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Íntegra

Investigação judicial

Por: Murilo Rezende Salgado

O sistema eleitoral instituído pelo Código eleitoral (Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965), já estabelecia, visando a garantia dos pleitos eleitorais, o combate "à interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade", que viessem distorcer a vontade do eleitor. É medida asseguradora da liberdade do voto e da igualdade entre os candidatos que devem ser protegidas na maior extensão possível.

Partes legítimas para denunciarem qualquer ato caracterizador da infração eram qualquer cidadão, desde que eleitor, e também partido político, mediante indicação de fato ou fatos caracterizadores do desvio do voto consciente. O destinatário da denúncia era o Corregedor Geral Eleitoral ou Regional que, ao receber a representação, se a entendesse séria, procederia ou mandaria proceder à investigação.

Para dotá-lo de instrumentos legais capazes de conduzir a investigação a bom termo, outorgava-se-lhe os poderes conferidos à Comissão Parlamentar de Inquérito, a fim de conferir-Ihe poderes que lhe permitissem aprofundar as investigações e alcançar os objetivos da lei. Tudo na conformidade do disposto no art. 237 e seus parágrafos, da Lei n. 4.737, referida acima.

Mas, este procedimento realizado pelo Corregedor Geral Eleitoral ou Regional, tinha, na lição de Fávila RIBEIRO "o caráter essencialmente administrativo, ainda que com destinação judicial, como acontece nos inquéritos policiais, que podem servir de subsídio e dar margem ao oferecimento de denúncia, valendo, por isso mesmo, como peça de instrução provisória" (Abuso de poder no direito eleitoral, Forense, p. 48).

Concluída a investigação, que deveria ser retratada num relatório, se positivada a infração, passava-se à instauração de ação pública, para declaração de inelegibilidade ou cassação do mandato do faltoso, independentemente da instauração da competente ação penal, se fosse o caso.

O sistema assim estabelecido apresentou resultados insuficientes e não alcançou, os seus objetivos.

A Constituição Federal de 1988, no capítulo IV, que trata Dos Direitos Políticos, dispõe, no § 9°, do art. 14 que, além dos casos de inelegibilidade que ela própria prevê, lei complementar estabelecerá outras hipóteses decorrentes da "influência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta", com o objetivo de assegurar "a legitimidade a normalidade das eleições", ao tempo em que criou, também, a ação de impugnação de mandato, com a finalidade de combater idênticos vícios, desfiguradores da verdade democrática e da liberdade do eleitor. Daí, então, a edição da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, que dispõe sobre casos de inelegibilidade não previstos na norma constitucional e procura disciplinar os dois institutos com que a Justiça Eleitoral pode apurá-los e julgá-los: a investigação judicial e a ação de impugnação de mandato.

As presentes considerações referem-se, tão-somente, à primeira, à investigação judicial, por isso que não trata da ação de impugnação de mandato.

Dispõe o art. 19 da Lei Complementar 64, mencionada, que "as transgressões pertinentes a origem de valores pecuniários, abuso de poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais", se oferecida a representação perante o Tribunal Superior Eleitoral ou qualquer Tribunal Regional Eleitoral, respectivamente, ou perante os Juizes Eleitorais, se tratar de atos viciadores de eleições municipais (art. 24, da referida lei complementar).

O parágrafo único do mesmo artigo indica o objetivo da investigação que o caput cria, ou seja, a apuração e punição dos ilícitos nesta matéria, para proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra os atos do poder econômico ou de abuso de poder, conducentes à contrafação da vontade do eleitor e da sua liberdade de votar segundo suas convicções e entendimento. Em resumo, trata-se de instrumentos visando à lisura dos pleitos políticos.

Lauro BARRETO sustenta que a investigação judicial eleitoral, nos termos da norma complementar vigente continua "um procedimento administrativo-eleitoral, regido nos moldes das Comissões Parlamentares de Inquérito" ( Investigação judicial eleitoral e ação de impugnação de mandato eletivo, Edipro, p. 20).

Aplaude lição de Fávila RIBEIRO, que transcreve, no sentido de que haveria antinomia entre as expressões investigações jurisdicionais, do art. 19, e investigação judicial, dos arts. 21 e 22, todos da Lei Complementar n. 64/90.

A mim me parece, contudo, que a investigação judicial, com o procedimento adotado na norma complementar vigente, deslocou-se de atividade administrativo-eleitoral, disciplinada no art. 237, do Código eleitoral, e passou a ser atividade jurisdicional, ou seja, ato do Poder Judiciário, da competência da Justiça Eleitoral. Aliás neste sentido é, também, a lição de Fávila RIBEIRO, constante da reedição de sua obra antes mencionada e transcrita no livro de Lauro BARRETO, indicado (p. 20 e ss).

O texto mesmo do art. 19 da Lei Complementar 64/90, define a investigação, qualificando-a de "jurisdicional", o que importa esclarecer que se trata de ato do Poder Judiciário.

Do estudo dos dispositivos legais que disciplinam a situação do Corregedor-Geral, Regional ou Juiz Eleitoral, que realizará a instrução com um procedimento sumaríssimo, da iniciativa e tramitação do processo, verifica-se que se trata de verdadeira ação e não de mero procedimento administrativo-eleitoral. Estão presentes as características que distinguem a atividade jurisdicional da administrativa.

Assim, ao determinar que a investigação judicial terá início por representação de "partido político, coligação, candidato ou Ministério Público", impõe o princípio da inércia que, como se sabe, é característica fundamental e própria da jurisdição (art. 2° do Código de processo civil).

Portanto, para que seja instaurada a investigação judicial, é necessária a provocação da parte legitimada pela lei a desencadeá-Ia, ou seja, daquele que se sinta prejudicado pelo ato abusivo do poder econômico ou de autoridade, no caso, partido político, coligação ou candidato, ou pelo defensor do interesse público na lisura e normalidade das eleições, o Ministério Público. Aqui, também há de se respeitar o princípio inerente ao Poder Judiciário - ne procedat iudex ex officio.

Isto está disposto de forma expressa no art. 22, ao dispor que qualquer legitimado poderá representar "diretamente ao Corregedor Geral ou Regional relatando fatos e indicando provas, indícios, circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial...". Há, pois, necessidade de formulação do pedido, ao qual não poderá faltar também a causa de pedir, pois deverá relatar os fatos e indicar provas, indícios e circunstâncias. Aliás, o disposto no inciso I, do art. 22, da Lei Complementar 64/90, não deixa qualquer margem de dúvida quanto a tratar-se de verdadeira ação, ao dispor que "O Corregedor, que terá as mesmas atribuições do relator nos processos judiciais, ...". O Corregedor-Geral ou Regional, na investigação judicial, desenvolve atividades idênticas as do relator nos processos de competência originária dos tribunais. Função indiscutivelmente jurisdicional e não administrativo-eleitoral.

Outra característica de processo judicial se verifica na determinação de que, ao despachar a inicial, o Corregedor "ordenará que se notifique o representado do conteúdo da petição, abrindo-se-lhe o prazo de cinco dias para ampla defesa, podendo juntar documentos e indicar testemunhas" (art. 22, I, "a", da Lei Complementar 64, mencionada).

Trata-se da obrigatoriedade do contraditório, sem o qual não existe o devido processo legal, hoje, obrigatório, também, nos processos administrativos, por força de norma constitucional.

Vê-se, pois, que, com a representação e pedido de abertura de investigação judicial, se instaura um verdadeiro e autêntico processo de natureza jurisdicional.

Tanto isto é verdade que este processo, após ser aberta vista às partes, ao representante e representado e ao Ministério Público, será encaminhado, com relatório do Corregedor-Geral ou Regional, ao Tribunal para julgamento, após ouvido o Ministério Público.

E mais.

A decisão pelo Colegiado, se procedente a representação, se fará nos próprios autos da investigação, com base nos elementos colhidos naquele processo e tem força de sentença definitiva, ou seja, de mérito, por isso que poderá conduzir à formação da coisa julgada, instituto específico, próprio e caracterizador da função jurisdicional, quando declarar a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para o ato, além de negar o registro de candidato ou cancelá-lo, se já tiver sido deferido, desde que antes da eleição, a par da acessória aplicação da sanção de inelegibilidade, nos três anos seguintes (art. 22, XIV, Lei Complementar n. 64/90).

Como se vê, indiscutivelmente, uma atividade com a natureza e características da função jurisdicional. Sequer a indicação de que deverá seguir o procedimento estabelecido para as Comissões Parlamentares de Inquéritos a desnatura, eis que o próprio texto do art. 21 dispõe que "as transgressões a que se refere o art. 19 desta Lei Complementar serão apuradas mediante procedimento sumaríssimo de investigação judicial". Não pode haver a menor dúvida de que a norma legal impõe o desenvolvimento de atos judiciais, atos praticados pelo juiz, pelo magistrado, com o procedimento sumaríssimo, mas em processo contencioso, com o objetivo de declarar o direito aplicável ao caso concreto, os quais não são, evidentemente, atos administrativos e sim jurisdicionais.

O objetivo da ação de que trata este trabalho, ao lado da ação de impugnação de mandato eletivo, tem o objetivo de propiciar lisura nos pleitos eleitorais, mediante combate efetivo e pronto aos atos de abuso do poder econômico e do poder público, verdadeiras pragas daninhas deturpadoras da vontade política dos cidadãos. Para alcançar este desiderato altamente salutar, a fim de que o resultado de uma eleição traduza a verdadeira manifestação política do eleitor, a investigação judicial pode ter uma das seguintes conseqüências, segundo voto do eminente Juiz do egrégio Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, doutor G. Pínheiro FRANCO: "as conseqüências da investigação são diversas, como desenvolvido naquele voto. Poderá implicar na cassação do registro do candidato e na declaração de sua inelegibilidade, quando julgada anteriormente à diplomação. Poderá servir de instrumento à ação constitucional de impugnação de mandato eletivo (art. 14, parágrafos 10 e 11, da Constituição Federal), ao recurso contra a diplomação (artigo 262 do Código Eleitoral), se julgada após a diplomação e antes do decurso dos prazos para a iniciativa das duas medidas. Poderá redundar tão-somente na inelegibilidade do candidato ou de terceiro, para o futuro, como sanção autônoma, na hipótese de ser impossível o ataque ao próprio mandato, pelo decurso dos prazos estipulados para tanto" (acórdão n. 19.324, por maioria, D.O.E., Poder Judiciário, São Paulo, p. 78).

É de se salientar, pois, a dupla natureza da investigação judicial: ação, quando a sentença vier a ser proferida antes da eleição para denegar ou cassar o registro já deferido, e aplicação da sanção de inelegibilidade, nos três anos seguintes, independentemente da remessa dos autos ao Ministério Público, para instauração de processo administrativo ou criminal, se for o caso (inciso XIV, do art., 22, da Lei Complementar n. 64/90); e instrumento de abertura da ação constitucional de impugnação de mandato, se a sentença de procedência da representação for prolatada posteriormente à eleição do representado (inciso XV, do mesmo artigo 22, da Lei Complementar acima).

Poder-se-ia admitir que, não eleito o candidato representado, estaria extinto o processo de investigação judicial por falta de objeto. Neste caso, o ato de corrupção ou de abuso de autoridade não teria influído no resultado da eleição, e nem serviria a motivar ação de impugnação de mandato.

Acontece, porém, que a lei prevê, também, sanção para o futuro, que é a inelegibilidade nos três anos seguintes.

Tão-somente para a aplicação desta sanção, a investigação não perde o objeto. Com apoio no acórdão antes referido, entendo que a investigação deve prosseguir mesmo após a apuração das eleições e não eleito e representado, para o fim de exame e, se for o caso, aplicação da sanção de inelegibilidade por três anos, a se projetar no futuro.

Estes são os aspectos que me pareceram relevantes e merecedores de análise, no novel instituto da investigação judicial, na configuração da Lei Complementar n. 64/90.

Esta Lei Complementar que disciplina a matéria sob novos moldes, mesmo não se tratando de um primor de técnica legislativa, apresenta salutares inovações, que poderão conduzir a atuação da Justiça Eleitoral a resultados altamente positivos no combate à interferência do poder econômico e abuso de autoridade, no sentido do aperfeiçoamento do exercício da democracia, no País.

Por certo, o bom senso, o equilíbrio e a competência dos magistrados da Justiça Especializada farão judiciosa aplicação da recentemente editada norma legal e trarão valiosa colaboração, no sentido de obter-se os objetivos a que visa: eleições limpas, em que prevaleça a vontade política do cidadão, livremente manifestada nas urnas.

Ex-Juiz e atual Suplente de Juiz Eleitoral, classe jurista, do TRESC.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 1, n. 1 (jul./dez. 1994).

 

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