum controle do processo eleitoral.

Assim, ao longo do tempo, ficaram evidenciadas várias circunstâncias em que esse princípio ficava em risco como conseqüência da existência da cédula. Por isso, foram desenvolvidas diversas contramedidas universalmente aceitas para preservar a privacidade do voto, dentre as quais destacam-se:

  • cédula oficial (2) : adotada uma cédula-padrão pela autoridade eleitoral constituída, acrescida da rubrica dos mesários, com o fim de não permitir a identificação do documento utilizado para o registro do voto (CE, art. 103, I e III);
  • cabina indevassável: lugar isolado na seção eleitoral assegurado ao eleitor para o registro do seu voto na cédula (CE, art. 103, II);
  • urna para a guarda das cédulas: urna na qual o eleitor deposita seu voto, com a cautela de que “seja suficientemente ampla para que não se acumulem as cédulas na ordem em que foram introduzidas” (CE, art. 103, IV);

Encerrada a recepção dos votos, durante o escrutínio, eram adotadas medidas complementares com o mesmo fim de preservar o sigilo do voto:

  • lacracão das urnas após o escrutínio: encerrada a contagem dos votos, as cédulas devem ser guardadas na urna, que é lacrada e assim mantida até o trânsito em julgado da diplomação dos eleitos (CE, art. 183);
  • destruição das cédulas: sessenta dias após o prazo de trânsito em julgado da diplomação dos eleitos, todas as cédulas devem ser incineradas, em ato público, vedado a qualquer pessoa, inclusive ao juiz, o seu exame (CE, art. 185 e parágrafo único).

Todas essas providências foram resultado de aperfeiçoamentos criados ao longo do tempo para corrigir diversos episódios em que se verificou a violação do princípio do sufrágio universal e secreto. Todavia, mesmo com esses cuidados, em algumas circunstâncias, o conhecimento da composição completa do voto – ainda que somente durante o escrutínio –, poderia ser utilizado como forma de identificar o voto do eleitor.

A situação mais comum, que caracterizava o chamado “voto cabresto”, era a de verificar a existência de um número conhecido de votos (tipicamente um) atribuído a um determinado candidato em uma dada seção eleitoral. Durante o escrutínio, se fosse localizada a cédula esperada, também tornava-se evidente o voto do eleitor nos demais cargos. Exemplos típicos são as cédulas com votos atribuídos a um candidato por sua esposa, seus filhos, seus pais, seus empregados, etc., que, quando identificados no escrutínio, revelavam os votos atribuídos por esses eleitores nos demais cargos.

Essa situação era gravíssima, em especial nos municípios menores, vilas ou bairros, nos quais há um pequeno número de eleitores nas seções eleitorais e onde existem fortes vínculos entre as pessoas, além de intrínsecas relações de poder.

Com a votação eletrônica, a publicação tão-somente do boletim de urna contendo o resultado final da votação na seção eleitoral eliminou esse problema, pois os votos de cada eleitor ficavam dispersos entre os diversos candidados. Todavia, com a criação da “cédula digital”, retornam todos os riscos da condução do voto dos eleitores, potencializados agora pela enorme capacidade de processamento que a informática oferece.

3 Condução do voto

O requisito para a condução do voto do eleitor pelos candidatos interessados na fraude é que seja possível a produção de pelo menos um voto distinguível de todos os demais em um conjunto enumerável de votos. Em outras palavras, que seja possível “garantir” pelo menos um voto com uma determinada combinação. Assim, uma vez obtido os arquivos que contêm o conjunto dos votos de cada seção eleitoral, em algumas circunstâncias, como se verá a seguir, é possível inferir o voto de cada eleitor. Sendo possível conhecer cada voto, deduz-se que é também viável a condução dos votos de amplo conjunto de eleitores, por meio de coação ou suborno.

Como conseqüência, para beneficiar um grupo de candidatos, basta que se produzam cédulas com a combinação de votos atribuídos aos membros desse grupo, de modo que a soma dos votos obtidos contribua para a formação da legenda ou para a eleição de um dado candidato a cargo majoritário. Dessa forma, ficaria assegurada uma quantidade mínima de votos por seção eleitoral para aquela legenda ou candidato. Para ilustrar, suponhamos que 20 candidatos, distribuídos como segue, estejam interessados em controlar os votos dos eleitores:

  • a) cargo A: três candidatos (a1, a2 e a3);
  • b) cargo B: sete candidatos (b1, b2, ..., b7);
  • c) cargo C: dez candidatos (c1, c2, ..., c10).

Com esses candidatos, podem ser produzidas as seguintes combinações válidas de votos:

  • cédula 1: votos em a1, b1, c1;
  • cédula 2: votos em a1, b1, c2;
  • cédula 3: votos em a1, b1, c3;
  • ... e assim por diante até...
  • cédula ‘n’: votos em a3, b7 e c10.

É fácil ver que o número de cédulas distintas que podem ser produzidas em uma seção eleitoral é o produto do número de candidatos em cada cargo. No exemplo, tem-se: 3 (cargo A) * 7 (cargo B) * 10 (cargo C) ou 210 cédulas distintas. Isso corresponderia à maioria das cédulas de quase todas as seções eleitorais instaladas, em particular nos municípios menores. Mais grave, admitida a existência de mais do que uma cédula com a mesma composição, esse número de votos “controláveis” fica ainda maior. Nesse caso, são produzidos votos iguais, em uma quantidade limitada, conveniente aos interesses de quem pretende controlar a votação.

É fácil concluir, portanto, que um grupo relativamente restrito de candidatos, com os recursos e meios necessário, por meio de coação ou suborno, poderia exercer o pleno controle do processo de votação, se admitido o acesso ao conteúdo das cédulas armazenadas em meio digital.

Frise-se que esse procedimento seria incomparavelmente mais eficaz que os arcaicos meios de controle do voto por cédulas de papel, o qual implicava a alocação de ampla equipe de fiscais distribuídos nas diversas mesas escrutinadoras, acompanhando o anúncio de cada cédula. Uma vez obtido o arquivo que contém o conjunto dos votos digitais por seção eleitoral em meio magnético, essa tarefa é praticamente automática.

As circunstâncias que afetam o alcance na condução ou identificação dos votos dos eleitores dependem dos seguintes fatores:

  • número de eleições simultâneas: quantidade de cargos em disputa, cuja votação ocorre no mesmo momento (e.g. prefeito e vereador; presidente, governador, senador, deputado estadual e federal, etc.);
  • número de candidatos inscritos para cada cargo: o número de candidatos de segmentos políticos com interesses afins, integrantes ou não de uma mesma legenda ou coligação, que possuam interesses políticos convergentes.

Quanto maior o número de eleições simultâneas e de candidatos envolvidos, mais facilmente poderá ser exercido o controle do conteúdo de cada voto.

4 Registro do voto em mídia magnética

Com o registro digital de cada voto como metáfora da cédula em papel, conforme determina a norma vigente, foram adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral medidas com o fim de preservar a inviolabilidade do sigilo do voto do eleitor (3). Somente poderão ser entregues aos eventuais interessados o conteúdo das cédulas para as eleições em municípios com eleitorado superior a 5 mil, porém sem a identificação da seção eleitoral. Os arquivos originais retirados da urna eletrônica, os quais contêm a identificação da seção eleitoral, ficam sob a guarda da Justiça Eleitoral e poderão ser destruídos 60 dias após o trânsito em julgado da eleição (Res. TSE n. 21.635, art. 62, § 4º).

Destaca-se, todavia, que há muitas diferenças entre o armazenamento do voto com suporte em papel e o magnético, entre as quais se destaca a possibilidade de que o dado em meio magnético seja facilmente copiado, não sendo possível, após sua distribuição, garantir a sua destruição, tal como ocorre com as cédulas após o trânsito em julgado da diplomação dos candidatos eleitos. Ainda, diferentemente da cédula em papel, uma vez copiado os dados digitais, não é possível distinguir entre “cópia” e “original”. Por fim, a operação de cópia de mídias magnéticas é virtualmente instantânea, em oposição à cópia do papel, que é incomparavelmente mais lenta. Com isso, a multiplicação de arquivos em meio magnético pode ocorrer aos milhares em uma fração mínima de tempo, se utilizados os recursos de rede de computadores e tecnologias Internet.

5 Considerações finais

Assim, ficam evidenciados os riscos decorrentes da criação do voto digital, uma vez que o eventual conhecimento público do conteúdo integral das cédulas pode vir a ofender o princípio do sigilo do voto. Por isso, os cuidados adotadas pela Justiça Eleitoral nas eleições/2004, de não permitir a identificação das seções eleitorais e de promover a destruição do “cédulas digitais” após o pleito, são fundamentais à preservação da legitimidade das eleições. Com isso, evitar-se-á que grupos com grande poder econômico possam vir a conduzir antecipadamente o resultado das eleições.

Claramente a solução mais adequada, do ponto de vista da preservação do princípio do sigilo do voto, foi aquela adotada nas eleições informatizadas realizadas entre 1998 e 2002, de não se fazer qualquer registro do voto, seja impresso ou digital. A existência da cédula em papel era uma contingência histórica, uma vez que não se conhecia outro meio eficaz e economicamente viável de colher a manifestação do eleitor. No entanto, com a urna eletrônica, essa limitação deixou de existir e o voto passou a ser computado imediatamente após sua confirmação. Naquele modelo, o voto só existia e ficava exposto na tela da urna eletrônica no átimo de tempo necessário à sua confirmação pelo eleitor, após o que era eliminado.

A Justiça Eleitoral desenvolveu diversas rotinas e procedimentos eficazes para garantir a plena segurança do pleito, dentre os quais se destacam: a) o conhecimento prévio dos programas pelos partidos políticos; b) os mecanismos de assinatura digital de todos os sistemas envolvidos; c) as cautelas de publicidade dos procedimentos de configuração dos equipamentos e de lacração das urnas eletrônica; d) o funcionamento da urna eletrônica nos restritos intervalos de tempo de votação, sob a fiscalização dos partidos políticos e, por fim, e) a ampla e imediata publicidade dos resultados da votação. O conjunto dessas providências, adotadas naquele período, demonstrou serem suficientes para garantir a inviolabilidade do resultado das eleições.

Notas

1 O princípio do sigilo do voto é considerado por alguns doutrinadores como um direito indisponível da cidadania. Isso significa que, em tese, nem mesmo o eleitor pode renunciar a esse direito.

2 A cédula oficial somente foi adotada no Brasil a partir de 1955 (Lei de 30 de agosto de 1955).

3 Resolução TSE n. 21.744 (Instrução n. 79), de 11de maio de 2004.

Analista Judiciário do TRESC. Bacharel em Ciências da Computação.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 11, n. 2 (jul./dez. 2004).

 

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