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O exercício do direito de voto e a participação do preso provisório no processo eleitoral na sociedade brasileira e catarinense

Por: Juliana Lobo Camargo

1 Introdução

Este texto é parte do trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, no dia 11 de agosto de 2008, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Aquele trabalho foi orientado pela profa Dra Vera Regina Pereira de Andrade e co-orientado pela profa MSc. Yuri Frederico Dutra. Obteve aprovação, com nota dez, atribuída pela banca examinadora composta pelo Procurador da República em Santa Catarina, Dr. Claudio Dutra Fontella, e pela advogada Daniela Félix Teixeira. O artigo a seguir, derivado do trabalho de conclusão de curso, contém atualizações referentes às eleições de 2008.

Justamente no último pleito, em outubro de 2008, eleitores brasileiros foram às urnas escolher quem os representaria nos Poderes Executivo e Legislativo municipais pelos quatro anos seguintes. Entretanto, contrariando a Constituição Federal de 1988 e seus preceitos fundamentais, muitos foram excluídos desse processo e nem sequer tiveram a chance de expressar, nas urnas, sua participação na história política do País.

Viver em um Estado Democrático significa ter espaços para lutar por condições mínimas de dignidade e justiça social, participando da vida pública, direta ou indiretamente. Apesar de o Brasil ser considerado, na teoria, um Estado Democrático de Direito, o que se observa, na prática, é a exclusão de todas as formas de participação das pessoas discriminadas e que vivem à margem da democracia. No Estado Democrático, o Direito tem a responsabilidade de regular as relações entre os indivíduos, as relações entre o indivíduo e o Estado, entre os direitos civis e os deveres cívicos, e entre os direitos e deveres da cidadania, definindo as regras de como viver de maneira democrática.

A cidadania é um caminho para novos espaços de liberdade e identifica o indivíduo como fração ou parte de um povo. Fazer parte do povo de determinado Estado significa estar numa situação jurídica não só de deveres, mas também de direitos. Exatamente em função dessa correspondência é que os presos provisórios, sujeitos de deveres perante o Estado, não podem ser impedidos de exercerem seus direitos de cidadãos. Os encarcerados não têm voz nem representação, são neutralizados perante a sociedade. Constituem um peso abandonado nas prisões, destinados aos maus-tratos, doenças, fome e abandono.

Ocorre que o sufrágio universal está garantido pela legislação brasileira, conforme preceituam a Constituição Federal, em seu art. 14, e o Código Eleitoral, em seu art. 136. Nesse trecho da Constituição Federal, o dispositivo determina que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. Já no Código Eleitoral há previsão de que deverão ser instaladas seções nos estabelecimentos de internação coletiva, onde haja, pelo menos, cinqüenta eleitores.

O direito dos presos provisórios ao voto foi regulamentado também pelas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nas eleições de 2008, por exemplo, seções eleitorais foram instaladas em alguns Estados, a pedido de juízes dos tribunais regionais eleitorais, em conjunto com Ministério Publico e representantes de movimentos sociais.

O objetivo deste trabalho, portanto, é expor o entendimento dos tribunais brasileiros sobre a não-aplicação do art. 136 do Código Eleitoral e das resoluções do TSE acerca do exercício do direito de voto do preso provisório. Ademais, também busca verificar quais os argumentos utilizados pelos juízes do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRESC) para justificar sua posição.

Assim, primeiramente, será definido o conceito de cidadania e suas três dimensões (civil, política e social). Partindo do exercício da cidadania política, em seguida serão observados os direitos políticos, em especial o direito de sufrágio universal. Depois, será exposto o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, e será feita uma breve explicação das prisões processuais, analisadas a partir de entendimentos doutrinários.

Por fim, será examinada a recepção do art. 136 do Código Eleitoral e das resoluções do TSE, a partir da interpretação dos tribunais regionais nos Estados brasileiros onde ocorre efetivamente o exercício do voto pelo preso provisório. Será descrito também o perfil dos criminalizados em Santa Catarina, e o entendimento do Tribunal Regional Eleitoral catarinense com relação ao exercício do voto pelos presos provisórios.

É conveniente ressaltar que este trabalho prioriza o enfoque nos direitos humanos, com base nos estudos de cidadania e cárcere. Busca propor que os direitos dos reclusos provisórios não podem ser negados, já que retirar o direito de sufrágio dessas pessoas seria, diante da sociedade, excluir o seu direito de cidadania.

2 Democracia e Estado Democrático de Direito: o ambiente do exercício de voto pelo preso provisório

Depois de 24 anos de ditadura (período de 1964 a 1988), quando o Estado detinha o poder e controlava a vida da sociedade através da violência e de proibição a qualquer idéia contrária ao modelo de governo proposto, a sociedade brasileira, por meio de seus representantes, produziu a Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que consagra o Brasil como um Estado Democrático de Direito.

Conforme preceitua o art. 1º da Carta, a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. O parágrafo único do mesmo dispositivo expressa que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Entende-se por povo todos os nacionais, ou seja, brasileiros natos e naturalizados, detentores do poder exercido pelos representantes escolhidos de maneira direta ou indireta.

O Estado Democrático de Direito desenvolveu-se com a tentativa de unir o ideal democrático ao Estado de Direito, amparado pelas conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social, tendo como princípios: a vinculação a uma constituição como instrumento básico de garantia jurídica, a sociedade organizada democraticamente, um sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, a justiça social como uma maneira de corrigir as desigualdades, a igualdade como forma de compor uma sociedade mais justa, a divisão de poderes ou funções, a legalidade como medida do Direito e modo de evitar o abuso de direito e a segurança e certeza jurídicas.

Segundo Streck e Morais (2003), a forma democrática do Estado de Direito tem como objetivo a igualdade, a transformação do status quo, a lei surgindo como meio de transformação da sociedade e a pretensão de reestruturar constantemente as relações sociais. Com isso, o liberalismo e a democracia se fundem, ocorrendo a redução aparente das diferenças econômicas e sociais, baseado numa constituição onde deve preponderar o interesse da maioria. Entretanto, observa-se que na prática acontece o contrário, como ilustram Streck e Morais (2003, p. 155):

Sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar ”democraticamente” a minoria, em nome do interesse nacional. Ou – o que é cem vezes pior – que a minoria, detentora do poder de controle social, pode-se utilizar periodicamente do voto majoritário popular, para legitimar todas as exclusões sociais, em nome da democracia.

Ademais, de acordo com Streck e Morais (2003), a democracia exige justiça social, não sendo possível falar em democracia quando os indicadores econômico-sociais apontam para uma maioria abaixo da linha de pobreza. A seguir, passa-se a conceituar a cidadania, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito contemplado pela nossa Constituição.

3 Cidadania como fundamento do Estado Democrático de Direito

Segundo Andrade (2003, p. 66), para a cultura jurídica dominante no Brasil, uma cultura jurídica positivista de inspiração liberal, o tema relativo à cidadania confunde-se com o tema da nacionalidade, ou cidadania restringe-se, muitas vezes, somente aos direitos políticos, o direito de votar e ser votado.

Desta forma, o conceito de cidadania, que é um elemento constitutivo de tal cultura [cultura jurídica positivista de inspiração liberal] é tributário de suas matrizes e, em especial, do liberalismo, razão pela qual é concebida (tal como nessa matriz) com o direito à representação política e o cidadão definido como indivíduo nacional titular de direitos eleitorais (votar e ser votado) e do direito de exercer cargos públicos. Tal conceito vincula-se, por sua vez, a um modelo específico de democracia, fazendo com que a cidadania seja dela dependente e inexista fora do seu interior. Trata-se da democracia representativa ou indireta, originada da mesma matriz liberal. O conceito moderno de cidadania aparece, assim, umbilicalmente ligado ao conceito de democracia e por ele moldado.

Entretanto, observa-se que a cidadania não é somente um conceito que pode ser reduzido a ser nacional ou a ter direitos políticos. O tema referente à cidadania é mais amplo, e restringi-lo a parcos conceitos é o mesmo que reduzi-lo ao autoritarismo. Sobre isso, esclarece Andrade (1993, p. 29):

Ao aprisionar conceitualmente a cidadania como categoria estática e cristalizada – tal qual sua inscrição nas Cartas Constitucionais – dogmatiza seu significado, reduzindo-a a um sentido unívoco. Nessa perspectiva, esvazia-se sua historicidade, neutraliza-se sua dimensão política em sentido amplo e sua natureza de processo social dinâmico e instituinte.

A cidadania é um tema discutido pelos movimentos sociais dos Estados Democráticos, que reivindicam para seus membros melhores condições de nível econômico, político, social e cultural. Ser cidadão implica ter direitos e deveres. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, um dos documentos básicos da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada em 1948, enumera os direitos que todos os seres humanos possuem.

A Declaração foi baseada nas Cartas de Direito dos EUA (1776) e da Revolução Francesa (1798). E expõe que todos os homens são iguais perante a lei sem discriminação de raça, credo ou cor, bem como todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei. Ademais, todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

Atualmente, após a luta contra o regime ditatorial e o estabelecimento da Constituição Federal de 1988, a sociedade brasileira encontra-se vivendo em um Estado Democrático de Direito, que expõe, teoricamente, os deveres e garantias dos cidadãos. Entretanto, os movimentos sociais ligados aos direitos humanos das minorias trabalham incansavelmente para que esses direitos e deveres sejam realmente postos em prática, conseqüentemente efetivando a cidadania, de forma ampla e irrestrita.

Considerando que a sociedade brasileira está dividida em classes, grupos, movimentos, organizações sociais com interesses diferentes; que tem um aparato institucional burocrático, lento e formalista, com avanços e retrocessos consideráveis no que diz respeito aos direitos adquiridos, é importante observar a união de pequenos grupos e a sua luta por direitos que surgem com as transformações da sociedade. Segundo Andrade (1993), a luta de classes influencia diretamente o desenvolvimento da cidadania, e vice-versa. Dessa maneira, não só a transformação da cidadania causou impacto sobre o conflito entre as classes, mas também esses conflitos afetam diretamente a questão da cidadania.

Inspirada nesses elementos e em sua relação dialética, Andrade (1993) desenvolve a hipótese de que o discurso da cidadania é politicamente complexo e tem dois sentidos: um sentido autoritário e outro  democrático. Para ela (1993, p. 71-73), o sentido autoritário é aquele que “defende o discurso único da cidadania e, nesse sentido, aprisiona seu significado, neutraliza seus componentes políticos e sua natureza de processo social contraditório”. Dessa forma, o sentido autoritário impede a ampliação da cidadania em seus diversos sentidos.

Já o discurso da cidadania se torna democrático quando

enunciado pelos sujeitos sociais e políticos, visando erigi-lo em espaço político reivindicatório de direitos – seja de velhos direitos estratificamente reconhecidos, ou de novos direitos – bem como em espaço de exercício de direitos, estatais e paraestatais.

Assim, para o discurso da cidadania se definir entre autoritário e/ou democrático, dependerá de qual o tipo de sociedade e a ideologia que se tem por base, além do momento histórico em que esta sociedade está inserida.

Ainda, segundo Andrade (1993, p. 79), a formação dos direitos políticos ocorreu no século XIX, impulsionada pelas realizações no âmbito da cidadania civil. “A criação e ampliação dos direitos políticos rumo à universalização do direito político de sufrágio, processou-se na esteira das próprias potencialidades democráticas da cidadania civil, ou seja, na esteira dos direitos civis enunciados.”

Para que houvesse essa ampliação do direito político de sufrágio foi necessária muita luta dentro do Estado capitalista, já que ampliar a cidadania política significa ampliar institucionalmente o Estado capitalista liberal em democrático-representativo, trazendo à tona a característica ambígua da cidadania, ou seja, seus sentidos autoritário e democrático. Andrade (1993, p. 80) afirma que:

[...] por um lado, o sufrágio universal, com o mínimo de restrição possível, instaura a democracia política, incorporando sujeitos historicamente excluídos do direito de sufrágio, forjando a concretização da liberdade e igualdade políticas firmadas discursivamente pelo princípio democrático.

Com isso, o sentido democrático do direito ao sufrágio universal na democracia liberal se enfraquece no momento em que a democracia é vista somente como sistema político e a cidadania apenas como direito à representação, passando a subsistir como uma circunstância de dominação das classes de maneira legitimada. De acordo com Andrade (1993, p. 81), as classes terem acesso à participação no poder é uma grande conquista, no entanto a sociedade somente se preocupa com a cidadania política quando não a tem.

A igualdade de acesso à participação no poder, que a cidadania política reivindica, representa, efetivamente, uma conquista histórica, sobretudo se comparada à não-participação do escravo e do servo. E sua importância política evidencia-se com maior ênfase, paradoxalmente, onde se encontra suprimida: nos regimes autoritários.

A forma como o modelo de democracia representativa liberal está posto – como condição de dominação social e política no Estado capitalista – estabelece a hipótese de opções limitadas, mas plurais, em face da liberdade que o cidadão possui de eleger seus representantes. Dessa forma, tem-se que os governantes escolhidos foram, ao menos, aqueles que a maioria dos cidadãos, que votam, escolheu.

Para Andrade (2003, p. 69), a cidadania reduzida ao exercício do voto significa a redução da participação da sociedade ao momento eleitoral, indicando aos cidadãos quando podem participar na esfera pública. Isso explica o conceito liberal de cidadania restrito apenas à representação, em prejuízo à participação.

Ao reduzir o exercício da cidadania ao fenômeno eleitoral, ou seja, ao instante periódico do voto, reduz o fazer política, na sociedade civil, ao momento eleitoral, designando aos cidadãos onde, como e quando estão autorizados a fazê-la e a ter acesso ao espaço público. [...] Explica-se, assim, porque o conceito liberal de cidadania circunscreve-se ao âmbito da representação em detrimento da participação. É que esta implica a necessidade de associação dos cidadãos (o que fere o pressuposto liberal do homem atomizado) e implica, também, a participação da sociedade civil (o que fere o pressuposto liberal da sociedade civil como lugar destinado às relações econômicas privadas), pois significa introduzir a política num lugar onde é indevida nesse modelo, minando por sua vez a pureza da separação Estado/sociedade civil. Socializar ou politizar o espaço privado implica, enfim, diluir os limites que o separam do espaço público.

Para Andrade (2003), o cidadão é aquele que possui direitos e deveres iguais perante a lei, sendo que o direito político significa ter participação na formação da lei e dos poderes públicos, elegendo governantes que podem agir a favor da cidadania. Essa ação depende dos governantes ou dos cidadãos, que podem evocar os meios corretos para se protegerem de certos abusos por parte dos que estão no poder. A lei é um instrumento que, se bem utilizado, faz valer os direitos dos cidadãos, mesmo que por meio de lutas sociais, fazendo com que a sociedade se transforme e busque um ideal comum.

O tema relativo à cidadania não pode ser utilizado somente por aqueles que detêm o poder. Esse tema também deve ser aproveitado pelas classes marginalizadas, sendo reconstruída em seu sentido universal, servindo de fato a essas classes. Mas isso depende, de acordo com Andrade (2003, p. 73), de uma luta que tem como protagonistas não só os agentes tradicionais da política, como também movimentos sociais e demais organizações que trabalham para a ampliação da cidadania.

[...] os protagonistas da luta através da qual o conteúdo da cidadania vem historicamente se ampliando não são apenas os agentes tradicionais da política, ou seja, os partidos políticos e, a seguir, as organizações sindicais. Paralelamente a estes, movimentos sociais ou comunitários de base, organizações profissionais, comitês de bairros, associações de moradores e de defesa dos direitos humanos, comunidades eclesiais de base, organizações de auxílio mútuo, organizações não-governamentais (e sua articulação em redes, em nível local ou planetário) fazem parte de uma longa lista de organizações que têm encontrado, na micropolítica, uma nova forma de politizar o tratamento das questões sociais.

Conforme Andrade (2003, p. 27), a expansão do sistema penal é um obstáculo para a construção da cidadania e um risco para o diálogo democrático do poder, já que a exclusão e a criminalização dos pobres e excluídos, selecionados pelo sistema penal, aumentam a desigualdade na sociedade.

As implicações para a cidadania – e a democracia – são significativas. Quanto mais se expande e legitima publicamente o sistema penal, chegando ao ponto, muitas vezes, do extermínio socialmente legitimado, mais obstáculos à construção da cidadania e mais riscos para a gestão dialogal e democrática do poder, eis que o binômio exclusão-criminalização, que faz dos pobres e dos excluídos socialmente os selecionados penalmente (criminalizados) radicaliza a escala vertical da sociedade (a desigualdade e as assimetrias), potencializando que a sociedade excludente se torne, cada vez mais, abortiva e exterminadora.

O capítulo seguinte tratará de uma das garantias trazidas pela cidadania e pela democracia no âmbito do Estado Democrático de Direito: os direitos políticos. Em decorrência do princípio da presunção de inocência, serão observadas as prisões processuais e sua passagem de exceção do ordenamento jurídico para regra nas decisões judiciais.

4 Garantias do Estado Democrático de Direito: direitos políticos, presunção de inocência e prisões cautelares

Tratando dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição Federal, em seu art. 5º, consagra o princípio da isonomia com a expressão de que “todos são iguais perante a lei”. Mais adiante, o inciso LVII do mesmo artigo dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

O art. 14, § 1º, I, da Constituição Federal torna obrigatório o voto para os cidadãos maiores de 18 anos, no gozo dos direitos políticos, inclusive para os presos provisórios. Segundo Moraes (2005, p. 542), direitos políticos “são o conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular”. Essas regras permitem que o indivíduo exerça a liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, contribuindo para o exercício da cidadania política.

O sufrágio é um direito que decorre diretamente do princípio de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. É a instituição fundamental da democracia representativa. No sufrágio consubstancia-se o consentimento do povo que legitima o exercício do poder. Essa é a função primordial do sufrágio, da qual decorrem as funções de seleção e nomeação das pessoas que hão de exercer as atividades governamentais.

O exercício do direito do voto deve ser garantido a todos os criminalizados pelo sistema penal, independentemente de serem provisórios ou condenados, pois mantém as pessoas vinculadas às questões políticas mais importantes do País, como cidadãos, titulares de direitos e obrigações. Além disso, a melhoria do sistema carcerário brasileiro poderia, por exemplo, dar-se a partir da aprovação ou recusa de propostas de políticas públicas na área criminal e penitenciária, mensuradas pela eleição ou derrota de certos legisladores no pleito. Afinal, os votos viriam dos cidadãos encarcerados, que conhecem a realidade desse sistema melhor que vários legisladores.

Contudo, o presente trabalho objetiva expor a situação dos indivíduos encarcerados provisoriamente, cuja sentença ainda não transitou em julgado, devendo-se levar em consideração, dessa forma, os princípios e garantias constitucionais, como o princípio da presunção de inocência, disposto também nas declarações e pactos internacionais.

Entre as aplicações do princípio da presunção de inocência está aquela em que o acusado deve ser tratado como inocente durante o andamento processual. O fato de o indivíduo ser considerado acusado durante a investigação por si só já é uma forma de constrangimento. Por isso as medidas coercitivas que forem inevitáveis durante o processo só podem ser tomadas na exata medida de sua necessidade, adotando-se, durante a investigação, meios que não tragam constrangimentos ao investigado.

Assim sendo, os que estão encarcerados provisoriamente devem ser tratados como inocentes e, portanto, se eleitores, capazes de exercer seu direito de sufrágio universal por meio do voto. Além do que, aqueles que aguardam o andamento da investigação ou processo em liberdade exercem, como previsto em lei, seus direitos políticos.

Outra aplicação do princípio da presunção de inocência é a de que o acusado não pode ser exposto de maneira humilhante nos veículos de comunicação. O modo como a mídia aborda casos que estão sendo investigados pode prejudicar o acusado, que às vezes já é apresentado como culpado, influenciando o resultado da apuração processual. De acordo com Batista (2002, p. 275), a mídia não só informa como também investiga e pune:

[...] quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um processo em curso, e assume diretamente a função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do caso – de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução processual –, passou a atuar politicamente.

Nesse contexto, a mídia aborda a violência de maneira sensacionalista e faz disso uma das formas de atrair a atenção da grande população, além de ser o tema principal que move seu conteúdo informativo. Cada vez mais programas de variedades adotam formas judiciais e fazem seu próprio julgamento, deixando de lado entrevistas bem-comportadas que não aumentam a audiência, conforme Batista (2002, p. 283):

Em nosso país, a televisão aberta do chamado horário nobre intoxica o povo com diversos programas de variedades: informações inconseqüentes, tricas e futricas de bastidores, números musicais no geral indignos do nível que alcançamos nessa arte, entrevistas bem comportadas, tempo gasto no inócuo e na mesmice.

Assim, tanto os jornais quanto a televisão exibem não só programas de entretenimento como também veiculação da prisão de indivíduos que nem sequer foram processados e têm sua privacidade invadida pelos textos e imagens exibidos, encenando uma sociedade que é comandada pela criminalidade e selecionando com seus holofotes quais serão condenados, como ensina Andrade (2003, p. 24):

A mídia encarrega-se de encenar, entre o misto do drama e do espetáculo, uma sociedade comandada pelo banditismo da criminalidade, e de construir um imaginário social amedrontado. À mídia, incumbe acender os holofotes, seletivamente, sobre a expansão da criminalidade e firmar o jargão da necessidade de segurança pública como senso mais comum de nosso tempo.

Também deve ser levado em consideração o modo como as notícias são abordadas pela mídia. Em vez de instruir o público leigo sobre os detalhes do sistema penal, a mídia expõe de maneira simples e sensacionalista o fato de o indivíduo entrar algemado em uma viatura policial, tratando-o como inimigo da sociedade.

Nesse sentido, de acordo com Zaffaroni (2007, p. 87), o discurso dos meios de comunicação influencia os juízes a tomarem decisões que estejam de acordo com o que é veiculado pela mídia. Caso a sentença discorde do que é proferido, o juiz corre o risco de envolver-se em sérias dificuldades.

Pouco importa o que as constituições e o direito internacional dos direitos humanos disponham se os juízes não podem aplicar suas disposições, sob pena de serem denunciados e perseguidos pela pressão dos meios de comunicação, pelos corpos colegiados das próprias estruturas judiciais, pelos políticos que aproveitam para eliminar os magistrados incômodos, para fazer publicidade ou, simplesmente, por seus próprios colegas empenhados em desprestigiar um possível competidor em uma promoção ou intrigas palacianas.

Contudo, essas são apenas algumas aplicações do princípio da presunção de inocência, cabendo novas interpretações orientadas no sentido de que o acusado seja considerado como sujeito de direitos e deveres perante o Estado, ao contrário de um mero objeto de investigação.

Adentrando no outro tópico, tem-se que as prisões cautelares são também chamadas de prisões processuais, ou prisões provisórias, adotadas no curso do processo, antes de a sentença penal condenatória transitar em julgado. Esse tipo de medida é provisório e deve durar somente enquanto persistirem os motivos que justifiquem sua decretação.

De acordo com Barreto (2007), os tratados internacionais admitem a possibilidade da prisão provisória, desde que respaldada por quatro grupos de exigências: requisitos materiais que autorizem a prisão, controle judicial da prisão, condições materiais do cumprimento da privação de liberdade e limitação temporal do cumprimento da medida privativa.

Em decorrência dos princípios constitucionais, a prisão provisória deve ser bem fundamentada, utilizada somente em casos excepcionais e ser, no mínimo, proporcional à pena que será aplicada em caso de condenação. O juiz deve demonstrar sua necessidade (fumus boni iuris e periculum libertatis), justificando a decretação nos requisitos previstos em lei, afinal, teoricamente, a prisão provisória não é uma pena, nem mesmo sua antecipação. Portanto, esse tipo de medida tomada no curso do processo é vista como violenta e odiosa, já que cerceia a liberdade de um indivíduo que nem sequer foi condenado.

Segundo Zaffaroni (2007, p. 70), na América Latina, as medidas cautelares são a característica mais destacada do poder punitivo, ocorrendo uma inversão do sistema penal formal, pois a punição é exercida na forma da privação de liberdade sem sentença. Dessa maneira, para o autor, a medida cautelar transforma-se em pena e, por cautela, todos são “condenados” em processos intermináveis, tornando-se a liberdade provisória uma forma de absolvição.

A medida cautelar é pena cautelar, ou seja, por precaução, o poder punitivo é exercido condenando-se materialmente todos os acusados a uma medida e revisando-se com grande parcimônia essas condenações, num processo que se arrasta anos a fio, com o intuito de verificar se corresponde a uma pena formal. O desencarceramento ou a cessação da prisão preventiva ou provisional representa uma absolvição, pois corresponde a quase todos seus efeitos.

Neste contexto, as seguintes espécies de prisões cautelares estão previstas no ordenamento jurídico brasileiro: prisão em flagrante (art. 5º, LXI, da CF); prisão temporária (Lei n. 7.960/1989); prisão preventiva (art. 311 do CPP); prisão decorrente de pronúncia (art. 408, § 1º, do CPP); e prisão decorrente de sentença condenatória recorrível (art. 393, I, do CPP).

A prisão cautelar não serve para antecipar a condenação. Qualquer prisão cautelar deve ser decretada apenas quando amparada pelos requisitos legais, devendo ser privilegiada a presunção de inocência ante a culpabilidade. Seu uso exagerado faz com que se perca o caráter de exceção para se tornar regra, violando os princípios e garantias legais.

Há uma tendência dos juízos em violar o princípio da presunção de inocência e suas aplicações. Na prática, não há controle judicial das prisões provisórias; a excepcionalidade e a razoabilidade dos prazos não são respeitadas, além de os requisitos que deveriam fundamentar a decretação da prisão provisória (garantia da ordem pública e da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e necessidade de assegurar a aplicação da lei penal) não serem obedecidos, levando a uma antecipação da sanção penal.

De acordo com Barreto (2007), há mecanismos que influenciam significativamente na redução da violação do princípio da presunção de inocência, como o controle judicial efetivo das prisões em flagrante, a celeridade e observância dos prazos processuais ligados à razoabilidade e a proporcionalidade na duração dos processos. Dessa forma, Barreto (2007, p. 122) conclui que:

O controle judicial do flagrante e o respeito ao limite máximo do tempo de prisão provisória não solucionam definitivamente o problema do uso indiscriminado da custódia cautelar, mas reduzem a patamares menos graves a violação ao princípio da presunção de inocência.

Enquanto esses mecanismos não são colocados em prática, observa-se que o princípio da presunção de inocência fica restrito aos discursos, ao mesmo tempo em que as modalidades de prisão provisória passam de exceção à regra no sistema penal, com o propósito de uma antecipação da pena.

A seguir, será analisada a recepção do art. 136 do Código Eleitoral e das resoluções do TSE, conforme a interpretação dos tribunais regionais, nos Estados brasileiros com o efetivo exercício do voto pelo preso provisório. Será descrito também o perfil do criminalizado em Santa Catarina e o entendimento do Tribunal Regional Eleitoral desse Estado com relação ao exercício do voto pelo preso provisório.

5 O exercício de voto do preso provisório no Estado Democrático de Direito brasileiro

Segundo o Relatório Estatístico-Analítico do sistema prisional do Brasil, em junho de 2008, o País mantinha sob custódia 440.013 pessoas. Estavam encarceradas das seguintes formas: 29,71% em regime provisório, 37,40% em regime fechado, 13,70% em regime semi-aberto, 4,89% em regime aberto e 0,89% submetidas a medidas de segurança. Do total de presos, 82% eram homens e 18% mulheres. O Relatório Estatístico-Analítico dimensiona em 277.847 as vagas no sistema prisional brasileiro.1 Os dados oficiais demonstram que um terço da população carcerária brasileira que está presa provisoriamente sofre a antecipação da pena e, muitas vezes, quando recebe a condenação, já cumpriu a pena à qual é submetida; ou, quando é absolvida, passou uma eternidade encarcerada, perdendo o emprego, a família e a credibilidade perante a sociedade.

O sistema penitenciário não está inserido na discussão das políticas públicas. Com isso, os criminalizados deixam de ser convocados a participar desse processo, ficando à margem da sociedade. Para serem ouvidos, eles se utilizam da ferramenta que chama a atenção das pessoas para suas reivindicações: as rebeliões, forma de expressão visível da realidade vivida nos estabelecimentos penais do País. Entretanto, a ampliação do rol de pessoas legitimadas a participar das discussões relativas às políticas públicas diz respeito ao direito de voto do preso, seja provisório, seja condenado.

A Resolução n. 14/1994 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) fixou as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil e assegura os direitos políticos dos presos provisórios em seu art. 63: “são assegurados os direitos políticos ao preso que não está sujeito aos efeitos da condenação criminal transitada em julgado”.

Já o Código Eleitoral, em seu art. 136, expõe que deverão ser instaladas seções eleitorais em estabelecimentos de internação coletiva onde haja pelo menos cinqüenta eleitores. Entende-se por estabelecimentos de internação coletiva os locais onde se encontram indivíduos privados de sua liberdade, de forma provisória ou para o cumprimento de pena.

O Tribunal Superior Eleitoral emitiu resoluções sobre o voto do preso provisório em resposta a consultas,2 bem como em atos preparatórios de eleições, acerca da possibilidade de instalação de seções eleitorais em estabelecimentos penitenciários, em virtude do disposto no art. 136 do Código Eleitoral.

Nessas resoluções reeditadas a cada ano de eleição, o Tribunal Superior Eleitoral indica que o preso provisório deve votar se possível. Porém é inconcebível que o exercício de um direito político seja subordinado a qualquer condição – por falta de dinheiro ou problemas de informática. Nada pode impedir as pessoas de exercerem o direito de sufrágio por meio de voto.

Percebe-se que existem diversos argumentos frágeis para impedir, ou pelo menos dificultar, o acesso ao direito de voto. Argumentações técnicas que, certamente, poderiam ser contornadas principalmente pelo caráter excepcional da situação. Com isso, os juízes de alguns Estados, inclusive os de Santa Catarina, não cumprem o disposto no art. 136 do Código Eleitoral e nas resoluções do TSE, além de justificarem sua omissão com argumentos inconsistentes e incoerentes.

Entre as manifestações contrárias ao exercício de voto do preso provisório, considera-se o sistema do domicílio eleitoral, conjugado às urnas eletrônicas, um entrave à instalação de seções eleitorais nos locais em que se encontram os encarcerados. Nesse pensamento, as pessoas presas provisoriamente não podem votar fora do seu domicílio declarado e constante dos títulos eleitorais, além do que uma eventual transferência do título de eleitor para uma seção instalada em um presídio talvez não fosse eficaz, já que o preso pode não estar mais no estabelecimento, no dia da eleição, devido à transferência de um presídio para outro. Com relação às urnas eletrônicas, o eleitor não pode votar em outra seção, senão naquela em que se encontra inscrito, pois os nomes dos inscritos constam da memória de cada urna designada para cada seção eleitoral.

Além disso, aquele que está preso provisoriamente não tem como justificar o voto enquanto está encarcerado, o que lhe traz problemas quando está fora dos estabelecimentos penais, pois muitas vezes não consegue explicar para a Justiça Eleitoral por que não votou, sofrendo as consequências previstas no art. 7º do Código Eleitoral.

Para evitar este constrangimento, o diretor de cada estabelecimento prisional poderia, por exemplo, oficiar ao tribunal respectivo informando quais pessoas estavam sob sua custódia no dia da votação. Essa simples medida já faria com que, pelo menos, muitas pessoas não tivessem o título cancelado pela Justiça Eleitoral.

Com isso, nota-se a possibilidade de medidas simples serem adotadas, pelo menos em relação às justificativas. Isso impediria que a pessoa, ao sair da prisão, tivesse dispêndio de tempo e dinheiro indo ao respectivo tribunal eleitoral provar que estava presa. Além da questão do gasto, é simplesmente humilhante, estando já em liberdade, ter que ir provar que estava preso para ficar em dia com a Justiça Eleitoral.

Outro modo de solucionar esses problemas seria alterar o Código Eleitoral no sentido de flexibilizar o domicílio eleitoral e considerar como domicílio o local em que a pessoa está encarcerada provisoriamente. Assim, ao instalar as seções nos presídios, dar-se-ia a oportunidade de o preso provisório votar onde quer que estiver encarcerado ou até mesmo justificar sua ausência.

A seguir, será exposto o exercício do direito de sufrágio por meio do voto pelos presos provisórios no Brasil, bem como a luta de alguns Estados para que presos sejam cadastrados, tirem o título de eleitor, possam justificar o voto ou até mesmo votar nas seções especiais instaladas nos estabelecimentos penitenciários.

Para que se possa avaliar a dimensão da questão envolvendo o direito de sufrágio do eleitor que está preso, é interessante citar uma matéria publicada em 12 de setembro de 2008 (CRIPPA), informando que, segundo o TRE de São Paulo, é impossível garantir que os presos provisórios votem. De acordo com a notícia, a alta rotatividade dos presos e os gastos envolvidos no procedimento tornam inviável a possibilidade de instalar seções eleitorais nos locais onde as pessoas se encontram encarceradas provisoriamente. No Relatório Estatístico-Analítico do sistema prisional do Estado de São Paulo, tem-se que o número de presos nesse estado, em junho de 2008, era de 154.096 pessoas, sendo 30,22% dos presos provisórios homens, não especificando o número de mulheres nessa condição.

Argumento muito utilizado pelas autoridades é de que os indivíduos que estão encarcerados seriam massa de manobra a serviço de organizações criminosas, pessoas vinculadas a partidos políticos ou do próprio governo, pois o cerceamento da liberdade seria suficiente para interferir na livre escolha do eleitor preso. Entretanto, esse argumento não deve prosperar, pois, a partir do momento em que exercer seu direito de voto, o preso poderá exigir daquele candidato escolhido que dê atenção aos que estão encarcerados, exigindo melhores condições de tratamento por meio do voto e não de rebeliões ou outros tipos de manifestações violentas.

Outra situação contra o exercício do direito de sufrágio pelo voto por parte dos presos provisórios seria que o Estado não tem condições de garantir a transparência dos processos eleitorais que ocorrem em presídios e penitenciárias, ou transportar os presos até seus locais de votação. Contudo, observa-se a falta de interesse por parte dos que podem tornar prático um direito que já está previsto em lei. Para garantir o voto do eleitor preso é necessário o trabalho em grupo entre diretores de presídios, secretários da área e juízes eleitorais.

No Espírito Santo, por exemplo, os presos provisórios votaram em outras eleições; entretanto, nas eleições de 2008, esse direito não foi garantido. O TRE/ES alegou dificuldades em garantir a execução do procedimento por exigir um esquema muito rigoroso de segurança. A fragilidade e inconsistência dos argumentos mostram com nitidez que neste País as regras prevalecem sobre os princípios. Além disso, partindo do princípio que no nosso País o voto é obrigatório, o Estado deveria não só permitir que as pessoas presas provisoriamente votassem, mas também cobrar esses votos.

A dificuldade em garantir o exercício do voto do preso provisório foi resolvida em alguns Estados brasileiros. Em 2008, os seguintes estados informaram que garantiriam o direito de voto aos presos: Amazonas, Amapá, Acre, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Sergipe e Pernambuco.

No Acre, as seções eleitorais são instaladas nos presídios desde 2002. Em 2008, 148 presos provisórios estavam inscritos para a votação. No Amazonas, os presos provisórios na unidade prisional do Puraquequara e na cadeia pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa exercem seu direito de voto. No Amapá, os presos provisórios votam em duas seções da Capital. Nesse ano, três detentos foram escolhidos para serem mesários.

No Maranhão, foram instaladas seções eleitorais nos estabelecimentos penitenciários de três municípios. No Ceará, seções eleitorais foram instaladas nos estabelecimentos penitenciários de Juazeiro do Norte. No Rio Grande do Norte, onde foram instaladas seções eleitorais nos presídios das cidades de Natal e Caicó, os presos provisórios votam desde o ano de 2006. Em alguns municípios de Pernambuco, os presos provisórios votam há três eleições. Sergipe foi um dos pioneiros, com seções eleitorais instaladas nos presídios desde 2000.

No Rio de Janeiro, pela primeira vez, após a mobilização de entidades ligadas aos Direitos Humanos e o abaixo-assinado de duzentas pessoas encarceradas na 52a Delegacia de Polícia, em Nova Iguaçu, os presos provisórios votaram em uma seção eleitoral localizada na delegacia. O TRE/RJ emitiu 102 títulos de eleitor aos presos que preenchiam os requisitos previstos em lei. Até a data da eleição, quatro presos foram condenados, com sentença transitada em julgado e, por isso, tiveram seus direitos políticos suspensos. O resultado: 54 presos provisórios votaram e 194 pessoas justificaram o voto. Quarenta e três eleitores estavam em liberdade e não compareceram à seção, mas oito pessoas que estavam livres regressaram à delegacia e fizeram questão de votar (GONDIM).

No Rio Grande do Sul, 415 presos do Presídio Central de Porto Alegre votaram nas eleições de 2006, além de 21 mulheres do Presídio Madre Pelletier. Este ano, o TRE/RS cadastrou 103 presos provisórios.

A decisão de incluir as informações sobre o voto do preso provisório nessas unidades da Federação tem o intuito de mostrar que, apesar da quantidade reduzida de votos recolhidos naquelas seções eleitorais, ficam desqualificados de forma contundente quaisquer argumentos acerca da impossibilidade material da instalação de urnas nos estabelecimentos penais.

A seguir, será exposto o perfil do criminalizado que se encontra encarcerado em Santa Catarina e a análise do Tribunal Regional Eleitoral do Estado quanto à possibilidade de os presos provisórios exercerem seu direito de sufrágio através do voto.

Segundo o Relatório Estatístico-Analítico do sistema prisional do Estado de Santa Catarina, em junho de 2008, o Estado mantinha sob custódia 11.943 pessoas. Estavam encarceradas das seguintes formas: 35,61% em regime provisório, 27,44% em regime fechado, 20,72% em regime semi-aberto, 11,59% em regime aberto e 0,85% submetidas a medidas de segurança. Do total de presos, 92,88% são homens e 7,11%, mulheres. O Relatório Estatístico-Analítico dimensiona em 6.308 as vagas no sistema prisional catarinense.

O Estado possui cinco penitenciárias, uma colônia agrícola, duas casas de albergado, vinte e sete presídios e unidades prisionais avançadas e um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.

O perfil do criminalizado que se encontra encarcerado no Estado é um espelho da situação nacional, no que se refere à escolaridade, faixa etária, duração da pena, número de condenações. Em Santa Catarina, dos encarcerados, 46,80% possuem ensino fundamental incompleto e 33,81% estão na faixa etária entre 18 e 24 anos; 20,01% cumprem pena entre quatro e oito anos e 29,85% são réus primários com uma única condenação. A diferença para o perfil dos três ‘p’ (pobre, preto e prostituta) é que o maior número de pessoas encarceradas (em SC) possui a cor da pele branca (57,79%), o que se explica devido à colonização européia ocorrida no Sul do País. A maioria está encarcerada pelo crime de tráfico de entorpecentes (25,05%), seguido pelo crime de roubo qualificado (13,16%), furto qualificado (14,23%) e furto simples (10,47%).3

Santa Catarina é um dos Estados em que os presos provisórios não exercem o direito de sufrágio através do voto. No entanto, o Tribunal Regional Eleitoral garante a justificativa aos encarcerados, por meio de um formulário enviado ao Secretário de Segurança Pública do Estado nos meses que antecedem as eleições, para que este o repasse aos diretores dos estabelecimentos penitenciários, a fim de que o preencham e enviem ao Cartório Eleitoral responsável. Dessa forma, se o preso possui título eleitoral e está apto a votar, tem sua justificativa feita automaticamente e não precisará pagar multa ou sofrer o ônus por não ter justificado. Esta não é a solução ideal, pois ainda existe o impedimento do exercício de seus direitos políticos.

Destarte, observa-se que os argumentos utilizados pelos magistrados não possuem base legal, sendo incoerentes e facilmente refutáveis quando comparados com a realidade dos Estados onde os presos provisórios exercem o direito de sufrágio através do voto.

6 Conclusões

Diante do exposto neste estudo, tratou-se de demonstrar que o exercício do voto é um direito que decorre da democracia e da cidadania, princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro que devem ser garantidos a todos. Segundo a Constituição de 1988, o direito de sufrágio é universal e não deve ser privilégio de poucos indivíduos economicamente ou culturalmente abastados, mas, sim, pertencer à sociedade, que tem a liberdade de escolher quem irá representá-la. Com isso, restringir o exercício de voto dos encarcerados significa sustentar medidas antidemocráticas e excludentes, negando ao preso seu exercício de cidadania, tratando-o como desnecessário à vida em sociedade.

Contrariando dispositivos constitucionais, na maioria dos Estados brasileiros é negado o exercício dos direitos políticos ao cidadão preso provisoriamente e devidamente habilitado como eleitor. O impedimento ao exercício pleno da cidadania ao preso provisório constitui aplicação de pena antecipada de suspensão de direitos, desrespeitando o princípio da presunção de inocência inscrito na Constituição Federal.

Por isso, procurou-se destacar neste estudo que o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição Federal) deve ser respeitado, já que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Dessa forma, as pessoas que sofrem qualquer tipo de prisão processual são inocentes e preservam seus direitos políticos, devendo o Estado proporcionar meios de os encarcerados exercerem esses direitos.

Ademais, destacou-se o art. 1º da Constituição Federal, que expõe os fundamentos do Estado Democrático de Direito, entre outros a cidadania e a dignidade da pessoa humana. O parágrafo único do mesmo dispositivo expressa que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, estando inclusos no vocábulo “povo” também os presos provisórios.

Conforme exposto, o perfil dos encarcerados é composto por criminalizados provenientes das camadas sociais mais discriminadas e estigmatizadas, e que, em decorrência da exclusão social, não possuem perspectiva de melhora nas condições de vida ou de participação nas escolhas efetuadas pela sociedade, ficando à sua margem, sendo apenas sujeitos de deveres e não exercendo seus direitos.

Proporcionando a todos os encarcerados a efetivação de um direito, reverte-se em seu benefício fazer parte da comunidade em que vive e ter o poder de escolher quem poderá representá-los nas esferas de governo, resgatando valores tanto no sentido de ser humano, quanto no sentido de inserção na sociedade. Com isso, o exercício da cidadania não fica restrito somente à política, podendo ser estendido a outras vertentes de discussão.

Ao garantir o exercício de voto dos criminalizados, alcançam-se dois objetivos. Primeiramente, o direito de cidadania, integrando o preso à sociedade, se não inteiramente, ao menos parcialmente. Em conjunto com o primeiro objetivo, o exercício do voto atrai as autoridades para a crise que o sistema carcerário atravessa, pois, a partir do momento em que os presos são vistos como eleitores pelos candidatos a representantes do povo, passam a ter o problema carcerário inserido em propostas de governo.

No entanto, para que o preso provisório exerça seu direito de votar, é necessária vontade por parte de quem detém a capacidade de colocar em prática esse direito. Os juízes eleitorais são os principais agentes capazes de colocar em prática o exercício do voto do preso provisório, fortalecendo a cidadania, concedendo àqueles que estão provisoriamente encarcerados a possibilidade de cumprirem seu dever e exercerem seu direito de votar.

Entretanto, diante do exposto neste estudo, não basta somente a vontade dos juízes eleitorais para que o exercício do voto pelo preso provisório aconteça. É necessária também a participação de colaboradores, como o Ministério Público, juízes das varas de execuções, organizações não-governamentais, secretarias ligadas aos direitos humanos e também movimentos sociais interessados no problema.

Há dificuldade em colocar o exercício do voto do preso provisório em prática, já que há a necessidade de se contar os presos provisórios eleitores e, se for o caso, alistá-los, como fizeram os tribunais regionais eleitorais dos Estados que efetivaram o exercício desse direito. Além disso, alguns presos precisarão transferir o seu título de eleitor e, se forem colocados em liberdade antes da eleição, retornar ao local onde estiveram encarcerados para votar. Também aqueles que forem presos após os prazos previstos na legislação eleitoral para alistamento e transferência de domicílio não estarão contemplados.

Ademais, questões relacionadas aos setores de informática dos tribunais regionais eleitorais, aos recursos humanos necessários à empreitada, aos aspectos de segurança tanto da população carcerária quanto daqueles que estarão lá para proporcionar a lisura das eleições, são preocupações consideráveis na hora de transformar em realidade o que prevêem a legislação eleitoral e a Constituição Federal. Mas tais empecilhos não foram suficientes para impedir que os Estados citados neste trabalho dessem essa amostra de prática de democracia e cidadania.

Esses são os maiores obstáculos enfrentados pela Justiça Eleitoral para o cumprimento das normas e preceitos expressos nas legislações, bem como nas resoluções proferidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, mas que não podem ser usados como obstáculos para garantir o direito ao voto dos presos.

Nesse contexto, entende-se que o preso condenado com sentença penal transitada em julgado jamais deixou de ser um cidadão, devendo ser garantido a ele o exercício do direito político positivo (o de votar), devendo esse direito ser viabilizado, caso aprovada a proposta de emenda constitucional que tramita no Congresso Nacional (PEC n. 65/2003). Por ser um dever e não uma opção, o Estado não pode isentar o preso provisório de votar, alegando a necessidade de punição.

Diante do que foi demonstrado neste estudo, apresentam-se as seguintes propostas com a finalidade de assegurar a participação dos presos provisórios, em especial os de Santa Catarina, no processo político-eleitoral, como garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal:

1 A possibilidade de instalação de mesas receptoras de justificativas que permitam ao preso justificar seu voto ou o envio de formulários aos diretores de estabelecimentos penitenciários, como faz o Estado de Santa Catarina. Apesar de não ser a solução ideal, já que o preso não poderia efetivamente exercer o direito de voto, seria uma forma de evitar humilhações futuras e multas impostas pela Justiça Eleitoral em razão da obrigatoriedade do voto.

2 A divulgação para outros tribunais do modo como trabalham os tribunais regionais eleitorais onde são instaladas seções eleitorais especiais, garantindo, dessa forma, a viabilização do exercício do voto nos estabelecimentos penitenciários de todos os Estados brasileiros.

3 A flexibilização do domicílio eleitoral, com o intuito de facilitar o alistamento dos presos provisórios que se encontram fora de seu domicílio.

4 O levantamento de todos os presos dos Estados brasileiros a cada período pré-eleições para verificar os presos que podem votar nas seções especiais, outorgando títulos de eleitor aos que não o possuem, seja por impossibilidade física, financeira ou de conhecimento de seus direitos e deveres.

5 A ida de membros dos tribunais regionais eleitorais aos estabelecimentos penitenciários para informar sobre a importância do voto, bem como a união de esforços de juízes de execução, juízes eleitorais, membros do Ministério Público, organizações não-governamentais e demais entidades interessadas no voto dos encarcerados, com o objetivo de garantir o direito de voto dos presos provisórios.

Este estudo não teve, em absoluto, a pretensão de esgotar o tema proposto, mas chamar a atenção para sua relevância e contribuir para repensar a transformação. A comunidade inicia o processo de mudança quando os iguais se inserem na perspectiva do problema e passam a olhar do ponto de vista de quem sofre a situação. As sociedades contemporâneas, que vivem à luz do Estado Democrático de Direito, devem assumir o desafio de isonomia e tratar seus cidadãos como preconiza o texto constitucional. Além disso, são imprescindíveis para essas sociedades aqueles que não se cansam de lutar. Aqueles que, podendo falar, brigam incessantemente pelos que não têm voz.

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Notas

1 Dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação Penitenciária (InfoPen), apresentados em junho de 2008. O InfoPen é um programa de computador (software) de coleta de dados do Sistema Penitenciário no Brasil, formado para criar um banco de dados federal e estaduais sobre os estabelecimentos penais e populações penitenciárias, além de integrar os órgãos e a execução de ações das administrações penitenciárias de todo o Brasil. O Sistema foi criado e é gerenciado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), é alimentado pelas Secretarias Estaduais com informações estratégicas sobre os estabelecimentos penais e a população prisional e é atualizado a cada seis meses.

2 Nesse caso, consultas são questionamentos realizados por pessoas e partidos políticos a tribunais eleitorais (regionais ou superior) ou entre os próprios tribunais (regional consulta o superior). O endereçamento da consulta depende da competência do tribunal, analisando o caso concreto. Dessas consultas resultam as resoluções emitidas pelos tribunais.

3 Dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informação Penitenciária (InfoPen), apresentado em junho de 2008, considerando o total de 11.943 presos.

Bacharela em Direito, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Publicado na RESENHA ELEITORAL, vol. 17, 2009.

 

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