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Íntegra

Quitação militar e direitos políticos

Por: Fabrício Veiga dos Santos

1 Introdução

A quitação militar é documento essencial para comprovação do gozo dos direitos políticos, em conformidade com o art. 15, IV, da Constituição Federal de 1988. Mas existem situações em que os brasileiros do sexo masculino não cumprem com as obrigações militares constitucionalmente previstas, nem com a prestação alternativa, de acordo com o previsto no art. 5º, VIII, da Constituição Federal, o que lhes ocasiona, então, a suspensão dos direitos políticos. O presente estudo busca elucidar, com base na legislação e na doutrina pátria, eventuais dúvidas que possam surgir no atendimento daqueles que não cumpriram com suas obrigações militares e tiveram a suspensão de seus direitos políticos declarada pelo Ministério da Justiça.

2 Dos direitos políticos

O capítulo IV do Título II da Constituição Federal, em especial no seu art. 14, trata dos direitos políticos no Brasil. Alexandre de Moraes (2002, p. 232) conceitua que direitos políticos

É o conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular conforme preleciona o caput do art. 14 da Constituição Federal. São direitos públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis, permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da cidadania.

O referido artigo constitucional proíbe a cassação de direitos políticos, que consiste na privação, por meio de ato administrativo, sem a observância do contraditório e da ampla defesa. Porém, a Constituição autoriza a suspensão e a perda de tais direitos.

Dentre as incidências descritas no art. 15 da CF, é considerado como causa de perda de direitos políticos o cancelamento de naturalização por sentença transitada em julgado (alínea “a”). Por ser a nacionalidade condição primária para o exercício dos direitos políticos, a perda da nacionalidade acarreta, por consequência, a perda dos direitos políticos.

Thales Tácito Pontes de Pádua Cerqueira afirma que, lastreado no entendimento dominante no Tribunal Superior Eleitoral, são consideradas, hoje, no Brasil, duas hipóteses de perda de direitos políticos: a) cancelamento da naturalização por sentença judicial transitada em julgado, tendo como causa o exercício de atividade nociva ao interesse social, sendo possível sua reaquisição apenas por meio de ação rescisória, e b) perda da nacionalidade por adquirir nova nacionalidade, salvo nas hipóteses previstas, como o reconhecimento de nacionalidade pela lei estrangeira ou imposição de naturalização a brasileiro residente em outro Estado, como condição de permanência em seu território ou para exercício de prerrogativas civis (CERQUEIRA, 2006, t. 1, p. 225), sendo readquirida apenas por ato do presidente da República, podendo o beneficiado, então, realistar-se como eleitor.

As demais causas constantes do rol do art. 15 da CF são causas de suspensão de direitos políticos. Importante frisar que nas causas de suspensão de direitos políticos, cessada a causa impeditiva, cessa a suspensão, cabendo, então, o restabelecimento.

Suspendem-se os direitos políticos nos casos de:

a) incapacidade civil absoluta;

b) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

c) improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º, da CF, e

d) recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII, da CF.

A obrigação constante do art. 143 da CF (serviço militar obrigatório aos brasileiros do sexo masculino que completem 18 anos de idade até 31 de dezembro) é a mais comum obrigação legal a todos imposta, cuja recusa em cumpri-la, cumulada com o não cumprimento de prestação alternativa, suspende os direitos políticos e é o escopo do presente trabalho.

3 Da obrigação do art. 143 da CF

Regulamentado pelas Leis n. 4.375/1964 e n. 8.239/1991, o art. 143 da Constituição traz a obrigação referente ao serviço militar, imposta aos brasileiros do sexo masculino que completem 18 anos de idade até 31 de dezembro de cada ano.

A obrigação militar inicia no dia 1º de janeiro do ano em que a pessoa completar 18 anos de idade e persiste até 31 de dezembro do ano em que completar 45 (quarenta e cinco) anos (art. 5º da Lei n. 4.375/1964).

Todavia, é facultado serviço alternativo, em tempos de paz, aos que se alistarem e alegarem imperativo de consciência, decorrente de crença religiosa, convicção ideológica ou política, para eximição das atividades de caráter essencialmente militar.

Quando o jovem se nega a prestar tanto o serviço militar obrigatório, como o serviço alternativo proposto pela autoridade militar (por convicções religiosas, ideológicas ou políticas), ensejará a suspensão de seus direitos políticos.

Nos regimes constitucionais anteriores à Carta de 1988, a recusa no cumprimento desta obrigação ensejava a perda dos direitos políticos.

Uma vez que a Constituição1 vigente não faz distinção entre perda e suspensão no rol apresentado no art. 15, a doutrina diverge entre ser a escusa de consciência causa de perda ou de suspensão de direitos políticos. Seguimos a posição de Marcos Ramayana, Joel José Cândido, Thales Tácito Pontes de Pádua Cerqueira e de Pedro Roberto Decomain, entre outros, que entendem que ela causa suspensão, uma vez que a sua regularização pode ser requerida a qualquer momento, em conformidade com o disposto na Lei n. 8.239/1991, cumpridas as exigências legais.

A prestação do serviço alternativo é regulamentada pela Lei n. 8.239/1991, bem como pela Portaria n. 2.681, de 28 de julho de 1992, da Comissão do Serviço Militar (COSEMI), e a suspensão dos direitos políticos somente ocorrerá caso o alistando se recuse a cumprir a obrigação alternativa proposta pelo comando militar. Neste caso, o interessado deverá apresentar declaração de próprio punho, expressando a recusa em cumprir o serviço alternativo, e receber, posteriormente, o certificado de recusa de prestação de serviço alternativo, que não tem validade como quitação militar, uma vez que a obrigação imposta não foi cumprida2.

De acordo com a doutrina de Ramayana (2007, p. 211 e ss.), a autoridade competente para a decretação é a autoridade militar, que certifica o não cumprimento da obrigação ou da prestação alternativa, em procedimento administrativo, sem contraditório, e o encaminha ao Ministério da Justiça, que, por sua vez, fará comunicação ao Tribunal Superior Eleitoral, para a anotação da suspensão dos direitos políticos. Para Joel José Cândido, a competência para decretar a suspensão dos direitos políticos é da Justiça Militar Federal, aplicando-se o rito previsto nos arts. 463-465 do Código de Processo Penal Militar (CANDIDO apud MORAES, 2002, p. 214).

Consta da Portaria acima referida (art. 44, item 4) que é competência dos comandantes do distrito naval, do comando aéreo ou da região militar (neste último caso, poderá existir delegação aos chefes de Circunscrição de Serviço Militar – CSM) a expedição do certificado de recusa de prestação do serviço alternativo, que ensejará a suspensão dos direitos políticos daquele que o requerer. Com a referida expedição, inicia-se o trâmite de suspensão dos direitos políticos.

Esta certidão de recusa somente será expedida após o prazo de 2 anos, a contar do vencimento do período estabelecido, para, então, existir a decretação da suspensão dos direitos políticos3.

Assim, aquele que não desejar cumprir suas obrigações militares deverá apresentar requerimento ao comandante da região militar ou equivalente, acompanhado de documentos comprobatórios (cópia do certificado de alistamento militar e da declaração da comunidade religiosa a que pertença, se for o caso), e efetuar o pagamento de taxa militar. Após, a decisão é enviada à diretoria de serviço militar, que, por sua vez, encaminha ofício ao Ministério da Justiça, com a listagem dos que se recusaram a cumprir a obrigação, para a publicação, no Diário Oficial da União, da suspensão de seus direitos políticos (PONTES apud CERQUEIRA, 2006, t. 1, p. 219), e ao requerente será fornecida certidão de recusa de prestação do serviço alternativo, que não comprova quitação militar, e, por conseguinte, não é documento hábil para instruir o pedido de alistamento eleitoral.

Cumpre salientar que a prestação alternativa ao serviço militar obrigatório gera quitação das obrigações militares, uma vez que a prestação alternativa tem os mesmos efeitos jurídicos do certificado de reservista (art. 4º, caput, da Lei n. 8.239/1991), e sua atestação serve como documento comprobatório do cumprimento da obrigação do art. 143 da CF.

4  Do restabelecimento dos direitos políticos do suspenso e do eximido

Conforme já exposto no presente trabalho, por ser causa de suspensão, e não de perda, os direitos políticos dos que se recusaram a cumprir as obrigações mencionadas podem ser restabelecidos a qualquer momento, desde que cumprida a exigência legal que ensejou a suspensão dos referidos direitos. Para tanto, deverá o interessado preencher formulário dirigido ao Ministério da Justiça, solicitando a cessação do impedimento, para que possa ser publicado ato administrativo restabelecendo os direitos políticos (por decreto ou por portaria do Ministério da Justiça).

O referido formulário deverá ser acompanhado de cópia autenticada do documento de identidade e de documento hábil que comprove o cumprimento de obrigação ou a anulação da eximição ou, ainda, declaração de que o eximido agora está disposto a suportar o ônus imposto pelo art. 40 da Lei n. 818/1949, que dispõe:

Art. 40. O brasileiro que houver perdido direitos políticos, poderá readquiri-los:

a) declarando, em termo lavrado no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, se residir no Distrito Federal, ou nas Secretarias congêneres dos Estados e Territórios, se neles residir, que se acha pronto para suportar o ônus de que se havia libertado, contanto que esse procedimento não importe fraude da lei;

Quanto ao documento que comprove a anulação da eximição, entendemos que os direitos políticos daqueles que foram eximidos em data anterior à Carta Constitucional de 1988 – cuja legislação à época determinava a perda dos referidos direitos –, e que tenham mais de 46 anos de idade, devem ser restabelecidos, caso suspensos ou perdidos, sem o cumprimento do serviço militar obrigatório ou prestação alternativa, uma vez que a obrigação militar persiste até 31 de dezembro do ano em que se completa 45 anos de idade, e que o referido pedido deverá ser encaminhado ao Ministério da Justiça acompanhado de cópia de certidão expedida pelo órgão militar que declare a condição de quitação com o serviço militar, em conformidade com o art. 5º, caput, da Lei n. 4.375/1964.

Portanto, ainda que a eximição tenha ocorrido na vigência dos diplomas constitucionais anteriores (constando nos registros da Justiça Eleitoral a perda dos direitos políticos e não a suspensão), devem estas perdas serem entendidas, à luz da Constituição de 1988, como suspensões passíveis de restabelecimento.

O restabelecimento, no caso acima, é garantido aos que foram considerados eximidos em data anterior à Constituição de 1988, pela interpretação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 8.239/1991, e do art. 15, §§ 9º e 10, e art. 70 da Portaria COSEMI n. 2.681/1992, que garantem ao inadimplente o restabelecimento de seus direitos a qualquer tempo, desde que cumpridas as obrigações, tendo direito à atualização de sua situação militar.

Isso se deve ao fato de não existir, antes da promulgação da Constituição da República de 1988, o instituto do serviço alternativo ao serviço militar obrigatório e que sua instituição possibilitou aos jovens que aleguem escusa de consciência a prestação de atividades de caráter administrativo, filantrópico, assistencial ou produtivo, em contraposição à atividade de caráter essencialmente militar (art. 3º, § 2º, da Lei. n. 8.239/1991). Assim, estendeu-se a oportunidade aos eximidos que, na época de seu alistamento, não tinham alternativa à perda de seus direitos políticos.

Extinta a causa impeditiva, deverá o ato ser publicado pelo Ministério da Justiça e então encaminhado o restabelecimento dos direitos políticos do requerente ao Tribunal Superior Eleitoral, para a inativação do impedimento nos sistemas eleitorais. Poderá também o interessado provocar o Judiciário Eleitoral para que seus direitos políticos sejam restabelecidos, desde que tenha em mãos o ato que restabeleceu seus direitos, no caso de morosidade no envio das informações à Corregedoria Geral Eleitoral. Tal provocação poderá ocorrer em qualquer zona eleitoral do País, que encaminhará o referido pedido à Corregedoria Geral Eleitoral, para as devidas providências (lançamento de contra-ASE na inscrição eleitoral do requerente, caso exista, ou inativação do registro na base de perdas e suspensões de direitos políticos do TSE).

5 Conclusão

Da análise do conteúdo exposto tem-se que a recusa em cumprir obrigação a todos imposta no art. 143 da Constituição da República, ainda que não pacificada pela doutrina, tem natureza de suspensão de direitos políticos, podendo, portanto, ser restabelecidos com o cumprimento da obrigação que ensejou a suspensão.

A Constituição brasileira garante aos que aleguem imperativo de consciência decorrente de convicção ideológica ou política, bem como de crença religiosa, a prestação de serviço alternativo ao militar, proposto pelas Forças Armadas, para o adimplemento da obrigação (art. 143 da CF e art. 3º da Lei n. 8.239/1991), sendo que a recusa do cumprimento do serviço alternativo enseja a suspensão dos direitos políticos.

Caso o eximido deseje, a qualquer momento, readquirir seus direitos, deverá cumprir integralmente o serviço alternativo previsto em lei (art. 4º, § 2º, da Lei n. 8.239/1991), ou aguardar a data em que completará 46 anos de idade, pois, a partir dessa idade, os brasileiros do sexo masculino encontram-se desobrigados a prestar serviço militar, nos termos do art. 5º da Lei n. 4.375/1964.

Por fim, ressalte-se que o órgão responsável pelo restabelecimento dos direitos políticos, suspensos por descumprimento de obrigação militar, é o Ministério da Justiça (por meio de ato administrativo complexo envolvendo o também Comando Militar, que atestará o cumprimento integral do serviço alternativo proposto), cabendo ao Tribunal Superior Eleitoral a retirada da anotação do impedimento do banco de dados da Justiça Eleitoral.

6 Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Data de acesso: 28 abr. 2010.

______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (10 de novembro de 1937). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Data de acesso: 28 abr. 2010.

______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (18 de setembro de 1946). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm. Data de acesso: 28 abr. 2010.

______. Emenda constitucional n. 1 (17 de outubro de 1969). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm. Data de acesso: 28 abr. 2010.

______. Lei n. 4.375 (17 de agosto de 1964). Lei do serviço militar. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4375.htm. Data de acesso: 29 abr. 2010.

______. Lei n. 8.239 (4 de outubro de 1991). Regulamenta o art. 143, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, que dispõem sobre a prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8239.htm. Data de acesso: 29 abr. 2010.

______. Portaria n. 2.681 (28 de julho de 1992). Comissão do serviço militar. Disponível em: www.defesa.gov.br/servico_militar/legislacao/07_rlpsasmo.pdf. Data de acesso: 29 abr. 2010.

CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral brasileiro. Bauru: Edipro, 2008.

CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes de Pádua. Preleções de Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. Tomo I.

COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DECOMAIN, Pedro Roberto. Elegibilidade e inelegibilidades. São Paulo: Dialética, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Impetus. 2007.

1 Para uma análise mais detalhada, sugere-se a consulta aos seguintes Diplomas: Constituição de 1969, art. 149, § 1º, “b”; Constituição de 1946, art. 135, § 2º, II; Constituição de 1937, art. 119, “b”.

2 Procedimento em conformidade com os arts. 15, § 8º, e 43, § 4º, da Portaria COSEMI n. 2.681/1992.

3 Em conformidade com a Lei n. 8.239/1991, art. 4º, §§ 1º e 2º, regulamentados pela Portaria COSEMI n. 2.681/1992.

* Analista Judíciário – Área Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. Chefe de Cartório da 27ª Zona Eleitoral. Especialista em Direito Eleitoral pela Universidade do Sul de Santa Catarina.

 

Publicado na RESENHA ELEITORAL, vol. 19, 2011.

 

 

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