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Íntegra

O direito ao preenchimento da vaga do titular é do partido político ou do candidato?

Por: Olavo Rigon Filho

A quem pertence o mandato partidário? Ao partido ou ao candidato?

Nosso Tribunal já teve oportunidade de se manifestar a respeito do assunto, salientando que, no atual quadro jurídico, a suplência é do candidato e não do partido, independentemente do fato de ter o suplente deixado o partido pelo qual foi eleito!

Ousamos discordar desse posicionamento, adotando a corrente jurisprudencial que reconhece no partido político o detentor dos direitos à suplência, em caso de vacância ou impedimento do titular, mesmo que este tenha trocado de partido após a eleição.

A Constituição brasileira, em seu artigo 14, § 3°, V, combinado com o artigo 17, atribui ao partido um papel fundamental no sistema político nacional. Ora, a gênese dos partidos políticos confunde-se com a do próprio sistema democrático ou como afirma Cláudio LEMBO: "o atual sistema constitucional conferiu aos partidos políticos um verdadeiro monopólio da intermediação da vontade popular".

Na verdade, o atual quadro constitucional prestigia o partido político, rechaçando o personalismo, o individualismo. E essa cosmovisão democrática, inserta no texto constitucional, é própria de uma sociedade pluralista, onde o organismo social tem uma variedade de valores impressionante e que contradiz o individualismo. Por isso mesmo o candidato não é detentor de um poder superior que lhe permita, inclusive, levar em seu rastro a suplência.

Este espírito é extraído da análise sistêmica da atual Constituição, especialmente sob a ótica da preponderância do sistema partidário sobre o candidato isolado. Não há dúvida de que o candidato eleito é detentor de um direito subjetivo, direito este que poderá ser suprimido pelo partido, na hipótese de infidelidade partidária ou quebra da confiança depositada pelo eleitor (tese não defendida por José Afonso da SILVA, que entende não ser possível a perda de mandato por infidelidade -Curso de direito constitucional positivo, 5. ed., RT., p. 349).

Ora, existe um sistema político partidário, do qual não se pode separar para a eleição. Essa vinculação persiste, no caso da suplência, mesmo após a eleição.

Não se trata de fidelidade partidária, mas, sim, de prevalência do partido político ao candidato.

A maioria das decisões a respeito do assunto se fixam na questão da fidelidade partidária para resolver o impasse objetivo desse tema. Entendemos que esse aspecto é importante, mas dentro de um contexto mais amplo, que é exatamente o do sistema partidário.

Não há representatividade fora do partido. Não há possibilidade de candidaturas avulsas. A Constituição veda expressamente candidatos profissionais, sem vínculo partidário. O próprio artigo 17, § 1°, é um postulado a impedir a perda de prestígio por parte dos partidos políticos, exigindo, para isso, o respeito à fidelidade e à disciplina partidária, não permitindo, assim, o enfraquecimento (e quiçá descrença) dos partidos políticos. Em outras palavras, tem o partido político como o construtor e mantenedor da ordem democrática.

E a questão da fidelidade, neste contexto, não altera a conclusão de que a vaga é do partido, e não do candidato. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, lembrando lição de RIPERT, de que "os deputados são, na Assembléia Nacional, representantes de seu partido", colocou a questão nos seguintes termos:

"A fidelidade partidária tem como mero objetivo assegurar ao eleitor a certeza de que o candidato por ele sufragado representa a feição ideológica de seu partido frente aos problemas nacionais e, portanto, não sufraga o nome, mas as idéias e o programa que o postulante ao cargo eletivo se propõe a defender. O verdadeiro sentido de partido político, portanto, é a formação de uma consciência política e da realidade nacional, ficando essas aspirações acima dos nomes das pessoas, da figura do candidato."

Em outro acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, encontra-se a seguinte passagem do voto vencido do magistrado Aloysio Alvares CRUZ:

"O indivíduo isolado carece de existência política positiva, porque não pode exercer influência sobre a formação da vontade do Estado e, sendo assim, a democracia só é possível quando os cidadãos se reúnem em organizações definidas para fins políticos, de modo que entre o cidadão e o Estado se interponham essas coletividades, que agrupem, nos partidos, as vontades políticas coincidentes. O descrédito dos partidos na teoria e na prática do direito político envolve um ataque à realização da democracia, cuja vida somente o subterfúgio pode considerar possível sem a existência dos partidos. As democracias organizadas assentam no direito da maioria de governar e no direito das minorias de criticar, pois a crítica é também colaboração, de tal sorte que a democracia já foi definida como o regime em que a maioria respeita a minoria. Daí afirmar-se que os Parlamentos devem espelhar todas as opiniões políticas da Nação, sem o que seria falseado o regime representativo e, consequentemente, a democracia. Se, por vezes, são lamentáveis os excessos das lutas partidárias, certo é que o progresso não se obtém com repouso e quietude.

"Postos estes conceitos, sobreleva notar que o mandato parlamentar não pertence, de direito, ao representante partidário escolhido pelo povo, mas ao partido e seus adeptos, que o sufragaram".

E essa polêmica já é antiga. Cláudio PACHECO, comentando sobre a divergência em torno da natureza somente popular, ou cumulativamente popular e partidária dos mandatos eletivos, cita decisões do Supremo Tribunal Federal, destacando dentre elas o voto do Ministro Hahnemann GUIMARAES, datado de 18 de maio de 1949, onde afirma que "não é o povo, em sua totalidade, que elege a Assembléia representativa, pois o corpo eleitoral é formado por diversos grupos, que se distinguem pelas suas convicções políticas, e os mandatos cabem aos partidos, em razão de sua forma numérica, pelo que se fazem representar no Parlamento, proporcionalmente ao seu prestígio eleitoral, das diversas correntes da opinião pública".

Interessante visão a respeito do tema tem José Afonso da SILVA:

"Dir-se-ia - em tese, ao menos - que o povo participa do poder por meio dos partidos políticos. (...) Relembremos, no entanto, que tendem a transformar a natureza do mandato político, dando-lhe feição imperativa, na medida em que o representante está vinculado, pelo princípio da fidelidade, a cumprir programa e diretrizes de sua agremiação, com o que o exercício do mandato deixa de ser demasiadamente abstrato em relação ao povo, para tornar-se mais concreto em função de vínculos partidários que interligam mandante e mandatário".

Ora, essa vinculação do povo ao governo, por intermédio dos partidos políticos, gera a compreensão de que os partidos políticos são, em verdade, detentores de um componente importante em que o eleitor sufraga seu voto. Ele não vota apenas no candidato, mas, sim, no partido, suas idéias, sua plataforma de governo, suas diretrizes. Ou melhor, em sua ideologia. Portanto, convenhamos, é inconcebível que, ao votar em uma ideologia, em um partido, possa ser chamado - em função de vaga decorrente de afastamento de um parlamentar que se transferiu para outro partido, por exemplo - o suplente daquele partido em que se encontrava o vereador impedido. Imaginemos a hipótese de um vereador eleito por um partido de esquerda, que mais tarde se transfere para um partido de tendência conservadora. O eleitor não admitiria a convocação, para substituí-Io, de um suplente do partido conservador. Há evidente quebra do princípio da vontade que dominou o eleitor no momento em que sufragou seu voto. E esse princípio teleológico do sistema constitucional é que se está resguardando. Aplica-se a mesma tese para a hipótese de coligação, pois, nesse caso, a transferência do candidato eleito de um partido coligado para o outro não subverte a vontade (ideológica) do eleitor. Neste caso, plenamente viável a convocação do suplente (na ordem de votação, é claro) do partido em que estiver o titular. Portanto, no caso de vaga obtida por partido coligado, se a mudança ocorreu dentro da coligação, o suplente conservará essa condição e assumirá a cadeira, observada sua classificação.

Dessa forma, suplente de parlamentar que vier a deixar o partido pelo qual concorreu, perde sua condição de suplente da legenda e, em conseqüência, ocorrendo vaga, não será chamado.

O eleitor politizado não se apaixona por pessoas, mas sim por idéias, programas. E essa vontade deve ser respeitada, sob pena de subverter a ordem democrática buscada pela norma constitucional, que é a de um sistema participativo, elegendo os partidos políticos como canal próprio (não exclusivo) de comunicação dessa vontade popular.

Elival da Silva RAMOS cita feliz passagem de Burdeau, a respeito da seleção dos candidatos comprometidos com a ideologia e diretrizes partidárias e que, em última análise, representa uma "política selecionada pelo povo", quando da eleição:

"Burdeau, peremptoriamente, afirma a incompatibilidade entre a independência total do mandatário e o sistema de Democracia governante (social): Quanto ao papel do representante, enfim, é ele, sem dúvida, que é o mais profundamente modificado com o advento do povo real. Outrora, ele menos exprimia a vontade do povo do que a criava. Hoje, ele não pode, se não pretende decepcionar seus mandantes, afastar-se de ser o intérprete de suas exigências. A preexistência da vontade popular à sua expressão pelo órgão representativo altera o sentido do mandato a um ponto tal que a noção clássica de representação não pode sobreviver a semelhante transformação".

Ora, "se os partidos estabelecerem um programa de governo e selecionarem candidatos comprometidos com esse programa, será possível transformar a eleição, de mera escolha de governantes, em seleção também de uma política de governo. O povo, ao votar, escolherá o representante e a política a que este se devotará. Assim, o povo se governará por meio de representantes, porque estes porão em prática uma política selecionada pelo povo".

E essa política selecionada pelo povo tem sido externada - e isso não quer dizer que concordamos com o critério! - pelos chamados "votos de liderança", que têm se tornado corriqueiros (mais pela falta de quorum do que pelo posicionamento ideológico do partido), onde o líder partidário representa os interesses (ideários) de determinada agremiação política, representando o partido e seus deputados.

Cabe, ainda, citar fragmento do voto vencido proferido pelo Des. Nelson Oscar de SOUZA (RTJRGS 120/234/247) do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, cujo teor coincide com o pensamento agora esposado:

"Assim sendo, acima da vontade do eleitor, fora e acima dela, fora e acima da vontade popular, estão os partidos políticos. A vontade popular só se pode expressar através dos partidos políticos, neste país. O partido é o veículo, o meio catalisador e condutor da vontade popular. Ora, é sabido que não há candidatos que se possam eleger sem pertencerem a partidos".

Assim, exercer mandato por partido a que não mais se pertence parece-me ilógico, além de atentar contra o sistema constitucional vigente.

O eleito, enfim, deve retribuir com lealdade o voto de confiança depositado por seus eleitores. E aí está também um misto de confiança pessoal e na ideologia pregada pelo partido.

Outro forte argumento a sustentar a tese de que a vaga é do partido e não do candidato é dado pelos inúmeros exemplos de candidatos que não são eleitos por pequenos partidos (voto de legenda), apesar de terem obtido muitas vezes estrondosa votação, ao passo que outros candidatos de partidos com legenda mais forte, com menor número de votos, são eleitos. É típico caso de opção pelo sistema partidário, numa clara demonstração da correta interpretação do sistema eleitoral.

Interessante sinal característico dessa situação pudemos observar nessa última eleição, consoante registrou a revista semanal VEJA, em sua edição n. 42, de 19 de outubro de 1994, ao citar o caso da candidata a deputada estadual Célia Artacho, que foi eleita recebendo apenas 1.102 votos, mas sua legenda, o PRONA, obteve a expressiva soma de 156.000 votos, o que garantiu sua eleição.

Esse ensaio da revista VEJA, sobre as eleições de outubro de 1994, trouxe dados que merecem uma reflexão pelos sociólogos e políticos, notadamente com respeito a certa incongruência do resultado eleitoral para o pleito proporcional, em comparação ao majoritário, se analisado sob a ótica partidária, mas que se encaixam, de certa forma, na análise ora empreendida:

"Em 3 de outubro o eleitorado foi às urnas numa eleição casada. Mas fez questão de divorciar o voto na hora de escolher candidato a presidente, o deputado e o governador. Fernando Henrique ficou com 54% dos votos válidos e era de esperar que seu partido, o PSDB, fosse o maior da Câmara. É apenas o terceiro e não chega a 15% das cadeiras. Em Minas Gerais, o candidato tucano ao governo, Eduardo Azeredo, teve um terço dos votos recebidos por Fernando Henrique. Lula cravou 27% junto ao eleitorado de todo o país, mas o PT não chega a 10% da Câmara. Em São Paulo, Lula teve mais que o dobro da votação de seu candidato a governador, José Dirceu. Os partidos que apoiaram Fernando Henrique em sua campanha presidencial engordaram suas bancadas em 10% em Brasília. Os aliados de Lula cresceram 50%. O caso do PMDB é o inverso. Seu candidato a presidente, Orestes Quércia, teve 4% dos votos. Já a legenda ficou com 20% das vagas em plenário e é a maior da Casa. As barbas de Enéas o levaram para o terceiro lugar na sucessão presidencial. Em Brasília, o PRONA fechou para balanço. Tinha uma deputada, Regina Gordilho, do Rio de Janeiro. Está sem nenhum. Em São Paulo, Enéas teve 8,8% dos votos válidos, mas elegeu uma única deputada estadual. É a atriz de pornochanchadas Célia Artacho, muito aplaudida na obra 19 Mulheres e Um homem, de David Cardoso. Com 38 anos, agora Célia vai para a Assembléia Legislativa depois de receber 1.102 votos em seu nome e outros 156.000, para a legenda".

Em suma, partimos do pressuposto de que, no regime democrático, os partidos políticos avultam como canais imprescindíveis e constitucionalmente relevantes entre a vontade popular e o mandato conferido nas urnas, sendo inconciliável com o sistema jurídico a tese de que o mandato pertence ao candidato e não ao partido.

Advogado.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 2, n. 1 (jan./jun. 1995).

 

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