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Íntegra

Os direitos políticos do condenado criminalmente

Por: Jane Justina Maschio

1 Introdução

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal estabelece que um dos fundamentos do Estado Democrático, cujo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, é a cidadania. O art. 14, por sua vez, consagra que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, enquanto o art. 5º exalta a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Partindo desses fundamentos, dir-se-ia que no Brasil de hoje está amplamente assegurado o exercício do voto com igual valor para todos; contudo, a realidade e bem diversa. Há ainda um longo caminho a percorrer: primeiro, porque nem todos os brasileiros têm direito ao voto - os conscritos e os condenados criminalmente estão à margem do processo democrático; em segundo lugar, porque muito se há que fazer para que todos tenham acesso aos bens de consumo mínimos, à saúde, à moradia, à educação, à informação, a fim de que possam exercer o direito de sufrágio com independência, sem qualquer influência do poder econômico.

Ao apresentar o tema os direitos políticos dos condenados, pretende-se dar ênfase à necessidade de, num primeiro momento, assegurar a igualdade de todos em relação ao direito de voto, a fim de que as outras igualdades sejam alcançadas e, via de conseqüência, se substitua a simples e pura sujeição dos excluídos aos interesses das classes dominantes pela integração social e, com isso, cada qual conquiste a liberdade, em seu sentido mais amplo.

2 O poder soberano

Deixando para trás a idéia das organizações societárias antigas ou teocráticas - que não admitiam qualquer divisão no poder e nas quais não se distinguia o pensamento político da religião, da moral, da filosofia - e o feudalismo - com sua infinita pluralidade de poderes, sem hierarquia definida e incontável multiplicidade de ordens jurídicas -, surgiu o Estado Moderno, despertando a consciência para a busca de uma unidade que concretizasse a afirmação de um poder soberano, reconhecido como o mais amplo dentro de uma precisa delimitação territorial.1

A identificação da soberania com o Poder Legislativo tem suas raízes no conceito de vontade geral de Rousseau. Vem dele a afirmação do povo como soberano, reconhecendo a igualdade como um dos objetivos fundamentais da sociedade. Partindo da idéia de que a ordem social não provém da natureza do homem, mas de convenções, Rousseau, em sua obra: O Contrato Social, transfere a titularidade da soberania da pessoa do governante para o povo.

Os homens, a partir daí, forjaram uma nova sociedade, na qual, os seres humanos passaram a nascer livres e iguais em direitos e dignidade. Com isso, inverteu-se o fundamento do poder ou sua fonte legitimadora. 0 poder político passou a provir não mais de Deus, nem da tradição familiar, mas da vontade popular, do consenso dos indivíduos, transformados em cidadãos. "É o surgimento da idéia " - diz Celso Lafer -"de que os homens podem organizar o Estado e a sociedade de acordo com a sua vontade e a sua razão", substituindo-se a pura e simples vontade do rei pelo consenso popular, refletido no sufrágio.2

A soberania, pois, tem como característica pertencer ao povo em sua universalidade: todos os indivíduos que compõem uma nação de têm parcela do poder de autodeterminar-se. Por isso, como ensina Fávila Ribeiro:

Se a soberania for subtraída do povo em sua universalidade, sendo assumida por apenas uma ou algumas classes, somente elas são livres, porque podem traçar seu próprio destino e o destino político alheio, ficando os demais segmentos excluídos da soberania a mercê de ocasionais impulsos dadivosos ou de incontroláveis indisposições das camadas dirigentes.3

Assentado que a soberania pertence definitivamente ao povo, cabe investigar, de agora em diante, quem faria parte do povo, detentor da vontade geral, com direito de escolher representantes, para, em seu nome, exercer o poder soberano. É em Rousseau e em sua concepção da vontade geral como legitimadora do contrato social que se obtém resposta:

Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível, visto que a vontade é geral ou não é; ou é corpo do povo ou unicamente de uma parte dele. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular.4

De tal assertiva emerge a convicção de que a soberania não pode ser representada pela vontade de um ou de alguns homens, mas sim por todos que compõem o corpo político.

3 A cidadania

A cidadania, de origem na antigüidade clássica, era um estatuto unitário pelo qual todos os cidadãos eram iguais em direitos. Era atributo do morador da cidade, daquele que participava dos seus negócios, significando com isso que pertencia à comunidade. Poucos, entretanto, eram os cidadãos e raras as pessoas que tinham acesso a cargos públicos e à participação nos negócios da sociedade.5

Foi só na Revolução Francesa que se preparou a concreta construção do novo modelo de cidadania, o qual se traduz na máxima de que todo "o poder emana do povo e em seu nome é exercido", ao se proclamar a liberdade e a igualdade entre todos os homens.6

Assim, justamente evocando a igualdade de todos perante a lei é que a cidadania confere a cada indivíduo direitos e obrigações formalmente iguais, ensejando-lhe postular justiça, isto é, defender e afirmar direitos em posição de igualdade com os demais indivíduos, resguardando-se, assim, de possíveis agressões de outros cidadãos e das instituições estatais. Nesse momento, o sujeito social privado emerge como cidadão: cada indivíduo, contratando consigo mesmo, acha-se comprometido como membro-soberano em face dos particulares e como membro da sociedade em face do corpo político.7

Se o exercício da cidadania atua como ponto de mediação entre a sociedade civil e o poder estatal, que implica a obrigação política de obediência à ordem que o Estado organiza e garante, decorre disso que não pode haver cidadão que, a seu turno, não seja também súdito; nem súdito que não disponha de uma parcela de soberania.

Na senda contratualista de somente obedecer a um poder consensualmente formado, tem-se que, para que qualquer indivíduo seja legitimamente submetido ao império da lei, necessário se faz que, em contrapartida, seja também co-partícipe na formação da vontade manifesta nessa mesma lei, quer diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos. É, pois, o exercício da cidadania que legitima os compromissos civis entre os membros de um corpo político, submetendo, cada um, individualmente, à vontade geral. É a cidadania, em resumo, que identifica o indivíduo como fração ou parte de um povo. E fazer parte do povo de determinado Estado significa estar numa situação jurídica de deveres sim, mas também de direitos.

Exatamente em função dessa correlação é que os condenados, sujeitos de deveres perante o Estado, não podem deixar de ser considerados cidadãos também, enquanto sujeitos de direito.

Não foi à toa, como lembra Hannah Arendt, citada por Celso Lafer , que o nazismo iniciou sua perseguição ao povo judeu, justamente começando por privar seus membros do status civitatis, convertendo-os, assim, em inimigos objetivos.8 Destituídos da cidadania, o nazismo pode perpetrar todas as barbáries que a humanidade testemunhou contra os judeus, da mesma forma que, privados de sua condição de cidadãos, do direito de votar, os condenados têm sido tratados como "o lixo" da sociedade, que deve ser recolhido e esquecido em celas infectas, para que lá apodreça.

Cidadão é, pois, o sujeito de deveres, enquanto subordinado ao poder do Estado, e o sujeito de direitos, enquanto fração do povo soberano, em nome de quem o poder é exercido. É, assim, o sujeito que reivindica e promove a mutação do Direito, a ele se submetendo. É, no dizer de Clemerson Merlin Cleve:

[...] o homem envolto nas relações de força que comandam a historicidade e a natureza da política. O cidadão é o agente reivindicante possibilitador, na linguagem de Lefort da floração continua de direitos novos.9

4 A democracia representativa

Historicamente, foi só na democracia que remonta à Grécia antiga, exercida de forma direta, que todo o corpo político reunido na praça, governava a cidade. Lá, os cidadãos participavam das assembléias do povo, tinham plena liberdade da palavra e votavam suas próprias leis.

Mais tarde, retomou-se o ideal republicano da antigüidade, abrindo-se caminho para a democracia moderna: o regime político baseado nos princípios da soberania popular. Contudo, na República moderna, a cidadania já não pode mais ser exercida da mesma forma que na antigüidade, pois a grande massa populacional impede o exercício do poder diretamente pelo cidadão. Surge, então, a Democracia Representativa, que consagra a idéia do controle popular do poder pelos direitos políticos. Assim, tem-se que:

Pela doutrina da representação fundada sobre a soberania popular, a origem e o fim de toda a soberania se encontra no povo. O cidadão não pode mais exercer em pessoa o poder, mas escolhe por seu voto seus representantes.10

A nova sociedade se organiza, então, em torno da vontade geral, que somente será geral, quando todos os indivíduos que compõem o povo puderem participar direta ou indiretamente, por meio de representantes, do poder de autodeterminar-se, fazendo-se ouvir na elaboração das leis e no estabelecimento do direito.

5 O cidadão e a construção da sociedade e do direito

Apesar da multiplicidade de formas de manifestação da cidadania, há que se reconhecer que é ainda o exercício do voto que a centraliza e a fortalece, na medida em que todo e qualquer cidadão - independentemente de classe social, cultural ou econômica, de pertencer a grupos sociais ou a qualquer outra forma de organização - pode influenciar o processo legislativo e por isso intervir nos destinos da Nação, atuando na escolha das pessoas que administrarão o País.

Numa retrospectiva histórica, é possível perceber que a própria formação da cidadania. em determinada época e espaço. está diretamente relacionada com as lutas, conflitos e conquistas. Os atributos, prerrogativas e deveres do cidadão não são estáticos; ao contrário, são dinâmicos, dependem de lutas, de conquistas, de avanços. Modificam-se no tempo e no espaço.

A cidadania, enfim, não é um status dado pelo Estado, mas uma conquista. Assim, por séculos, a mulher, que era considerada um ser inferior ao homem, quer do ponto de vista biológico, psicológico, moral e ético, foi tida como incapaz para a vida política. A história do Direito Eleitoral mostra que no Brasil só em 1932 as mulheres adquiriram o direito de voto.

Realçando o atributo da cidadania como propulsor de mudanças sociais, Vera Regina Pereira de Andrade, citando Norberto Bobbio, enfatiza que:

[...] existe um nexo historicamente verificável entre o processo de democratização consistente na extensão do direito político de sufrágio - e a emergência do estado assistencial. Na medida em que se ampliou o direito de sufrágio. aumentaram as reivindicações sociais cuja conseqüência foi o intervencionismo estatal na ordem sócio-econômica para atender tais reivindicações: Quando os titulares dos direitos políticos eram apenas os proprietários. era natural que a maior solicitação dirigida ao poder político fosse a de proteger a liberdade de propriedade e dos contratos. A partir do momento em que os direitos políticos foram estendidos aos que nada têm e aos analfabetos tornou-se igualmente natural que aos governantes que acima de tudo se proclamavam e num certo sentido eram representantes do povo passassem a ser pedidos trabalhos escolas gratuitas e - por que não - casas populares tratamentos médicos, etc.11

De sorte que é um raciocínio absolutamente lógico pensar-se que, quando os direitos políticos forem reconhecidos também aos condena- dos, tornar-se-á natural aos governantes e aos dirigentes da Nação passarem a refletir melhor acerca do sistema punitivo no Brasil, sopesando seus objetivos, finalidades e eficácia.

Fixado exatamente nesse argumento foi que o Conselho Federal da OAB propôs a extensão aos presidiários do direito de voto. Artigo publicado no Jornal do Conselho Federal da OAB n. 55/1997 faz referência à seguinte argumentação de Nabor Bulhões:

O exercício do voto manteria o preso vinculado à vida política do seu País. à certeza de que ainda é um cidadão e de que importa à sociedade e de que também é responsável pelas mudanças sociais. [...] Talvez aí esteja uma possibilidade latente de promover mudanças no próprio sistema penitenciário. vinculando-o a uma política pública-criminal e penitenciária mais humana e justa.12

A cidadania é o ponto de partida, é o germe capaz de fazer brotar novos direitos, novos comportamentos, aptos a transformar a sociedade, tornando-a mais solidária e humana. O conceito de cidadania, em síntese, não se esgota na compreensão de ser cidadão aquele que participa dos negócios da cidade. Vai além. Trata-se: do direito subjetivo de ter direitos; do direito que tem o indivíduo de lutar pelos seus ideais, por seus valores, o direito de empreender todo o esforço possível na busca da felicidade, prerrogativas essas que não podem ser negadas ao condenado, sob pena de ele tornar-se apenas um súdito, à mercê do Estado.

6 Os direitos políticos

Com a consolidação da Democracia, aliada à ampliação do espectro de direitos de que podem gozar os indivíduos no Estado de Direito do mundo contemporâneo, cresce em importância a prerrogativa de poder participar da formação da vontade do Estado, de estabelecer as diretrizes ideológicas, sociológicas, filosóficas, administrativas e econômicas do nosso País, principalmente através do gozo dos direitos políticos, que compreendem, dentre outros, o direito de sufrágio.

O direito ao sufrágio - que se divide em alistabilidade e elegibilidade - de tempos em tempos, é verdade, não significa grandes avanços democráticos, especialmente num País que apenas há pouco mais de uma década saiu de uma ditadura militar. Todavia, não há como negar que esse é um ponto de partida para a edificação de um espaço público onde os conflitos e as diferenças possam, democraticamente, se expressar e se realizar.

E, em essência, ainda é o voto o único instrumento que detém a categoria dos excluídos para fazer avançar suas possibilidades emancipatórias, realizando, dessa forma, a cidadania num nível mais elevado de participação social. Num processo de expansão da dimensão da cidadania, o sufrágio universal deve funcionar como mola propulsora para que os atores políticos ocupem seus espaços públicos, erigindo, assim, um Estado Democrático de Direito, em que os seres humanos todos se reconheçam como semelhantes.

6.1 Alistabilidade

Direito consagrado constitucionalmente, dele só estão excluídos os estrangeiros e, durante o serviço militar, os conscritos, donde decorre que o art. 5º. da Lei n. 4.737, de 5 de julho de 1965 - o Código Eleitoral -, que expressamente veda o alistamento aos analfabetos, aos que não saibam se exprimir na língua nacional e aos que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. A vedação ao alistamento dos analfabetos a Emenda Constitucional n. 25, de 1985, já tornara sem efeito, situação que veio a ser confirmada na Constituição de 1988. Quanto ao alistamento dos que não saibam se expressar em língua nacional, o Constituinte de 1988, no dizer de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento:

[...] não recepcionou a situação, afastando a matéria de inalistabilidade da lei ordinária. A atual Lei Magna torna obrigatório o alistamento ao maior de dezoito anos e indica, não exemplificativamente, mas taxativamente, as hipóteses de inalistamento. A inconstitucionalidade superveniente gerou, como conseqüência, a revogação da norma infraconstitucional.13

Da mesma forma, a vedação ao alistamento por parte de quem esteja, temporária ou definitivamente, privado dos direitos políticos (art. 52, III, da Lei n. 4.737/65), é de ser tida como não recepcionada pelo Texto Constitucional pátrio. Isso porque, contrariamente ao que dispunham as Constituições de 1946 e 1967, bem como a Emenda Constitucional n. 1 , de 1969, que expressamente impediam o alistamento aos que estivessem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos, a atual Carta Constitucional, no § 2º de seu art. 15, veda o alistamento, frise-se mais uma vez, apenas e tão-somente aos estrangeiros e, durante o período do serviço militar, aos conscritos.

Nos idos de 1965, portanto, quando da edição do Código Eleitoral, a Constituição Federal e a legislação especial estavam em perfeita harmonia ambas prevendo, de forma positivada, que, suspensos os direitos políticos, não haveria possibilidade de o cidadão se alistar; ou, advinda a suspensão dos direitos políticos após o alistamento, seria este cancelado ou suspenso.

Poder-se-ia argumentar que o alistamento e o direito de votar sejam etapas distintas de exercício dos direitos políticos, como o é a elegibilidade (para a qual é necessário um plus em relação a capacidade eleitoral ativa), e que, portanto, não necessitando comprovar o pleno gozo dos direitos políticos no instante do alistamento, o eleitor deveria fazê-lo para votar. Mas assim não é. E Pontes de Miranda, nesse sentido, preleciona:

O alistamento eleitoral é para eficácia imediata, de modo que a entrega do título permite o exercício da atividade eletiva desde o momento da sua tradição. O título é declarativo da legitimação ativa, mesmo se o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa determinou para o mesmo dia ou para o dia imediato a eleição ou o plebiscito.14

O Título I - Da Qualificação e Inscrição - do Código Eleitoral, que trata do alistamento eleitoral, disciplina a matéria, dispondo que o alistando comparecerá em Cartório, ou local previamente designado (para o caso de postos volantes de alistamento de eleitores), apresentando apenas um - e somente um - dos seguintes documentos:

I - carteira de identidade expedida pelo órgão competente do Distrito Federal ou dos Estados;

II - certificado de quitação com o serviço militar;

III - certidão de idade extraída do registro civil;

IV- instrumento público do qual se infira por direito, ter o requerente idade superior a dezoito anos (atualmente dezesseis) e do qual constem, também, os demais elementos necessários à sua qualificação;

V - documento do qual se infira a nacionalidade brasileira, originária ou adquirida, do requerente.

No mesmo sentido é disciplinada a matéria pela Resolução TSE n. 20.132, de 19.3.1998.

A qualificação, assim, se dá com o preenchimento do Requerimento de Alistamento Eleitoral-RAE - no qual o servidor da Justiça Eleitoral, de posse do documento de identidade apresentado e na presença do interessado, deve anotar os dados relativos ao eleitor, quais sejam: nome completo, a data de nascimento, a filiação, a profissão, o endereço e o número do telefone, além do código do local de votação escolhido pelo alistando.

Mister observar-se, pois, que também no âmbito da legislação infraconstitucional, em oportunidade alguma de sua qualificação o eleitor é chamado a declarar ou comprovar seu status político: ter ou não contra si condenação criminal transitada em julgado.

6.2 Elegibilidade

A elegibilidade, também denominada "capacidade eleitoral passiva", consiste na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos.

De acordo com lição de Alexandre de Morais, "não basta possuir capacidade eleitoral ativa (ser eleitor) para adquirir a capacidade eleitoral passiva (poder ser eleito). A elegibilidade se adquire por etapas, segundo faixas etárias", além de requerer outras formalidades.15 Assim, o art. 14 da Constituição Federal, § 3º, estabelece:

[...] § 3º São condições de elegibilidade. na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

V - a filiação partidária;

VI - a idade mínima de [...].

Da mesma forma, a legislação infraconstitucional, § 1º do art. 94 do

Código Eleitoral - estabelece que o registro do candidato deverá ser instruído:

[...]

l - com a cópia autêntica da ata da Convenção que houver feito a escolha do candidato a qual deverá ser conferida com o original na Secretaria do Tribunal ou no Cartório Eleitoral:

II - com autorização do candidato. em documento com a assinatura reconhecida por tabelião;

III- com certidão fornecida pelo Cartório Eleitoral da Zona de inscrição em que conste que o registrando é eleitor;

IV - com prova de filiação partidária:

V - com folha corrida fornecida pelos Cartórios competentes (leia-se Cartórios Criminais), para que se verifique se o candidato está no gozo dos direitos políticos;

VI - com declaração de bens, de que constem a origem e as mutações patrimoniais,

Da simples leitura desses dispositivos conclui-se que se fosse condição sine qua non para o alistamento eleitoral e o exercício do direito de voto que estivesse o eleitor no pleno gozo dos direitos políticos, despiciendo seria ao legislador constitucional exigir do candidato a apresentação de folha corrida fornecida pelos Cartórios competentes, para que. se verificasse se ele está no gozo dos direitos políticos. Comprovando ser eleitor, já estaria provado o pleno gozo dos direitos políticos.

De concluir-se, pois, que o norte exegético da inserção do inciso III do art. 15 na Constituição Federal de 1988 tenha sido apenas e tão somente impedir, por questões éticas, que o condenado, com sentença transitada em julgado, possa se candidatar e, uma vez eleito, participe diretamente das decisões da Nação. Ou, o que é ainda pior, possa eleger-se para fugir ao cumprimento da pena que lhe foi imposta, sob o manto da imunidade parlamentar, como sói acontecer no Brasil.

6.3 Suspensão dos direitos em decorrência de sentença criminal transitada em julgado

Desde a Constituição Política do Império que os direitos políticos dos condenados vêm sendo regulamentados. A extensão de tal preceito, entretanto, até hoje, tem causado celeuma entre os doutrinadores pátrios. A jurisprudência eleitoral, acompanhando entendimento da maioria dos doutrinadores, é no sentido de que a suspensão dos direitos políticos é mera conseqüência do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória. Ocorrendo a primeira, necessariamente sobrevem a segunda, mesmo que a sentença nada declare quanto aos direitos políticos do réu.

Orlando Soares, de posição menos ortodoxa, entende que, ante a falta de lei regulamentadora da matéria, "nada obsta o exercício do direito de voto por aqueles que se encontram custodiados pelo Estado, em estabelecimentos prisionais, quer em caráter provisório, quer cumprindo pena.16 Em linha diversa é o entendimento de Dyrceu Aguiar Dias Clintra Júnior, que defende que apenas no caso de encarceramento do condenado haveria a suspensão dos direitos políticos.17

Outros, entre os quais Edilson Pereira Nobre Júnior, têm posicionamento ainda diverso: a medida extrema da suspensão dos direitos políticos deveria adstringir-se unicamente às hipóteses de cometimento de crimes dolosos, pois que só aí emergiria comportamento reprochável apto a justificar fosse o cidadão afastado dos "negócios da cidade".

A par de todas as discussões acerca do alcance da norma restritiva do direito à cidadania, forçoso é concluir-se que, a exemplo dos analfabetos e dos maiores de dezesseis anos e menores de dezoito, os direitos políticos dos condenados criminalmente com sentença transitada em julgado sofrem, sim, algumas restrições. Não podem eles, por exemplo, concorrer a cargo efetivo (jus honorum) ou filiar-se a partido político. Todavia, tendo em vista o norte exegético indicado pelo princípio da universalidade do sufrágio, alicerçado nos princípios e regras constitucionais da igualdade e da liberdade e de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, é de se ter como intocáveis os direitos políticos do condenado no que se refere ao direito de votar (jus sufragil).

Nesse aspecto, instigada a respeito de qual teria sido a razão, o motivo de a Assembléia Constituinte de 1988, ao contrário do que dispunham as Constituições anteriores, ter reduzido a restrição ao direito de alistamento, expressamente, apenas aos estrangeiros e, durante o serviço militar obrigatório, aos conscritos, foram com pulsados os Anais daquela Casa Legislativa por ocasião da votação do Capítulo IV - Dos Direitos Políticos.18

Aos investigar os trabalhos das subcomissões, especificamente a Subcomissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, deparou-se com o seguinte parecer acerca da Emenda n. 294 ao anteprojeto do relator da Comissão, apresentada em 1º de junho de 1987, de autoria do Deputado José Genoíno do Partido dos Trabalhadores de São Paulo, que pode estar apto a relevar o pensamento da Assembléia Constituinte acerca da matéria:

Dá a seguinte redação ao § 1 do art. 11 e acrescenta um novo parágrafo a este artigo, que passa a ser o 2º, renumerando-se os demais.

§ 1º É obrigatório o alistamento de todo brasileiro com dezesseis anos completos, não podendo ser excluído do alistamento eleitoral por razões de sexo, raça, grau de instrução, fortuna, convicção política, fé religiosa. profissão e condenação criminal.

§ 2º O exercício do voto é sempre facultativo. PARECER

O ilustre Constituinte José Genoíno sugere nova redação ao § 1º do art. 11 da Subcomissão 1-b, estabelecendo o principio do voto facultativo instituto que considera imprescindível numa sociedade democrática.

[...]

Quanto às condições estabelecidas para o alistamento eleitoral, não vemos conveniência, nem necessidade do acréscimo sugerido, pois, quando se estabelece que 'todos os brasileiros têm direitos', o termo é abrangente, independentemente de sexo, raça, instrução ou qualquer outra qualificação.

Ao que tudo indica, nem mesmo os Constituintes de 1988 pretenderam impor aos condenados a suspensão de seu direito de votar. Primeiro porque, ao contrário das Cartas Constitucionais anteriores, a atual fez-se silente quanto à impossibilidade de os indivíduos nessa situação se alistarem, e, segundo, a proposta de emenda proibindo tal discriminação em relação ao condenado pareceu desnecessária ao relatar da Subcomissão de Direitos Políticos ante o princípio constitucional de que todos os brasileiros têm direitos iguais.

7 Considerações finais

A cidadania e o exercício do voto são um direito, não um privilégio concedido apenas a certos indivíduos de elevadas condições econômicas, culturais ou mesmo morais; seu reconhecimento deriva do fato objetivo de o indivíduo pertencer à comunidade e de estar submetido às suas leis. É o próprio exercício da cidadania, especialmente o direito de voto para escolher seus representantes, que legítima a sanção penal imposta ao condenado, pois só aos que participam da elaboração das leis, direta ou indiretamente, se pode impor seu cumprimento, sob pena de sanções.

Os silvícolas, vivendo no estado de natureza e, pois, não subscrevendo o pacto social, não detêm direito à cidadania, ao exercício do direito de voto, não podem jamais serem submetidos às leis e ao aparato repressor estatais.

Ademais, como bem evidenciou o Juiz Warren, da Suprema Corte Americana, no caso (Trop versus Dulles), "a cidadania não é uma licença que expira com a má conduta [...]. A cidadania não se perde a cada vez que um dever de cidadania é esquivado. E a privação da cidadania não é uma arma que o governo pode usar para expressar seu descontentamento com a conduta do cidadão, por mais repreensível que esta conduta possa ser.19

Assim; todas as formas de restrição do direito ao exercício do voto nada mais revelam do que técnicas antidemocráticas, destinadas a propiciar a manutenção do status quo de exclusão, impelindo o condenado a afastar-se cada vez mais do senso de realidade do mundo externo, para assumir de vez sua condição de vassalo, de mero espectador da vida pública, em vez de partícipe dela.

Ademais, se do ponto de vista do Direito Penal e do Direito Civil o condenado é considerado agente plenamente capaz, tanto que de sua conduta anti-social lhe decorre a imposição de sanções penais, além da obrigação de indenizar os danos porventura causados à vítima, como se justifica seja ele tachado de "incapaz, inidôneo e de desprovido de qualquer dignidade" do ponto de vista político? A tão embaraçosa questão, certamente, só se pode encontrar explicação no efetivo descaso da sociedade para com aqueles que, na quase totalidade, já são marginalizados socialmente.

A todo ser humano capaz de atos conscientes deve ser garantido o direito de voto, não só como forma de diminuir injustas diferenciações sociais, dado o caráter ensejador da conquista de novos direitos de que se reveste a cidadania participativa, mas também para preservar e garantir a Democracia.

Se, como se apontou, a Revolução Francesa teve como ideal acabar com o governo de um ou de alguns, não há como justificar que no governo do povo pelo povo, semelhantes nossos permaneçam à margem do poder soberano e, consequentemente, vejam-se amordaçados e impotentes no sentido de garantirem seus mínimos direitos e marcharem para a conquista de novos.

A Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, não impede o alistamento eleitoral de quem não esteja no pleno gozo de seus direitos políticos; assim o inciso III do art. 15 da Constituição Federal que suspende os direitos políticos de quem tenha contra si condenação criminal transitada em julgado, tem reflexos apenas nos direitos políticos passivos, ou seja, na elegibilidade.

Vivendo o homem em sociedade, "o primeiro direito humano que a polis, como um artefato humano, pode conceder, e do qual derivam todos os demais, é o direito à vida pública, que permite o comando da palavra e da ação", em busca de outros e novos direitos.20 O Sem os direitos de cidadania e, portanto, expulsos do cenário público, os condenados, limitados ao minúsculo espaço privado de suas celas, tornaram-se supérfluos para a sociedade, encontrando na rebelião a única forma de se fazerem ouvir e ver.

Referências bibliográficas

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Notas

1 Cf. BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINI, GianFranco. Dicionário de Política. Verbete Soberania, p. 1179 e seg.

2 A Reconstrução dos Direitos Humanos - um diálogo com o pensamento de Hanna Arendt. p. 123.

3 Pressupostos Constitucionais do Direito Eleitoral. p. 37.

4 Op. Cit. p. 34-35.

5 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. p. 28.

6 Idem, ibidem. p. 29.

7 Cf. ROUSSEAU, J. J. Op. cit. p.23.

8 Op. Cit. p.148.

9 O cidadão. a administração pública e a nova Constituição. In: Rev. de Inform. Legisl. a. 27. n. 106. p.82.

10 VIEIRA, Liszt. Op. Cit. P.30.

11 Cidadania: do direito aos direitos humanos. p. 66-67. 12

12 Jornal do Conselho Federal da OAB. n. 55. p. 7, 1997.

13 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Lineamentos de Direito Eleitoral. p. 15.

14 MIRANDA. Pontes. Op. cit. p. 554.

15 MORAIS. Alexandre de. Direito Constitucional. p. 198.

16 SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. p. 98.

17 CINTRA JUNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. A suspensão dos direitos políticos em face dos princípios da individualização da pena e da proporcionalidade. In. Rev. Brasil. de Ciências Criminais, p. 89.96.

18 Diário da Assembléia Nacional Constituinte de 3 de Março de 1988, p. 7903 a 7969.

19 Cf. LAFER. Celso. Op. cit. p. 162.

20 Idem, Ibidem. p. 152-153.

Analista Judiciária do TRESC Graduanda em Direito na UFSC.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 7, n. 1 (jan./jun. 2000).

 

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