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Íntegra

Garantias processuais da lisura do processo eleitoral contra a influência do abuso de poder

Por: Rômulo Pizzolatti

1 Introdução

O ordenamento constitucional brasileiro tem como um de seus fundamentos o princípio republicano (art. 1°, caput), cujo conteúdo não deve ser buscado apenas no texto da Constituição, como preconiza o positivismo legalista, mas em toda a nossa tradição republicana secular (1889-1997), e na própria evolução alcançada por esse princípio nos Estados politicamente evoluídos.

O princípio republicano não implica apenas a legitimidade dos mandatos populares, com a sua renovação periódica (CF, arts. 27, § 1°; 28; 29, l e II; 45; 46 e 77), mas ainda a igualdade de acesso dos cidadãos aos cargos públicos, eletivos ou não (CF, art. 14, § 3° e 37, 1), e, enfim e especialmente, o aniquilamento das estruturas oligárquicas, mediante a progressiva abolição dos privilégios de todo o gênero (CF, arts. 1º, 1; 3º, III e IV; 5°, caput, 1º parte).

Não basta, porém, a solene declaração de um princípio, pois nem todos pautam sua conduta segundo os valores éticos e jurídicos. Necessário se torna o estabelecimento de sanções para o caso de descumprimento das normas jurídicas, cuja aplicação, no Estado de Direito, é em última análise confiada ao Poder Judiciário.

Bem por isso, a Constituição e a legislação infraconstitucional brasileira estabelecem meios processuais para a aplicação de sanções, àqueles que atentarem contra o princípio republicano, buscando, mediante abuso do poder econômico ou político, fraudar a normalidade e a legitimidade do processo eleitoral, que é a dimensão política da república (CF, art. 14, §§ 9° a 11; LC n. 64, de 1990, arts. 19 e segs.; Código Eleitoral, art. 237; Lei n. 6.091, de 1974).

Além de eventuais sanções penais e administrativas, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece sanções político-eleitorais para coibir o abuso do poder econômico ou político que atente contra a normalidade ou legitimidade das eleições, isto é, (a) a perda do mandato já conquistado e (b) a inelegibilidade temporária, aplicáveis cumulada ou alternativamente.

Três são os meios processuais atualmente existentes, no direito eleitoral brasileiro, de garantir a lisura do processo eleitoral contra o abuso do poder, nas suas várias manifestações: (a) a ação de impugnação de mandato eletivo (AIM), prevista no § 1º do art. 14 da Constituição; (b) a chamada investigação judicial eleitoral (IJE), prevista no art. 22 da Lei Complementar n. 64, de 1990; e ( c) o recurso contra diplomação (RCD), lastreado em causa de inelegibilidade (no caso, o abuso de poder), previsto no art. 262, inc. I, figura, do Código Eleitoral. Já a impugnação de registro de candidatura (LC n. 64/90, art. 3°) não é sede própria para argüição de inelegibilidade por abuso de poder, visto que, para tal fase do processo eleitoral, a lei indicou ação especifica - a IJE (LC n. 64/90, art. 22).

Buscar-se-á, no presente artigo, confrontar esses três meios de impugnação processual, apontando-lhes as diferenças e coincidências de perfil.

2 Natureza jurídica

Tanto a AIM como a IJE são "ações", que deflagram processos judiciais, com a asseguração de ampla defesa (CF, art. 5°, LV). Não desvirtua essa conclusão o fato de que a IJE é chamada "investigação judicial" e o ser provocada sua instauração por "representação", nos dizeres da lei. Parece-me que o que quis dizer a lei, com tais termos, é que se trata de processo orientado pelo princíipio inquisitivo, em que à petição inicial ("representação") não se exige rigor de forma, bastando a descrição circunstanciada dos fatos e seus responsáveis, e em que do juiz se cobra postura ativa, em termos de direção e instrução do feito, cabendo-lhe verdadeiro poder "investigativo" na busca da verdade real. Também por isso não está o juiz adstrito ao pedido do representante, à semelhança do que se passa no processo penal: ao juiz caberá a correta classificação jurídica dos fatos e a aplicação das conseqüências jurídicas, previstas em lei (l.C n. 64/90, art. 22, XIV e XV). Não é a IJE processo administrativo, certamente: se o fosse, poderia ser instaurada de oficio pelo juiz, o que a LC n. 64/90 não permite. Enfim, o RCD é recurso propriamente, aplicando-se-lhe, portanto, as regras atinentes aos recursos.

3 Legitimidade (ativa e passiva)

O art. 22 da LC n. 64, de 1990, confere, para a IJE, legitimidade ativa aos partidos, coligações, candidatos ou ao Ministério Público, silenciando a Constituição, a seu turno, quanto à legitimidade para a AIM (art. 14, § 1º). Por simetria, impõe-se a mesma legitimação quanto a esta, visto que uma e outra são ações que visam a semelhantes fins. Ademais, não se trata a AIM de uma "ação popular constitucional", caso em que a Constituição, como fez com a ação popular tradicional, teria expressamente conferido legitimidade ativa a qualquer cidadão (CF , art. 5°, LXXIII). No tocante ao RCD, têm legitimidade para interpô-lo todos aqueles que tiverem interesse jurídico na desconstituição da diplomação (candidatos, partidos, coligações), assim como o Ministério Público Eleitoral, como fiscal da aplicação da lei. Enfim, no que respeita à legitimidade passiva, o quadro é o seguinte: (a) a IJE terá, no pólo passivo, não apenas os candidatos beneficiários do abuso de poder econômico ou político, mas também os responsáveis (co-autores e/ou partícipes) pelos atos abusivos (LC n. 64/90, art. 22, XIV); (b) a AIM terá como réu apenas o detentor do mandato eletivo, e o respectivo partido como litisconsorte passivo necessário.

4 Pressupostos de direito material: o abuso do poder econômico ou político-administrativo

A constituição não é casuísta - nem deveria sê-lo - no tocante às espécies e graus de abuso do poder econômico ou político-administrativo, mas deixou patente que o bem tutelado, contra tais espécies de abuso, é "a normalidade e a legitimidade das eleições". (art. 14, § 9°), no que foi secundada, sem significativas variações semânticas, pela LC n. 64, de 1990, que fala em proteção à "liberdade do voto" (art. 19, caput) e na preservação do "interesse público de lisura eleitoral" (art. 23).

Assim, ao juiz eleitoral cabe ampla liberdade na identificação das manifestações concretas, cada vez mais sutis, do abuso do poder econômico ou político, até porque a legislação se limitou a tipificar apenas alguns poucos casos de abuso, como, p. ex., a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social (LC n. 64/90, art. 22, caput), as transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários (LC n. 64/90, art. 19; Lei n. 9.100, de 1995, arts. 37 e 38); fornecimento de transporte ou refeições a eleitores (Lei n. 6.091, de 1974).

Além do bem tutelado, a Constituição torna certo que o objeto da impugnação judicial não é o ato abusivo em si, mas a sua "influência" ou repercussão no processo eleitoral (CF, art. 14, § 9°). O ato abusivo em si mesmo considerado deve ser alvo de ações outras, criminais (se o fato constituir crime: art. 346 do Código Eleitoral, p. ex.) ou não, como a ação popular (CF, art. 5°, LXXIII).

A partir dessas indicações ou "pistas" constitucionais, pertinentes ao bem tutelado e ao objeto das ações, a jurisprudência, exercendo o papel que lhe cabe, tem construído em torno do tema, visando a concretizar o regramento constitucional.

Assim é que, de vários julgados do TSE (Acórdão n. 11.884, de 05.03.91, rel. Min. Bueno de SOUZA, JURISP. DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 3, n. 3, p. 18; Acórdão n. 12.030, de 25.06.91, rel. Min. Hugo GUEIROS, JURISP. DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 3, n. 3, p. 229; Acórdão n. 12.343, de 01.07.92, rel. Min. Hugo GUEIROS, JURISP. DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 4, n. 4, p. 37; Acórdão n. 11.841, de 17.05.94, rel. Min. Torquato JARDIM, JURISP. DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 6, n. 3, p. 136; Acórdão n. 12.244, de 13.09.94, rel. Min. Marco AURÉLIO, JURISP . DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 7, n. 1, p. 251; Acórdão n. 12.577, de 02.04.96, rel. Min. Torquato JARDIM, DJU de 03.05.96, p. 13.948, entre outros), podem-se extrair as seguintes orientações:

4.1 Os atos abusivos não precisam ter influenciado efetivamente o resultado das eleições, bastando concreta potencialidade para tanto, mediante significativa quebra da igualdade entre os candidatos. A entender-se o contrário, não haveria como a IJE produzir efeitos antes das eleições, como prevê o art. 22, XIV, da LC n. 64/90. Assim, já decidiu o TSE (Acórdão n. 13.424, de 27.04.93, rel. Min. Torquato JARDIM), que se qualifica como abuso de autoridade de candidato à reeleição como vereador ter em seu comitê um funcionário público remunerado pela municipalidade, que fora seu auxiliar na Secretaria de Planejamento. A repercussão do ato, em tal caso, tratando-se de campanha a vereador, é evidente. Todavia, a mera utilização de uma caneta pertencente ao poder público, na campanha eleitoral, não teria certamente um mínimo de potencialidade desvirtuadora do processo eleitoral, pelo que cabível apenas a repressão penal ou administrativa.

4.2 Não perdem relevância jurídica os atos abusivos praticados ainda antes da escolha do candidato em convenção partidária, sob pena de ficarem imunes ao controle jurisdicional os atos abusivos contrários às regras da propaganda eleitoral. Ademais, os atos podem ter o escopo de beneficiar o partido (LC n. 64/90, art. 22, caput, parte final), e não candidatos específicos.

4.3 É desinfluente, para a decretação de perda do mandato, o envolvimento pessoal do candidato nos atos abusivos, ou a perquirição de sua culpa, bastando a prova da existência do abuso de poder econômico ou político-administrativo e a demonstração da sua potencialidade para influenciar o processo eleitoral em favor de candidato ou partido. A perda do mandato, na hipótese de candidato eleito que não se envolveu na prática dos atos abusivos, não configura pena, mas a única forma encontrada para a correção plena do vício que maculou a legitimidade do processo eleitoral. Todavia, a aplicação da declaração de inelegibilidade para as eleições subseqüentes está condicionada ao envolvimento pessoal do representado, candidato ou não, na prática dos atos abusivos, porque esta conseqüência vai além da pura correção do vício que maculou o processo eleitoral. Por isso se disse, acima, que estas sanções aplicam-se cumulada ou alternativamente.

4.4 A Constituição tutela não apenas a legitimidade e normalidade das "eleições", mas de todas as fases do processo eleitoral, a começar pela de propaganda eleitoral. Aqui, o texto constitucional disse menos do que pretendia, impondo-se interpretação extensiva. Destarte, o ato abusivo há de ser examinado segundo a ótica da sua potencialidade para viciar determinada fase do processo eleitoral, e não apenas o resultado final do pleito. Interpretação diversa levaria à conclusão de que candidato que, por atos de abuso do poder econômico ou político, promoveu propaganda eleitoral antes da época prevista em lei, restaria impune só pelo fato de posteriormente perder a eleição. Neste caso, ser-lhe-á declarada a inelegibilidade para eleições que se realizarem nos três anos subseqüentes.

5 Pressupostos de direito processual

A AIM não pode ser proposta com base apenas em alegações, pois a Constituição (art. 14, § 1º) diz que deve ser "instruída com provas." Tem entendido o TSE (Acórdão n. 11.520, de 26.08.93, rel. Min. Torquato JARDIM, JURISP. DO TRIB. SUP. ELEIT., v. 6, n. 1, p. 220), ao interpretar este dispositivo constitucional, que não é necessária a apresentação de prova pré-constituida das alegações, bastando provas ou indícios suficientes ao juízo de admissibilidade da ação. Observa-se aqui situação similar à ação penal, que só pode ser instaurada com "justa causa" (CPP, art. 648, I), expressão que engloba a existência de elementos de convicção que tornem verossímil a hipótese da acusação (STF, RHC n. 64.439-PR, rel. Min. Francisco REZEK, RTJ 125/145). A seu turno, a IJE não precisa ser instruída com quaisquer provas, documentais ou documentadas - embora seja conveniente que se indiquem provas -, pois nela prepondera o princípio inquisitivo. Já o RCD exige prova pré-constituida, visto que na fase recursal não há dilação probatória. Por fim, sublinhe-se que a AIM não tem como pressuposto o julgamento definitivo da IJE, mas julgada procedente a última, depois das eleições, poderá servir de prova na AIM.

6 Procedimento

AIJE tem rito próprio, previsto nos arts. 22 e seguintes da LC n. 64, de 1990, ao passo que a AIM segue o rito comum ordinário do Código de Processo Civil (art. 282 e segs.), conforme já assentou o TSE (Acórdão n. 11.520, de 26.08.93, rei. Min. Torquato JARDIM, JURISP . DOTRIB. SUP. ELEIT., v. 6, n. 1, p. 220}. O procedimento do RCD é todo previsto no Código Eleitoral (arts. 265 e segs.).

7 Competência

As ações fundadas em inelegibilidade, inclusive por abuso do poder econômico ou político, entre as quais a IJE e a AIM, devem ser propostas no juízo competente para a diplomação do(s) candidato(s) que figure(m) como réu(s), por força do que dispõe o parágrafo único do art. 22 da LC n. 64, de 1990. Assim, se tratar de candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador, a competência é do juiz eleitoral. Se tratar de candidatos a governador, vice-governador, deputado estadual, federal e distrital e senador, a competência é do TRE. Cuidando-se de candidatos a presidente da república e vice, a competência é originariamente do TSE. No TRE, funcionará como relator nato o Juiz Corregedor Regional, e no TSE o Ministro Corregedor-Geral (LC n. 64/90, art. 22). Quid juris, se o apontado como responsável pelo ato abusivo for candidato a presidente, e o beneficiário for candidato a governador? Em tal hipótese, a competência se determina em função do candidato de nível superior (candidato a presidente), cabendo ao TSE conhecer da IJE originariamente. Se tratasse de AIM, contudo, a competência seria do TRE, porque com ela não seria atingido o candidato a presidente. Mas se o responsável pelo ato abusivo fosse, p. ex., presidente no exercício do mandato, não candidato à reeleição, e o beneficiário candidato a governador, a competência tanto para a IJE como para a AIM seria, sem dúvida, do TRE, porque o fato determinante é o nível do candidato-réu, nos precisos termos do parágrafo único do art. 22 da LC n. 64, de 1990. Enfim, o RCD é interposto para o grau de jurisdição superior ao da diplomação. Assim, se quem diplomou foi o juiz eleitoral, a interposição é para o TRE; se foi o TRE que diplomou, será interposto para o TSE. Quid juris, se a diplomação for do TSE? Tito COSTA propõe que, diante do óbice do art. 281 do Código Eleitoral, cabível é a impetração de mandado de segurança para o STF (Recursos em matéria eleitoral, 4. ed., RT, 1992, pp. 112-3).

8 Prazo de ajuizamento

AIJE pode ser ajuizada até a data da diplomação dos candidatos, segundo os mais recentes pronunciamentos do TSE, com o que não ficam imunes ao controle jurisdicional os abusos cometidos no próprio dia das eleições (Acórdão n. 12.531, de 18.05.95, rel. Min. limar GALVAO; Acórdão n. 12.603, de 15.08.95, rel. Min. Diniz ANDRADA; Acórdão n. 11.994, de 05.12.95, rel. Min. Torquato JARDIM). Já a AIM só pode ser proposta nos quinze dias seguintes à diplomação dos eleitos, conforme dispõe a CF (art. 14, § 1º), sob pena de o mandato não poder mais ser desconstituído, exceto se houver sido, nos três dias seguintes à diplomação (Código Eleitoral, art. 258), interposto RCD, com base no art. 262, I, 1 a figura, instruído com prova pré-constituída.

9 Cargas eficaciais

Segundo Pontes de MIRANDA (Comentários ao CPC, 4. ed., Forense, 1995, v. I, pp. 204-12), todo provimento judicial de procedência da ação possui sempre as cinco cargas de eficácia (declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva), com a preponderância de uma delas, que constitui a sua "força". Não há sentença de procedência que seja eficacialmente "pura". No caso da AIM, a sua "força" é constitutiva-negativa, pois visa preponderantemente ao desfazimento da diplomação, à semelhança do RCD. No caso da IJE, abrem-se duas alternativas: a) julgada antes da eleição, terá "força" desconstitutiva do registro da candidatura, além de carga de "eficácia imediata" (a que vem logo após a "força" do provimento) declaratória da inelegibilidade (LC n. 64/90, art. 22, XIV); b) julgada depois da eleição, só terá "força" declaratória de inelegibilidade para eleições que se realizarem nos três anos subseqüentes, sem carga eficacial constitutiva-negativa suficiente para desconstituir o ato de diplomação, razão pela qual se faz necessário, para alcançar este último fim, o ajuizamento de AIM ou a interposição de RCD (LC n. 64/90, art. 22, XV).

Juiz Efetivo do TRESC. Juiz Federal. Mestre e Doutorando em Direito (UFSC). Professor do Curso de Mestrado em Direito da UNIVALI.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 4, n. 2 (jul./dez. 1997).

 

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