Site TRESC
  • FB
 

Íntegra

Inelegibilidade por condenação criminal - Lei Complementar n. 64/90, art. 1º, I, "e"

Por: Pedro Roberto Decomain

O § 9º do art. 14 da Constituição Federal reservou à Lei Complementar a possibilidade de consignar outras causas de inelegibilidade, além daquelas indicadas no próprio texto constitucional. Condicionou, todavia, a estipulação dessas outras causas de inelegibilidade, a que tivessem por escopo proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e resguardar a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

A redação original daquele parágrafo do art. 14 da CF era a seguinte:

"§ 9º Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta."

Com a Emenda Constitucional de Revisão n. 4, de 7 de junho de 1994, o dispositivo passou a ter a seguinte redação:

"§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moral idade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego público na administração direta ou indireta."

Desejou a Constituição, portanto, que o pleito fosse livre de abusiva influência do poder econômico, político ou administrativo, e também que a probidade e a moralidade para o exercício de mandatos eletivos fossem preservadas, evitando-se a candidatura de pessoas cuja vida pública precedente tenha demonstrado que não reúnem condições para, uma vez guindados ao poder, preservar esses valores basilares do Estado e da convivência política e social.

A Lei editada em obediência ao § 9º do art. 14 da Constituição Federal, é a Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, também conhecida como "Lei das Inelegibilidades".

O art. 1º, 1, "e", dessa Lei, considera inelegíveis para todos os cargos:

"os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena."

Essa causa infraconstitucional de inelegibilidade é um plus em relação à suspensão dos direitos políticos, imposta pelo art. 15, III, da Constituição Federal, a todo aquele que sofrer condenação criminal, enquanto durarem os respectivos efeitos, qualquer que tenha sido a infração penal cometida.

Relembre-se, a propósito, que os direitos políticos compreendem duas facetas: de um lado, o direito de votar; de outro, o de receber votos. Ambos ficam excluídos, em caso de condenação criminal, por qualquer espécie de infração penal (inclusive contravenções), enquanto durarem os respectivos efeitos.

Já por força da causa de inelegibilidade do art. 1º, I, "e", da LC 64/90, de que aqui se trata, apenas o direito de receber votos fica suspenso, pelo prazo de mais três anos, após o cumprimento da pena, para os autores de crimes da natureza daqueles mencionados no dispositivo.

Assim, durante o cumprimento da pena, ou enquanto esta não tiver tido seu cumprimento iniciado, mas este ainda puder ser imposto ao sentenciado, estará ele com seus direitos políticos inteiramente suspensos. Não poderá votar, nem ser votado. A partir do término do cumprimento da pena recupera o direito de votar. Mas continua sem poder ser votado, isto é, continua inelegível, por mais três anos, após o término do referido cumprimento, quando se cuidar de crimes dentre aqueles referidos pelo dispositivo aqui discutido.

A referida causa de inelegibilidade atinge as pessoas condenadas por sentença transitada em julgado, por quaisquer crimes que atinjam os bens jurídicos elencados no dispositivo. Quando a norma se refere, por exemplo, a crimes contra a administração pública, não se restringe àqueles como tais definidos pelo Código Penal. Nessa categoria (como nas demais previstas no dispositivo), incluem-se quaisquer crimes que ofendam a administração pública. Apenas para permanecer neste exemplo, também os crimes contra a ordem tributária, por ofenderem a administração pública (e marcadamente o patrimônio público, pela diminuição de receitas tributárias), acarretam, para seus autores, a inelegibilidade mencionada neste dispositivo.

Os crimes contra a economia popular estão elencados na Lei n. 1.521/51. O art. 110 do Decreto-Lei n. 73, de 1967, que regula o Sistema Nacional de Seguros Privados, também prevê crime contra a economia popular, nessa matéria. Também os crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo, elencados nos arts. 42 a 72 da Lei n. 8.137/90, constituem ilícitos penais que atingem o mesmo bem jurídico (economia popular, considerada em sentido abrangente), e por isso a condenação pela prática de tais crimes acarreta a inelegibilidade prevista na letra "e" do inciso I do art. 12 da LC n. 64/90.

Os crimes contra a fé pública encontram-se elencados nos arts. 289 a 311 do Código Penal.

Os crimes contra a administração pública são basicamente aqueles enumerados pelos arts. 312 a 359 do mesmo Código. Mas, como até mesmo já se antecipou, não são somente eles. Na precisa lição de Heleno Cláudio Fragoso, a expressão "administração pública" - deve ter-se bem presente -, inclusive quando empregada pelo Código Penal,

"não se entende no sentido estrito e técnico, em que significa o conjunto de órgãos em que se desenvolve o funcionamento dos serviços públicos, constituindo função específica do Poder Executivo. A administração pública é aqui considerada pela lei penal num sentido amplo, ou seja, como atividade funcional do Estado em todos os setores em que se exerce o poder público (com exceção da atividade política). Como as- sinalava Rocco, na Exposição de Motivos elaborada para o vigente código italiano, 'o conceito de administração pública, no que concerne aos crimes reunidos neste título, vem entendido no sentido mais amplo, compreendendo a inteira atividade do Estado e de outros entes públicos. Portanto, com as normas que refletem os crimes contra a administração pública, vem tutelada não só a atividade administrativa em sentido estrito, técnico, mas, sob certo aspecto, também a legislativa e a judiciária. Em verdade, a lei penal, neste título, prevê e persegue fatos que impedem e turbam o regular desenvolvimento da atividade do Estado e de outros entes públicos' ("Relazione ministeriale", II, 112)".

Tendo-se presente esse conceito amplo, não é difícil concluir que existem outros crimes que ofendem o bem jurídico "administração pública", e que se encontram previstos em outras leis. Assim, os crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, previstos pelo Decreto-lei n. 201, de 1967, e que a jurisprudência já afirmou serem crimes comuns, embora tenham recebido a denominação de crimes de responsabilidade, também ofendem a administração pública, e por isso aqueles que sejam condenados por tais crimes são atingidos pela inelegibilidade1. Os crimes previstos pela Lei n. 8.666/93 - Lei das Licitações - também ofendem a administração pública, em sentido amplo, e por isso os condenados pela prática de tais crimes também ficam inelegíveis, pelo período mencionado. Os crimes de loteamento clandestino ou irregular, previstos pela Lei n. 6.766/79, também são por ela mesma expressamente considerados como crimes contra a administração pública. Por fim, também os crimes contra a segurança nacional, elencados na Lei n. 7.170/83, por ofenderem igualmente a administração pública, lato sensu, geram a inelegibilidade dos que por sua prática foram condenados. Além disso, crimes contra a administração pública são também os crimes contra a ordem tributária, previstos pela Lei n. 8.137/90, e aquele, da mesma natureza, consistente na assim denominada "apropriação indébita de contribuições previdenciárias", consignado no art. 95, "d", da Lei n. 8.212/91.

Crimes contra o património público são os crimes contra o património, elencados pelos arts. 155 a 180 do Código Penal, quando tenham por sujeito passivo ou vítima a administração pública. Referida expressão - administração pública - deve aqui ser tomada em seu sentido mais amplo, compreendendo, portanto, não apenas a pessoa estatal central (Administração Pública Direta), mas também as entidades consideradas como da Administração Pública Indireta, vale dizer, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias e as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, mesmo que revistam a forma de entidades de direito privado. Também é irrelevante se o crime vitimou a Administração Púbica Direta ou Indireta Federal, Estadual, Municipal, ou do Distrito Federal. Em qualquer caso, surgirá a inelegibilidade para qualquer cargo. Pouco importa que o pretenso candidato haja sido condenado pelo cometimento de crime de estelionato contra um Município. Ficará inelegível não apenas para os cargos daquele Município, mas sim para quaisquer mandatos efetivos. Os crimes contra a ordem tributária, como já se disse, por ofenderem a administração pública e principalmente o património público, pela indevida diminuição de receita tributária, também geram a inelegibilidade daqueles que sejam condenados pelo respectivo cometimento.

Já os crimes contra o sistema financeiro acham-se previstos pela Lei n. 7.492/86. Também são crimes contra o mercado financeiro aqueles previstos pelos arts. 73, caput e §§ 1º e 2º, e 74, caput, da Lei n. 4.728/65, que regula o mercado de capitais, como muito bem lembrado por Joel José Cândido2.

O crime de tráfico de entorpecentes, em suas diversas modalidades, vem previsto pela Lei n. 6.368/76.

Por fim, os crimes eleitorais acham-se tipificados nos arts. 289 a 354 do Código Eleitoral, na Lei n. 9.504/97, e também em algumas outras.

Essa inelegibilidade somente se instala após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Assim, enquanto tal não ocorre, isto é, enquanto a ação penal ainda não foi julgada, ou enquanto pender algum recurso dos julgamentos que nela já hajam sido prolatados, o acusado continua elegível.

A inelegibilidade persiste pelos três anos seguintes ao cumprimento da pena. Essa pena, ressalte-se, pode ser de qualquer natureza, compreendendo a pena de multa, as penas alternativas previstas pelos arts. 43 a 46 do Código Penal, com a redação que lhes foi atribuída pela Lei n. 9.714/98, e as penas privativas de liberdade. No tocante a estas últimas, em caso de suspensão condicional do seu cumprimento, ou de livramento condicional, somente serão consideradas cumpri- das na data em que se encerrar o período de prova. Nessa data a inelegibilidade cessa, independentemente, inclusive, da decisão que declara extinta a punibilidade do sentenciado, pelo cumprimento da reprimenda.

Em caso de indulto coletivo (como os usuais indultos de Natal, por exemplo), qual deverá ser a data a considerar para o início do cômputo do prazo da inelegibilidade (não olvidando que o crime de tráfico de entorpecentes, porque considerado hediondo, não é passível de indulto-CF, art. 5º, XLIII)? A decisão judicial que reconhece a presença das condições do indulto tem caráter declaratório. Não é ela que extingue a punibilidade do sentenciado, mas sim a própria realização de todas as condições previstas no Decreto de indulto. Se assim é, a partir da verificação dessas condições é que passará a ter início o prazo de três anos da inelegibilidade da qual aqui se cuida.

Não existe contrariedade entre a norma do art. 1º, I, "e", da LC n. 64/90 e a regra constitucional sobre a suspensão de direitos políticos por força de condenação criminal. Como se viu, a inelegibilidade é um adicional à suspensão constitucionalmente prevista. Como o § 9º, do art. 14 da Constituição Federal autoriza a previsão de outras causas de inelegibilidade, além daquelas resultantes do próprio texto constitucional, desde que isso se faça por lei complementar, era perfeitamente possível fixar a inelegibilidade, como a LC n. 64/90 a fixou para esses casos, sem colisão com a regra da suspensão dos direitos políticos3.

Com maior razão ainda cumpre sustentar a constitucionalidade dessa adicional causa de inelegibilidade, a partir do momento em que o § 9º. do art. 14 da CF/88, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional n. 4, de 1994, passou a permitir que a Lei Complementar, ao prever outras causas de inelegibilidade, levasse em consideração inclusive a vida pregressa do pretenso candidato.

O fundamento dessa causa de inelegibilidade reside na incompatibilidade entre a prática de crimes graves, como os elencados no dispositivo, que ofendem a administração pública, o patrimônio público, a fé pública, o mercado financeiro, a economia popular, e a normalidade das eleições (além do tráfico de entorpecentes, de indiscutíveis efeitos deletérios), e o exercício das funções relevantes inerentes a qualquer mandato eletivo. Quem cometeu crimes dessa natureza mostrou, em princípio, uma índole incompatível com a atribuição de velar pelos interesses de coletividades inteiras, inerente ao exercício de tais mandatos. Daí por que, enquanto não houver decorrido certo lapso de tempo, dentro do qual inclusive se verificará se não voltou a cometer ilícitos penais dessa natureza, fica-lhe vedada a candidatura.

Essa inelegibilidade não será declarada na sentença condenatória. Deverá ser objeto de argüição por intermédio de impugnação ao pedido de registro da candidatura daquele por ela atingido, interposta na forma do art. 3º e seguintes da LC n. 64/90. Vale repetir que se trata de causa infraconstitucional de inelegibilidade. Se já estiver presente no momento em que seja apresentado o pedido de registro, e este não for impugnado, com base em referida causa de inelegibilidade, a matéria estará preclusa e não poderá voltar a ser discutida em futuro recurso contra expedição de diploma. Todavia, se a sentença condenatória vier a transitar em julgado depois do registro da candidatura, e o candidato atingido por essa causa de inelegibilidade lograr sucesso no pleito, haverá lugar para o manejo do recurso contra a expedição de seu diploma para que, em segunda instância, este seja cassado, em virtude dessa inelegibilidade superveniente ao registro. Isso na conformidade do art. 262, inciso I, do Código Eleitoral. 

Notas

1 Assim, é da jurisprudência do colendo TSE:

"Inelegibilidade. Crime previsto no artigo 1° do Decreto-lei 201/67.

Trata-se de crime contra a administração pública, e a condenação, por tal prática, desde que haja o trânsito em julgado, acarreta inelegibilidade.

Hipótese em que, ademais, incide o disposto no artigo 15, III, da Constituição, a impedir o pretendido registro de candidatura"(TSE, REsp Eleitoral n. 12.862-MT, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU, I, 07.11.96, p. 43021).

"Inelegibilidade da letra "e" LC n. 64/90, (art. 1°, inciso I). Crime previsto no Decreto-lei n. 201/67. E crime contra a Administração Pública. Termo inicial do prazo de 3 (três) anos, em caso de indulto. Candidato inelegível. Recurso não conhecido" (TSE, Acórdão e REsp n. 14.073, Rel. Min. Nilson Naves, Jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, vol. 8, n. 3, jul./set. 1997, p. 259).

2 Direito Eleitoral Brasileiro, 7. ed. Bauru : Edipro, 1998. p. 130

3 Nesse sentido também o ensinamento de Pedro Henrique Távora Niess. in Direitos políticos: condições de elegibilidade e inelegibilidades. São Paulo: Saraiva. 1994. p. 67.

Promotor de Justiça em Santa Catarina.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 6, n. 1 (jan./jun. 1999).

 

Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina - Rua Esteves Júnior 68, 88015-130, Centro, Florianópolis, SC Fone [48] 3251.3700