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Íntegra

O Ministério Público e a compatibilidade entre os princípios da unidade e indivisibilidade e as garantias da autonomia e independência

Por: Fávila Ribeiro

1 Aspectos dialéticos nos valores essenciais à instituição do Ministério Público

Na constelação de valores que deram moldagem institucional ao Ministério Público e neste se mantiveram instalados na vigente ordem constitucional, há os que defendem sejam os princípios da unidade e indivisibilidade de maior valia, em se aplicando à ótica das garantias da autonomia e independência o significado de "inexistência de hierarquia entre os diversos órgãos ministeriais", o que renderia ensejo a interpretar-se como prescindível o renovado desempenho processual por outros membros, ao se transpor o caso a grau mais elevado, por interposição de recurso, sustentando esses que nessa hipótese a manifestação que se produzira em nome da instituição já adquiria feição definitiva, a ponto de não suportar qualquer divergência pelos membros que sejam posteriormente chamados a oficiar na lide. Por conta dessa idéia são ventiladas algumas conseqüências adicionais de que "quando um membro do MP se manifesta, é a instituição que o faz. Se a instituição já se manifestou, na instância onde o processo se originou, e não ocorreu qualquer irregularidade, após a última intervenção ministerial em primeiro grau, nada há a exigir uma nova manifestação do MP, em segundo grau."

Trata-se de explanação crítica feita sobre competências reservadas à instituição, em momento que estava reservado ao Ministério Público para oficiar em procedimentos judiciais, mas ainda assim não chegou a ficar caracterizada uma atitude omissiva com reflexos prejudiciais ao desdobramento processual, uma vez que na oportunidade foi averbada textual adoção do precedente posicionamento ministerial e afirmado com a nota pessoal de sua responsabilidade que o processo estava em ordem, sinal que exprimiu a sua participação efetiva, pelo exame que empreendera e pela responsabilidade que por isso assumira, ainda que de modo literalmente lacônico.

Afigurou-se impróprio o encaminhamento direcionado à Corregedoria-Geral do Ministério Público, sendo esse próprio órgão que assim verificou, depois de certa relutância, por não ter cabimento cogitar-se, nessas circunstâncias, de dar tratamento disciplinar à matéria, única razão admissível para o destino que lhe foi dado, quando disso não se podia cuidar na espécie, nem havia margem, a mais remota, para esse impertinente desvio em sua trajetória.

Assim reconhecendo, mais desmotivada foi a instauração de sindicância, por ser visível, de plano, que o assunto versado e o fato com ele relacionado em nada permitiam levantar-se suspeita de cometimento de infração disciplinar, quando era a própria liberdade inalienável de opinião que aflorava, ainda que pudesse despertar profundas divergências interpretativas, de natureza técnica, no enfoque de temas institucionais, tudo transcorrendo, porém, em linguagem sóbria e respeitosa, capaz de ser assimilada como exercício de inusitada atividade crítica, em virtude da impropriedade da ocasião escolhida, que não se afigurava consentânea e estimulante para esse tipo de controvérsia, reservada aos litigantes para cuidarem de seus interesses em pendência, quando melhor teria sido se ocorresse no foro apropriado da instituição, como acabou se perfazendo.

Superada, como entendemos, a condução disciplinar, houve alongamento da trajetória com desnecessários e inúteis percursos, que mais distanciavam o problema do centro gravitacional apto a contribuir para o seu desfecho, isso somente vindo a suceder após esgotadas todas as travessias imaginadas, determinando que o exame da matéria ainda mais fosse retardado e se alongasse sem proveito algum ao seu equacionamento.

Nesse terreno é lapidar o argumento de John Stuart MILL, quando afirma:

"Seja qual for a relutância com a qual alguém que possui forte opinião admita a possibilidade de ser ela falsa, deve sentir-se abalado ao considerar que, por mais verdadeira que seja. se não for discutida inteira, freqüente e destemerosamente, poder-se-á reputá-la como dogma morto e não verdade viva" (Da Liberdade, trad. de E. Jacy Monteiro, São Paulo, IBRASA, p. 40).

O ambiente compatível ao diálogo sobre os direcionamentos institucionais devem ser encontrados ou estabelecidos nos regaços ministeriais, sendo mesmo estimulante que discussões sobre mudanças que afetem expressivos aspectos e mesmo as mais relevantes e aprofundadas questões sócio-culturais do Brasil de hoje, e sobre atuais responsabilidades cívicas que recaem sobre os membros do Ministério Público dispersos por este imenso País continental, em sua compreensão universal, motivem aproximações mais intensivas e freqüentes, como início da arregimentação de energias cívicas para "construir uma sociedade livre, justa e solidária", participando, assim, como nos cabe, a tornar efetivo um dos mais expressivos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3°, I, da Constituição Federal.

Devemos chegar ao Seminário Internacional do Ministério Público, no ano de 1998, com vigorosa consciência de nossa própria identidade institucional e da escala de valores que mais sobrelevam no leque de responsabilidades sociais que precisam ser convictamente assumidas.

O processo crítico precisa dilatar-se a todo o universo do Ministério Público, repensando todas as atividades que cabem a seus membros, não obstante tenha sido desperdiçada a oportunidade que se ofereceu no concurso de monografias, uma vez que recursos financeiros disponíveis são realmente significativos, com prêmios de valor pecuniário dos mais elevados entre os que se tem notícia em promoções dessa natureza realizadas por instituições com as quais são mais expressivas as linhas de afinidades institucionais. Contudo, de modo sobremodo lamentável, foi publicado o edital de abertura desse, não constando uma seleção de temas ponderadamente avaliados e escolhidos, em linhas gerais, como os de maior significação em termos das atuais responsabilidades para ativação e defesa dos postulados do Estado Democrático de Direito, da sociedade e sua repercussão nos direitos individuais indisponíveis, com a sua reserva de legitimidade emanada da Constituição Federal.

Precisamos, agora mais do que nunca, aviventar as nossas reflexões sobre os deveres cívicos que nos cabem no atual tempo histórico, compreendendo a necessidade de manter sempre permanente e arejado o ambiente interno de debate, principalmente entre os que o compõem, vivificando-nos reciprocamente com renovadas perspectivas culturais, para aprimoramento dos métodos operativos, para enfrentarmos racionalidades hegemônicas e compressoras em seus processos expansionistas, ao mesmo tempo procurando ampliar nossas afinidades aos fundamentais objetivos da nacionalidade, colocando-nos sintonizados à sociedade em não permitindo que a desvirtuem pelo tipo de planejamento com modelos uniformizadores, que dissimulam e disseminam dependências externas.

2 Situações antinômicas entre a fruição da liberdade e o exercício de competências funcionais

Temos de invocar com mais freqüência a liberdade como atributo pessoal que deve ser assegurado de modo igual a todos, mantendo-nos em coerente porfia, com nossa geral e direta participação em fórum permanente, com descentralização por diferentes regiões, para permuta coloquial de opiniões e assim contribuir para a formação de uma massa crítica, demonstrando por critérios transparentes a integração construtiva a um autêntico sistema democrático de viver, que se não há de restringir ao periódico exercício do sufrágio, tanto mais quando este vem apenas sendo aplicado, com previsão regular, para designar representantes, sonegando-se da coletividade as suas outras modalidades de direta influência por plebiscito e referendo.

Na exteriorização dessas reflexões procura-se para tornar evidente que no caso focalizado não se cogitava de uma heresia ou de desobediência civil, mas de uma típica manifestação de liberdade pessoal imprópria ou extemporaneamente exercida, mas de nenhuma maneira transpondo-se, nem mesmo tangencialmente, para o terreno da ilicitude disciplinar.

Na verdade, no momento colocava-se em cena a ativação de uma específica competência funcional inerente a ofício do Ministério Público, pertinente à situação processual, após transposta a fase de primeira instância, com atos inerentes a procedimento recursal já instaurado.

Há uma bipolaridade inconfundível nas exercitações da liberdade, como atributo pessoal, e da competência: aquela porque se pode distender por influxos voluntários até defrontar-se com definidas e regulares limitações jurídicas; ao passo que a competência se apresenta como dimensão de dever público e, como tal, submetida a pautas ordenadas sobre o conteúdo; a extensão, o tempo e a forma de sua realização.

E pode-se afirmar ter sido do confronto dialético entre a liberdade pessoal e a competência pública que foram despontando as práticas embrionárias de limitações com as quais foi sendo moldado o Estado Democrático de Direito, como um tipo mais esmerado da juridicidade estatal.

Todavia, tanto as liberdades como as competências são contidas em objetivas delimitações de responsabilidade, traçadas na ordem jurídica vigente: sobre as primeiras, para evitar que se extraviem com atitudes lesivas a direitos alheios; e quanto às competências, devem movimentar-se dentro de conteúdos demarcados por normas jurídicas para evitar exacerbações nos desempenhos públicos, com atos ou omissões despóticos que as façam resvalar de suas apropriadas finalidades.

As liberdades se propagam até o ponto em que se deparem com legítimas restrições, ao passo que as competências trazem os seus conteúdos previamente estabelecidos para serem utilizadas em conformidade com os fins públicos a que estiverem correlacionadas.

A liberdade não necessita de permissão, nem se submete à censura, sendo espontânea em termos de suas exercitações, como atributo da criatividade pessoal, contendo-se apenas diante de limites impeditivos previstos em lei.

A competência sempre se traduz por um coeficiente de poder, resultante de uma cláusula exaustiva de lei, indissociável a dever de natureza pública e correlacionada a responsabilidades tipicamente funcionais.

3 A liberdade de opinião como atributo participativo do cidadão

Pode a liberdade de pensamento ter eventualmente como alvo de crítica uma determinada forma de organização estatal e, até mesmo, uma específica categoria de competência inerente a um setor público, que fica colocado em direto enfoque, nada havendo capaz de inibir essas regulares manifestações, como uma das mais expressivas formas participativas do cidadão.

Na situação aqui focalizada desponta como aspecto singular o de referir-se a uma contribuição crítica que se projetou engastada no próprio desempenho funcional, porque estava prevista para aquele exato ensejo a mobilização da competência funcional, com peculiar conseqüência no andamento processual de reexame que se deveria empreender no segundo grau de jurisdição, não havendo simultaneidade conciliável entre o exercício da liberdade e o da competência por um mesmo e único titular, uma vez que um dos dois atributos sairia mutilado

Nessa circunstância haveria de prevalecer a potencialidade pública do oficio, porque esta serve de elemento impeditivo, ao constar de lei e, por isso sendo capaz de determinar a retração da liberdade, por ser inconciliável a duplicidade de papéis antagônicos no contexto do processo em que deva atuar, salvo em caso de averbação antecipada de impedimento.

Dessa maneira, inexiste regra inexorável impondo a privação da liberdade, podendo haver opção para mantê-la ativada, uma vez tempestivamente resguardada a condição funcional para que não sofra detrimento, com a afetação da matéria a outro membro desimpedido.

É defensável a perpetuação do pronunciamento do órgão do Ministério Público, inaceitando superposição, enquanto permanecer a demanda no correspondente nível judicial, nesse ponto cingindo-se a sua eficácia, pelo advento, a seguir, de novas competências correspondentes aos planos em que estão situados os supervenientes ofícios, em torno dos quais passam a gravitar outros titulares, com as mesmas responsabilidades, sendo a vez destes invocar, por seu turno, a mesma capacidade autônoma e independente.

Auscultamos Enrico REDENTI, dele colhendo a lição, sempre valiosa, de que:

"... o critério fundamental é sempre o já indicado em outras ocasiões: que a competência se determina pelo quid disputatum (quid decidendum) (o que se disputa) (0 que há de decidir). Tradicionalmente se costuma dizer que "a competência é determinada pela demanda". (Derecho procesal civil, trad. de Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redín, Buenos Aires, Ediciones Jurfdicas Europa-América, 1957, t. I, p. 331/2).

Ressalta o insigne processualista italiano, em sua memorável obra, que a competência inicialmente reconhecida, com base na exposição do autor, persiste inalterável até o encerramento da ação, ponderando que pode ser preciso:

"... reexaminar e valorar a competência, tomando em consideração em segundo tempo também as impugnações supervenientes, e disso poderá surgir a necessidade de trasladar o processo a outro órgão judicante porque o que poderia ser competente à vista do que afirmava o autor, já não o é" (ob. et. cit., p. 333).

Ainda que se não alterem as situações de fato, podem os membros do Ministério Público ter convencimento de que a interpretação anterior não guarda correspondência com o seu convencimento a ser produzido em ulterior instância, assim acontecendo, tanto como o fazem os Juízes, que se revelam preparados em aceitando as revisões que possam ser aplicadas aos seus julgados, por magistrados que compõem as superiores instâncias.

Cada qual deve desenvolver os necessários esforços, sem preocupações com injustificáveis suscetibilidades, pois o que importa é que em cada esfera jurisdicional prevaleça o mesmo propósito de esmerar-se para obter a melhor solução, com o máximo de segurança para que se não instale erro irreparável na avaliação da justiça, não sendo essa a ocasião a que se prestem homenagens, em procedimento alheio, às autoridades que compartilharam, de algum modo, no acertamento do processo decisório, pois o aspecto mais relevante é conceder o amparo às partes que efetivamente o mereçam receber, com as correções reconhecidas pertinentes.

Os processos têm prosseguimento, sempre a caminhar para a frente, sem fixações regressivas, tendo que haver uma marcha evolutiva e uma disposição imparcial diante dos resultados pretéritos, considerando-se a situação das partes com o ânimo renovado de independência e autonomia, procurando contribuir com todo aprumo exegético, na análise de todos os pormenores, canalizando os esforços para os aspectos que concernem ao novo julgamento que se haverá de produzir, reexaminando e reavaliando as provas, sendo inaceitável a apatia ou a indiferença quanto aos rumos que devam provir, não como ao sabor do acaso, ou da mera repetição, e sim à vista do dever funcional que assiste ao órgão do Ministério Público, de contribuir ao direcionamento da decisão, sem estorvos sectaristas em nome de imaginosa infalibilidade que não se compadece com a lógica dos juízos humanos, considerados na própria idéia de defesa inerente ao recurso.

As acomodações internas não podem prevalecer contra os interesses contrapostos das partes, mantendo-se em conformidade com os padrões do devido processo legal, razão para que estejam asseguradas, nessas transposições de graus, a garantia inalienável do princípio contraditório às partes, com o qual obviamente não se conciliam posições rígidas e alinhamentos cativos dos que exercem funções jurisdicionais e as inerentes aos membros do Ministério Público, em cumprimento de atividade "essencial à função jurisdicional do Estado"; caso contrário estariam faltando ao dever no cumprimento de atitudes isentas, em relação aos contendores.

É preciso que os órgãos que compartilham, de algum modo, na solução dos litígios judiciais fiquem, por completo, imunes a compromissos com os julgados anteriores, ou com qualquer tipo de adesão a ocasionais razões de Estado, tendo de procurar no âmago de suas convicções, após os reexames empreendidos, os fundamentos para os orientarem, com a mesma autonomia e independência que tiveram os julgadores e membros do Ministério Público em seus anteriores desempenhos, não dando causa a um decessona segurança devida às partes, motivado pela parcialidade silenciosa, vale dizer pela não ação nos momentos em que deviam funcionar de modo compatível à situação concreta de reexame do processo.

Se os órgãos do Ministério Público podem concluir as suas manifestações em prol do princípio da supremacia constitucional ou do reforçamento da legalidade, tendo a necessária independência e autonomia para assim fazer, não há razão para que se transponham a outros espaços de competências, onde serão encontrados titulares com equivalentes disponibilidades interpretativas, todos coerentes em suas próprias convicções, e não estarão, da mesma maneira, abdicando da autonomia e independência, quando emitirem os seus pronunciamentos.

Mas, se de modo contrário, o representante do Ministério Público mantiver-se silente ao pretexto de já haver pronunciamento de outro membro da instituição na precedente instância, demonstra, assim, à saciedade, que a sua contribuição é prescindível ou desvaliosa, concorrendo com exemplo de descaso aos litigantes, ainda que não o pressintam, dando causa a que se frature o princípio da eqüidade devida às partes, por ser regra inerente ao devido processo legal, que o acompanha em todos os trâmites, até que se produza a coisa julgada definitiva.

Cada um deve cumprir o papel que lhe cabe, de acordo com a lotação de seu oficio, contribuindo em sua correspondente instância, com o mesmo quilate de independência e autonomia que tiveram os que o precederam, em outros graus, no exame dos fatos e da situação jurídica, fazendo outro tanto em termos de reexame processual, como o sistema processual impõe, sem que dele caiba dispor a seu talante.

Se assim não for observado, formar-se-á uma camada impermeável, com barreira instalada de preconceitos, a reagir, reagir e reagir, sem sentido prático, pela inalterabilidade das condições judiciais anteriores, tendo por desvaliosas todas as etapas processuais consecutivas, como se tudo devesse resumir-se no julgamento primeiro, único e derradeiro, guiando-se por arrebatamentos pessoais à margem e inconciliáveis com os princípios legais vigentes.

Quem oficia nos processos judiciais não pode, em sua apropriada instância, enclausurar-se cubicularmente na idéia de inalterabilidade da posição assumida pelas instâncias iniciais, pois isso seria a negação mesma do completo ou parcial reexame da matéria, razão mesma da finalidade dos recursos, para expungir erros nos julgamentos.

4 O exemplo constitucional Inglês: Ubi Ius, Ibi Remedium

Nessas alturas afigura-se necessário retroceder para acompanhar certos peculiares traços evolutivos, de sentido fundamental no Direito Inglês, que tiveram ulterior influência em outros povos, por suas marcantes características, como vem salientado por A. V. DICEY, ao afirmar que há:

"... através da Constituição inglesa inseparável relação entre os meios de garantir um direito e o próprio direito material, constando aqueles do processo judicial. Portanto, por esse ponto de vista, o axioma ubi ius, ibi remedium torna-se qualquer coisa bem mais importante do que um simples processo tautológico. No que se refere ao direito constitucional, significa esse axioma que os ingleses - cujos esforços permitiram edificar gradualmente o conjunto complicado de leis e instituições que chamamos Constituição dedicaram mais afinco a encontrar os remédios, para garantir os direitos individuais, ou (o que é simplesmente a mesma coisa, encarada por outro prisma), para prevenir-se de males definidos, do que a redigir uma Declaração de Direitos do Homem ou de Direitos dos Ingleses. Os atos de Habeas Corpus não declaram nenhum princípio, não definem nenhum direito; mas na prática, valem mais do que uma centena de artigos constitucionais em garantia à liberdade individual" (Introduction a I'étude de Droit Constitutionnel, traduction française de André Briere e Gaston Jeze, Paris, V. Giard & E. Briere, 1902, p. 179/180).

Esse tema encontra em tempos atuais renovada abordagem sobre a prioridade atribuída pelo Direito Inglês, em relevante contribuição de Rolando Tamayo y SALMORÁN, ao expor:

"... ainda que sem alcançar o nível doutrinário do sistema romanista continental, havia logrado seu amadurecimento no século XVI. Suas instituições originadas principalmente no processo, criaram um sistema repleto de remedíes (recursos processuais) que contribuíram com um conjunto de garantias para os jurisdicionados" (Contribuición al estudio de Ia Constituición, México, Universidad Nacional Autónoma dei México, 1979, po 151 ).

O que mais diretamente interessa ao assunto cogitado é de figurar entre os elementos de significativa importância no contexto dos remédios processuais a revisibilidade dos julgamentos judiciais, colocada ao dispor das partes ao se considerarem prejudicadas pela decisão, tendo, por primeiro efeito, impedir que logo adquira condição de coisa julgada, havendo de permeio a oportunidade a que se renove o julgamento, importando na consagração da pluralidade de instâncias judiciárias.

O Brasil, logo a partir da Constituição de 25 de março de 1824, previu, em seu art. 158, o sistema dualista de instâncias, assim dispondo:

"Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações que forem necessárias para comodidade dos Povos."

José Antônio Pimenta BUENO não poupou encômios ao preceito constitucional, assim comentando:

"Se os Juízes julgassem em um só grau, se todas as questões fossem decididas, peremptoriamente, em sua alçada, se houvesse uma só instância, não haveria meio de corrigir o abuso ou erro que eles cometessem, por isso mesmo que não haveria recurso propriamente dito. Ainda que fossem responsabilizados, a injustiça ficaria consumada. Seria uma tirania.

"É pois indispensável que haja dois graus de jurisdição, como um meio justo de conseguir imparcial justiça, de purificar as decisões do abuso, ou do erro" (Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, Rio de Janeiro, Tip. Imp. e Consto de J. Villeneuve E.C., 1857, po 341).

Ao que se pode verificar, foi sempre o recurso um fator providencial de defesa contra a irreparabilidade de erros nos julgamentos, colocando-os na mira para continuidade da discussão, que se travara antes e vai prosseguir para reexame dos diferentes aspectos atacados.

Desse modo, as partes retomam as discussões e os órgãos públicos que interferem nos processos, como os magistrados e os membros do Ministério Público, estão obrigados a procederem a novos exames em busca da verdade dos fatos e da solução jurídica mais adequada, pela continuada garantia de acesso a uma segura prestação jurisdicional, caso contrário a recorribilidade seria uma falácia, não passando de exercícios dissimulatórios, incompatíveis aos direitos das partes e à dignidade das autoridades que se devem portar com incensurável e respeitosa imparcialidade.

5 A recorribilidade decorre da prevenção humana contra erros nos julgamentos e a lição de humildade dos magistrados por não se considerarem infalíveis em seus ofícios

Por outro lado, a competência dos órgãos atuantes nos processos judiciais não é unitária, dominando o sistema pluralista, não apenas representado pelos antagonistas, também pela variedade de procedimentos ajustáveis às diferentes situações, e ainda pela pluralidade escalonada de órgãos, colocados ao dispor das partes insatisfeitas com os resultados desfavoráveis dos julgamentos, valendo-se do direito de recurso para que sejam sanados, ainda em tempo, erros judiciais que se podem tornar irreparáveis.

O grau de recurso deve ser a mais autêntica expressão do pluralismo na funcionalidade judiciária e do Ministério Público, que tem perante a atividade jurisdicional papel essencial, razão bastante a que não possa ser prescindida.

Ficará completamente transtornada a idéia de competência, perdendo o seu sentido coadunado à ordem, se houver apenas sectarismo no uso do poder ou competência potestas conduzindo-se por indisfarçáveis pendores hegemônicos.

Melhor será, não há dúvida, manter a competência nas raias colocadas por Francesco CARNELUTTI, quando expõe:

"Competência, como requisito do ato, é, pois, a coincidência entre a pessoa que o pratica e o sujeito da potestas de que o ato é o exercício, ou melhor, em que o ato se filia" (Teoria geral do direito, trad. de A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo de Castro, São Paulo, Livraria Acadêmica Saraiva & Cia. Editor, 1942, p. 380).

O recurso, ao acarretar o deslocamento da instância, faz permanecer, no entanto, a mesma linhagem de legitimidade, passando a repercutir na competência superveniente, vinculada a outro órgão e com outro titular na correspondente potestas inerente à mesma instituição, para refletir-se objetivamente sobre a situação processual colocada em nível de reexame.

Não podem existir cadeias de dependência de baixo para cima, nem do alto para baixo, tendo todos os órgãos obrigações funcionais devidas às partes com a altiva responsabilidade para inspirar confiança nos veredictos que estejam sendo produzidos.

Cabe relembrar Pontes de MIRANDA, em precisa e esmerada focalização conceitual do recurso:

"Nem sempre as resoluções judiciárias sentenças ou despachos são isentas de faltas ou defeitos quanto ao fundo, ou sem infração das regras jurídicas processuais concernentes à forma, ao procedimento. Desinteressar-se-ia o Estado da realização do seu direito material e formal, se não desse ensejo à correção de tais resoluções defeituosas, ou confiaria demasiado na possibilidade de acerto do juiz singular, ou do tribunal de primeira instância. Afastando esse perigo e aquele descaso, o Estado admite, de regra, o recurso, que implica em reexame do caso, em todos os seus elementos, ou só em algum deles" (Comentários ao código de processo civil, Rio de Janeiro, Forense, 2. ed., 1960, t. XI, p. 3).

A consagração do sistema da recorribilidade prevalece nas nações mais civilizadas, figurando como princípio fundamental na ordem constitucional vigente brasileira, ao lado do princípio contraditório, como consta do art. 5°, LV, da Constituição Federal, para que se complete o sistema do devido processo legal, o qual, com essas características irredutíveis, se impõe ao efetivo cumprimento pelos magistrados e membros do Ministério Público, com o indispensável desvelo em seus atos, como garantia de eficiência nos resultados.

Aniquilar-se-iam os compromissos de imparcialidade se não dispensassem os membros do Ministério Público, em geral, a atenção igual a todos os litigantes nos procedimentos em tramitação nas diferentes esferas em que se distendam os seus ofícios, tendo de haver em cada oportunidade o mesmo e independente empenho, o que não pode ser atribuído apenas ao devotamento, como exceção de poucos, sendo necessário o mais genuíno reexame de toda a matéria versada, salvo se antes tiver sido invocada causa impeditiva que libere o membro que teria de oficiar, deferindo-se-lhe substituto desimpedido para enfrentar a espécie considerada.

As divergências irrompidas devem ter o seu ciclo de duração não muito extenso, pois todo e qualquer sistema possui as suas válvulas descompressoras para descongestionar os seus fluxos e reacomodar os seus procedimentos em adequados e objetivos padrões legais, recompondo-se a harmonia que deve pairar na instituição.

Merecem ser invocadas as judiciosas considerações de Bigne de VILLENEUVE, ao referir-se que:

"... a engenhosidade humana terá muito que fazer para realizar ao mesmo tempo a independência e a anastomose das diferentes autoridades políticas e sociais, de modo que a sua atividade particular e sua atividade geral, não somente que não se contraponham e prejudiquem um a outro - isso seria triunfal realização - de maneira que eles se ajustassem e reciprocamente se desenvolvessem sem que houvessem de parte à parte sofrido restrições ou pesados sacrifícios. A esse problema vital tem sido sempre aplicada uma solução prática, seja por aproximações empíricas, ou em virtude de princípios preestabelecidos. Podem não ser sempre boas essas soluções. Sendo os erros reconhecidos de graves conseqüências em semelhante assunto, podendo resultar, por vezes, em decomposições que podem levar certas sociedades ao declínio. Em se atribuindo no modo de agir uma predominância muito grande aos interesses privados, sobrelevando-os aos da coletividade, abre-se caminho à anarquia, pela negação da ordem e dano ao bem comum. Se, ao inverso, for o interessse geral que brutalmente afirme o seu exclusivismo, a anemia se apodera do corpo social, seguindo-se a atrofia progressiva dos elementos constitutivos. Naturalmente, a saúde integral do organismo pode encontrar-se mais ou menos gravemente atingida" (Traité général de l'État - essai d'une théorie realiste de Droit Politique, Paris, Recueil Sirey, 1929, p. 255/6).

Pelo prudente e meticuloso exame da matéria, verifica-se que o caso iniciou-se de modo impróprio com a preocupação disciplinar, devendo ser normativamente dirimido, dissipando-se as dúvidas interpretativas, através de Ato Normativo, com eficácia erga omnes, comportando aplicação da competência do Conselho Superior, contida no art. 57, I, em seu alcance residual, fora, portanto, dos casos especialmente declinados no referido artigo da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993.

Nesse sentido, fica esclarecido que os princípios de autonomia e independência vigoram indistintamente em toda a iSnstituição, cabendo a cada um de seus membros invocá-los em seus específicos desempenhos, no raio de ação correspondente ao seu ofício, sem que os possam transpor, ou serem absorvidos por ser impertinente a utilização de atos produzidos de uma para a outra instância, como elementos substitutivos ou supletivos de competências em que o Ministério Público Federal esteja a cumprir como atividade "essencial à função jurisdicional do Estado", em diferente grau, cabendo, como dever indeclinável aos que tenham ofícios vinculados a esses órgãos, praticar os atos processuais de reexame dos recursos pendentes, salvo se antes apresentarem, quanto ao caso focalizado, plausível motivo de incompatibilidade, impedimento ou suspeição, nos termos da legislação processual, sendo-lhe dado, nessa hipótese, eventual substituto.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 4, n. 2 (jul./dez. 1997).

 

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