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Fidelidade partidária e mandato eletivo

Por: Yan de Souza Carreirão

Neste trabalho analiso os temas do mandato eletivo e da fidelidade partidária. Inicialmente, discuto-os de forma mais geral, apresentando os termos do debate tal como se apresenta no âmbito da Ciência Política brasileira para, ao final, analisar as recentes decisões do Judiciário e do Congresso Nacional sobre essas questões. 

Quando se fala de fidelidade partidária, na realidade há dois fenômenos distintos aí envolvidos, que têm sido tratados na literatura de Ciência Política no Brasil, sob os nomes de disciplina partidária e migração partidária. É assim que vou tratá-los. A questão de a quem pertence o mandato eletivo (se ao político eleito ou ao partido) está relacionada aos temas anteriores, especialmente ao da migração partidária. Começo pela disciplina partidária.

A disciplina partidária está relacionada ao grau em que parlamentares de um partido seguem (ou não) as diretrizes partidárias em seu comportamento no Legislativo.  Mais especificamente o principal problema apontado é o de que muitos parlamentares não seguiriam a orientação partidária, votando de forma individualista, pensando apenas em seus interesses pessoais, e não nos do partido a que estão vinculados. Daí resultaria um problema de governabilidade (ou seja, o Executivo teria dificuldade de conseguir maioria no Legislativo para governar).

Essa falta de disciplina teria suas raízes na legislação eleitoral e partidária, especialmente no sistema eleitoral proporcional de lista aberta, que permite aos eleitores votar em candidatos (e não só em partidos), o que faz com que as campanhas sejam individualizadas e que os parlamentares, depois de eleitos, se julguem donos de seus mandatos.

É necessário dizer que não há consenso sobre esse diagnóstico na Ciência Política brasileira. Enquanto vários autores pleiteiam esta versão – de que a indisciplina campeia, e o governo é refém de negociações individualizadas com parlamentares –, há toda uma corrente que advoga que não há nenhum problema grave de disciplina partidária no país. Pesquisadores que têm analisado todas as votações nominais na Câmara Federal, num período de mais de dez anos, apontam taxas significativas de disciplina partidária. Esse significativo grau de disciplina dever-se-ia a dois conjuntos de fatores: primeiro, o fato de que o Executivo tem uma grande quantidade de recursos de poder para implementar suas propostas: a prerrogativa de editar medidas provisórias; a possibilidade de solicitar urgência na tramitação de projetos; as vantagens do Executivo no processo de elaboração e execução orçamentária; uma grande quantidade de recursos de patronagem a serem distribuídos (na forma de cargos e liberações de verbas), entre outros.

Em segundo lugar, os líderes partidários teriam mecanismos de controle sobre suas bancadas: são os líderes que nomeiam quem vai ocupar cargos nas comissões parlamentares; são os líderes que, em conjunto com a Mesa Diretora das Casas, definem a agenda do Congresso; assim, se um deputado quer ser nomeado para uma comissão ou que um projeto que encaminhou chegue a ser votado em plenário, ele tem que contar com o apoio do líder de seu partido.  Todo esse conjunto de recursos permitiria ao chefe do Executivo, auxiliado pelos líderes dos partidos que formam a coalizão governamental, pressionar os parlamentares para conseguir aprovar sua agenda. E os dados, segundo esses pesquisadores, mostrariam que a agenda do Executivo é aprovada mais rapidamente e em maior proporção do que as propostas oriundas do Legislativo.

Há um grande debate sobre esses diagnósticos opostos, com questões metodológicas ainda a serem resolvidas. De toda forma, esse debate parece se encaminhar para algumas conclusões: 1a) a indisciplina não é tão grande quanto os diagnósticos impressionistas (não baseados em pesquisas empíricas sistemáticas) parecem apontar; 2a) isso implica que o Congresso não se tem apresentado como um obstáculo tão grande quanto se imaginava à governabilidade1; 3a) mas isso não significa que os custos desse processo não sejam elevados; episódios como o do “mensalão” (especialmente se comprovadas as denúncias aceitas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento recente) mostram que esse processo de “negociação” pode levar governos (ou, pelo menos, figuras centrais de governos) a extrapolar a legalidade para tentar obter o apoio do Congresso.

Esse é o debate central sobre o tema da disciplina partidária na Ciência Política brasileira.  Do ponto de vista da legislação em vigor, a indisciplina não é passível de ser punida com a perda de mandato; a possibilidade de punição a parlamentares indisciplinados é deixada a critério dos partidos políticos, que podem incluir em seus estatutos medidas de punição, que podem ir de uma simples repreensão até a expulsão desses parlamentares. É certo que mesmo a expulsão pode ter um custo muito pequeno para muitos parlamentares, dada a facilidade de migração para outro partido – e é desse problema que passo a tratar agora.

O segundo fenômeno englobado pela expressão “fidelidade partidária” é a migração partidária.  O problema apontado está relacionado à liberdade que os políticos têm de, eleitos por um partido, migrarem para outra agremiação.  Carlos Ranulfo Melo, no principal estudo feito sobre o fenômeno no Brasil (“Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados”, UFMG, 2004), mostra que as taxas de migração são muito elevadas no país: quase 30% dos deputados federais eleitos entre 1985 e 2002 abandonaram os partidos pelos quais foram eleitos. Na última legislatura (2003-2006) a proporção já aumentou para mais de um em cada três deputados federais. Esses são índices muito elevados se comparados a padrões internacionais: migrações no Congresso americano e nos parlamentos de muitos países europeus são residuais. 

Quais as principais causas do fenômeno? Os parlamentares migram especialmente logo após as eleições e no terceiro ano de mandato. Logo após as eleições a maioria dos deputados que migram passa de partidos de oposição para partidos da base do governo, visando se aproximar dos recursos (cargos e verbas) à disposição do Executivo. E não se trata apenas das estratégias individuais de parlamentares, há também uma estratégia governamental de atração de parlamentares para formação de maioria nas Casas do Congresso. Foi utilizada tanto no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso quanto no governo do Presidente Lula. No terceiro ano do mandato, os parlamentares migram procurando se posicionar nas legendas que sejam mais favoráveis à sua reeleição, dali a um ano. 

Quais as conseqüências das migrações? Uma, negativa, é que elas enfraquecem os partidos. De um lado, porque deles retiram poder de pressão sobre seus membros, já que podem, a qualquer momento, se pressionados a cooperar com o partido, migrar para um outro. De outro lado, as migrações contribuem para dificultar a formação de identificações duradouras dos eleitores com os partidos. Se as lideranças que um eleitor associa a um partido mudam para outro, isso dificulta a formação de imagens partidárias por parte dos eleitores, já que as lideranças são parte relevante na formação dessas imagens. Taxas de migração elevadas contribuem, portanto, para dificultar a formação de laços sólidos entre eleitores e partidos. 

Mas a conseqüência mais negativa das migrações é a de distorcer a vontade do eleitor. Embora uma parte deles vote na pessoa do candidato, uma parte significativa leva em consideração apenas o partido (é o voto de legenda). E outra parte dos eleitores combina os critérios partidários e pessoais no momento da decisão de voto. Por exemplo: um eleitor é simpatizante do PSDB e decide votar naquele que julga ser o melhor candidato dentro da lista de candidatos do partido. Esse eleitor, como simpatizante do PSDB, pode esperar que seu candidato, ao ser eleito, faça oposição ao governo do PT, partido do qual o eleitor discorda (neste exemplo). O candidato, porém, após eleito, migra para um partido que faz parte da coalizão governista e passa a votar sistematicamente a favor do governo.  Esse comportamento representa uma traição à vontade do eleitor. E a probabilidade de que eleitores se sintam traídos dessa forma aumenta com o aumento da taxa de migração de deputados, que no país é muito grande.

Essa discussão, sobre as conseqüências das migrações partidárias, está vinculada à discussão sobre a quem pertence o mandato eletivo. O mandato pertence ao político eleito ou ao partido? 

Se analisarmos os efeitos da legislação atual, poderemos dizer que eles apontam para o predomínio, na prática, da idéia de um mandato pessoal, ou seja, um mandato que pertence mais ao político eleito do que ao partido. Embora os partidos possam estabelecer mecanismos de punição a um parlamentar indisciplinado, entre essas punições não está a perda de mandato. A pena máxima que um partido pode aplicar é a expulsão do político do partido. Mas o político pode migrar para outro partido e permanecer com o mandato. 

Uma proposta que radicalizasse no sentido oposto seria a de aprovar uma lei em que estivessem presentes as seguintes condições: 1a) que o ocupante de cargo eletivo que mudasse de partido tivesse seu mandato cassado; 2a) que o ocupante de cargo que fosse expulso de seu partido perdesse automaticamente o mandato (que ficaria com o partido). Vamos imaginar que esse tipo de lei se aplicasse não só aos eleitos para cargos proporcionais, mas também aos eleitos para cargos majoritários (prefeito, governador, senador e presidente da República). Aí teríamos, expressa na prática, a idéia de um mandato fortemente partidário. Muitos acham que deveríamos caminhar nessa direção, de forma a fortalecer os partidos e a diminuir a margem de manobra dos ocupantes de cargos eletivos de se comportarem apenas buscando seus interesses pessoais, sem pensar nos interesses gerais.

Mas pode-se perguntar: não estaríamos passando, de um extremo, em que os ocupantes de cargos eletivos pouca satisfação dão aos partidos pelos quais foram eleitos, para o extremo oposto, em que os eleitos ficariam virtuais reféns daqueles que controlam as executivas partidárias? Aprovada tal lei, a desobediência do presidente da República, por exemplo, às diretrizes do seu partido poderia dar margem à sua expulsão, que levaria à perda de mandato. Suponhamos que a direção do partido exorbite, fazendo exigências descabidas ao presidente (em termos de implementação de políticas, ou de ocupação de cargos, liberação de verbas, etc.), ou que se articule com o vice-presidente para derrubar o presidente, via sua expulsão, que resultaria automaticamente na perda do mandato. Essa situação seria positiva? Além disso, do ponto de vista do eleitorado que constitui o ocupante do cargo, é quase impossível, sob o atual sistema multipartidário, que um ocupante de um cargo do Executivo (prefeito, governador ou presidente) seja eleito apenas pelos simpatizantes de seu partido. No mais das vezes, os vencedores são apoiados por coligações (no 1º ou no 2º turno), e, além disso, parcela considerável do eleitorado que elege um presidente, por exemplo, não decide seu voto levando em consideração o partido ao qual o candidato é filiado; decide pelas características políticas e pessoais do candidato. É justo e desejável que, por exemplo, um presidente eleito por sessenta milhões de votos seja destituído do cargo pela decisão da executiva de um partido (que, ao expulsá-lo, estará cassando seu mandato)?

Fiz essas observações, incluindo esse exemplo extremado, apenas para estimular a reflexão sobre os temas aqui tratados, tentando mostrar especialmente que não precisamos decidir entre a idéia de um “mandato pessoal puro” ou de um “mandato partidário puro”. Não se trata de um confronto doutrinário em que uma das doutrinas tenha que sair vencedora em detrimento da outra. Acredito que a legislação deva deixar espaço para que os partidos tenham certa influência sobre os comportamentos dos políticos eleitos por suas siglas, mas também dificultar que os ocupantes de cargos venham a ser reféns das direções partidárias. Esse equilíbrio envolve um conjunto de medidas relativas ao processo decisório interno dos partidos, às formas de punição que um partido pode tomar em relação a seus membros (assegurado amplo direito de defesa), à definição precisa dos casos passíveis de perda de mandato, etc. 

A partir dessas reflexões de caráter mais geral, passo agora a analisar as decisões tomadas no âmbito do Judiciário e do Congresso Nacional brasileiros ao longo de 2007 sobre o tema da fidelidade partidária que estejam associadas diretamente a interpretações sobre a quem pertence o mandato eletivo. Ao longo de 2007, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu uma interpretação, corroborada pelo STF, levando a Câmara Federal e o Senado a aprovarem matérias atinentes ao tema. Tanto as interpretações do TSE e do STF quanto as propostas aprovadas na Câmara e no Senado modificam substancialmente a situação que prevaleceu até março de 2007, no que se refere aos temas aqui apresentados. A discussão dessas decisões é de extrema relevância, pois podem ter impacto importante sobre o sistema político brasileiro. A seguir é detalhada a seqüência desse processo de decisões a respeito da fidelidade partidária ao longo de 2007, para depois analisar os argumentos que embasaram as decisões e as relações entre Judiciário e Legislativo aí envolvidas.

O TSE, em resposta a duas consultas, em março e agosto de 2007, decidiu que, no que se refere aos deputados federais, estaduais e vereadores, a migração pode ser punida com a perda do mandato, contrariando a interpretação até então dominante. Em outubro, em resposta a outra consulta, o TSE decidiu que a mesma punição cabe também ao presidente da República, aos prefeitos, governadores e senadores. Essa decisão do TSE fundamentou os pedidos, já feitos por diversos partidos, de recuperação das vagas de deputados eleitos por esses partidos e que migraram para outros, na atual legislatura. Em outubro, o STF corroborou a interpretação do TSE, ficando definida como data-limite para mudança de partido, sem perda de mandato, no caso dos cargos proporcionais, o dia 27.3.2007, quando o TSE estabeleceu essa punição; no caso dos cargos majoritários, ficou valendo o dia 16 de outubro, quando o TSE estendeu a interpretação inicial também para os ocupantes desses cargos.

Antes de analisar as referidas decisões do TSE e do STF, serão mencionadas as propostas aprovadas pela Câmara e pelo Senado, em reação a elas. Como reação à interpretação do TSE feita no início do mês de agosto, a Câmara dos Deputados, no dia 14 desse mesmo mês, aprovou um projeto de lei complementar (que ainda precisaria tramitar no Senado) que regulamenta a questão. O texto aprovado anistia todas as migrações partidárias ocorridas no passado assim como aquelas que viessem a ocorrer até 30.9.2007. No que se refere ao futuro, o texto pune com perda de mandato e inelegibilidade de pelo menos quatro anos os políticos que trocarem de sigla em todo o período do mandato, com exceção de “janelas” de 30 dias – o mês de setembro dos anos anteriores às eleições – períodos em que os detentores de cargos eletivos estariam autorizados a migrar do seu partido. Na prática, a lei estabeleceria a fidelidade partidária durante 23 meses em cada período de dois anos, dando um mês a cada biênio para que os políticos pudessem trocar de partido. 

Um aspecto importante do texto da proposta aprovada pela Câmara é que institui a inelegibilidade e a possibilidade de perda de mandato dos trânsfugas não só para os cargos submetidos a eleição proporcional, mas para todos os cargos eletivos (incluindo os majoritários). Por outro lado, caso fosse aprovada no Senado e entrasse em vigor – embora devesse reduzir a taxa de migrações, especialmente aquelas que costumam ocorrer logo após as eleições (e durante o primeiro ano de mandato) –, ao deixar janelas de escape para as migrações, poderia ter efeito insuficiente no combate aos malefícios trazidos por esta prática. Outro aspecto relevante da lei proposta é que ela prevê que a cassação do mandato do político que migrar para outro partido seria decidida pela Justiça Eleitoral, “assegurados o contraditório e a ampla defesa”. Não poderá ser cassado o político que migrar de (ou abandonar) um partido, se demonstrar que foi o partido que descumpriu o programa ou o estatuto partidário, ou se provar que está sendo perseguido politicamente no âmbito interno do partido.

De forma independente da Câmara, o Senado aprovou, em outubro, o substitutivo apresentado pelo Senador Tasso Jereissati (PSDB) à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23/2007, de autoria do Senador Marco Maciel (DEM), alterando os arts. 17 e 55 da Constituição. O texto assegura aos partidos políticos a titularidade dos mandatos dos políticos que se desligarem do partido pelo qual foram eleitos, salvo nos casos de extinção, incorporação ou fusão de partidos.  A proposta teria validade a partir das eleições municipais de 2008 (para prefeito e vereador) e nas eleições de 2010 (para os demais cargos). Resta saber se deputados e senadores tentarão levar à frente a votação de uma dessas propostas (já aprovadas em uma das Casas, faltando aprovar na outra), ou mesmo de uma proposta que funda essas duas numa só. 

No que se refere às decisões do TSE, o primeiro parecer (na Consulta n. 1.398, de 27.3.2007) – que dá sustentação ao segundo (na Consulta n. 1.423, de 1.8.2007) – foi dado a partir da seguinte consulta feita pelo (ex-)PFL: “Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”. Seis Ministros votaram “sim” e um “não”. A seguir exponho alguns dos argumentos por eles utilizados para justificar seus votos, tecendo alguns comentários pessoais sobre esses argumentos.2

Justificando seu voto pelo “sim”, o Ministro César Asfor Rocha afirmou: “o candidato não existe fora de um partido político. Parece equivocado que o mandato pertença ao candidato eleito”. Note-se que, com base nesse argumento, a punição às migrações deveria valer para todos os cargos e não apenas para os cargos proporcionais. Na realidade, esse argumento já adiantava a interpretação que acabou prevalecendo no TSE (e no STF)  quando da resposta à consulta sobre a fidelidade partidária no caso dos cargos majoritários. Outros argumentos, porém, eram relativos apenas aos cargos cuja eleição ocorre no sistema eleitoral proporcional. O Ministro Cezar Peluso, por exemplo, afirmou que “a vinculação do partido ao candidato é ínsita ao sistema representativo proporcional”. Esse parece ser um dos argumentos mais sólidos para justificar a manutenção do mandato com o partido, no caso  das eleições proporcionais (mas não para o caso das eleições majoritárias, às quais a decisão foi mais tarde estendida). Além disso, o Ministro César Asfor Rocha argumentou, em entrevista à Folha de S. Paulo, de 28.3.2007, que a decisão teve como base “o respeito à fidelidade ao eleitor. Não tivemos por base a fidelidade partidária. O candidato se beneficia dos votos dirigidos a ele próprio, os dirigidos a outros e à legenda. Dos 513 deputados federais, apenas 31 tiveram votos atribuídos a eles para se eleger”. Temos aí uma situação concreta; de toda forma, poder-se-ia perguntar: se o argumento se baseia nos resultados eleitorais, estes 31 que tiveram votos suficientes para se elegerem (sem precisar dos votos de outros candidatos ou dos votos de legenda) poderiam, então, mudar de partido, sem punição?  

Um dos argumentos do Ministro Cezar Peluso invoca o art. 14 da Constituição, que aponta a necessidade de filiação partidária como condição para elegibilidade do candidato. Na argumentação do ministro, o cancelamento dessa filiação ou a transferência para outra legenda “tem por efeito a preservação da vaga ao partido”.  Parece uma interpretação forçada. O artigo mencionado fala em elegibilidade, ou seja, o candidato precisa estar filiado a um partido para concorrer à eleição; a legislação específica determina que o candidato tem que estar filiado há pelo menos um ano antes da eleição. Mas nem a Constituição nem outra legislação infraconstitucional mencionam a necessidade de um parlamentar estar permanentemente vinculado a algum partido, ao longo de seu mandato. E, muito menos, que deva estar vinculado ao mesmo partido pelo qual foi eleito. Antecipando este tipo de crítica, o Ministro Cezar Peluso argumenta que uma interpretação como essa – que não leve em conta que a norma subjacente é a de que se espera que o político eleito se mantenha no mesmo partido pelo qual foi eleito – “se reduziria a estéril formalismo, ao qual pouco se daria a identidade do partido a que se filiasse o candidato, desde que, apenas para constar, se atendesse ao requisito de uma filiação qualquer” (Consulta n. 1.398, decidida em 27.3.2007).

Outros ministros mencionaram os arts. 24, 25 e 26 da Lei n. 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos).3 O problema é que os arts. 24 e 25 são genéricos e se referem ao que está aqui sendo chamando de disciplina partidária (e não à migração). Além disso, entre as penalidades previstas no art. 25, não está a perda de mandato. Quanto ao art. 26, que trata de migração, note-se que estabelece como punição a perda de funções ou cargos relativos ao funcionamento da Câmara dos Deputados ou no Senado (cargos na Mesa Diretora, nas comissões, etc).  Não se trata de perda de mandato.

O Ministro Marcelo Ribeiro foi o único a se pronunciar pelo “não” à consulta. Segundo o ministro, “não pode haver perda do mandato se o candidato eleito troca de partido, porque essa penalidade não está prevista nem na Constituição Federal nem em normas infraconstitucionais”.  Além disso, o artigo da Constituição que estabelece os casos de perda de mandato (art. 55) “é exaustivo e não comportaria essa hipótese extra, de infidelidade partidária”.

Como se vê, pelos diferentes argumentos e interpretações envolvidos nesta decisão, não se trata de uma discussão simples, entrando em jogo um debate mais amplo a respeito da latitude da interpretação, por parte do Judiciário, em face da letra da lei. Embora o que venha a dizer mais um cientista político possa ser pouco relevante nesse contexto, como fui instado a fazer uma apresentação sobre o tema, acho que não devo me esquivar em emitir minha opinião. Nesse caso, tendo que concordar com os argumentos apresentados pelo Ministro Marcelo Ribeiro, na medida em que não há, nem na Constituição nem em nenhuma legislação infraconstitucional, previsão de perda de mandato em função da mudança de partido. Além disso, o art. 55 da Constituição define todos os casos em que pode haver perda de mandato e não está ali contemplado esse tipo de comportamento. 

Concluindo esta avaliação, ressalvo que o TSE e os TREs têm prestado excelentes serviços ao país, primeiramente, por terem conduzido tão bem os processos eleitorais (tanto no que diz respeito ao grau de imparcialidade e lisura, quanto no que diz respeito à competência técnica na realização das disputas e à presteza na apuração dos resultados). Além disso, têm propiciado orientações relevantes aos eleitores, para que possam exercer seu direito de voto de maneira mais informada. A Justiça Eleitoral tem prestado serviços relevantes também aos pesquisadores, ao constituir sistemas de dados abrangentes e confiáveis, que permitem a realização de análises sólidas sobre o desempenho eleitoral dos diferentes partidos e candidatos a todos os cargos eletivos em âmbito nacional. Sou testemunha disso, pois as pesquisas que tenho realizado seriam, em sua quase totalidade, inviáveis se não fosse a colaboração do TRESC, que sempre mostrou a máxima solicitude e competência no atendimento das nossas solicitações.

Mas, no que se refere a algumas das decisões tomadas pelo TSE (e STF) nos últimos anos, especialmente no que se refere à verticalização das coligações e nesse episódio da decisão sobre a punição às migrações, me parece que as interpretações do Judiciário se distanciam do texto da lei, podendo, como afirma o editorial da Folha de S. Paulo de 29.3.2007, ser caracterizadas como exemplos daquilo que os norte-americanos chamam de legislate from the bench (legislar dos tribunais).   

Como atenuante, e em defesa do Judiciário, diga-se que algumas de suas decisões têm ocorrido pela falta de iniciativa do Legislativo em produzir legislação que atenda aos anseios de boa parte da sociedade.  E, nesse caso específico, a ação do Judiciário teve o efeito positivo de “obrigar” os parlamentares a legislar sobre a fidelidade partidária, de certa forma constrangendo-os a estabelecer medidas que dificilmente seriam aprovadas, já que contrariam os interesses não só da maioria dos deputados e senadores, mas também do governo, que aproveitava a liberdade que os políticos tinham para mudar de partido para forjar bases de apoio no Congresso mais numerosas do que aquelas que eram fruto das coalizões realizadas logo após as eleições. Outras circunstâncias “atenuantes” dessas decisões judiciais sobre fidelidade partidária são: primeiro, de modo a garantir a segurança jurídica, as medidas passaram a ter efeito apenas após as interpretações do TSE terem sido emitidas. Além disso, evitou-se uma situação em que toda e qualquer mudança de partido fosse punida. Nos casos em que houver uma mudança substancial na linha ideológica do partido ou quando for comprovado que o político sofreu perseguição interna, os TREs e o TSE podem manter o mandato com o político, o que reduz o risco de abuso de poder por parte das direções partidárias. 

Concluindo, o ideal seria que o Judiciário se abstivesse de “legislar” (refiro-me, em especial, a interpretações distantes do texto da lei, como me parece ser o caso dos exemplos apontados acima) e que o Legislativo produzisse legislação tempestivamente e em acordo com o interesse público (e não visando apenas aos interesses dos seus membros). Mas, enquanto o Legislativo brasileiro mantiver um padrão de inoperância legislativa, seja deixando um vácuo legislativo em relação a temas relevantes (como no caso da lei complementar para regulamentar o direito de greve dos servidores públicos), seja não reformando uma legislação em relação à qual as mudanças são de interesse público (como no caso da fidelidade partidária), parece que devemos esperar que o Judiciário vá continuar tendo grande atividade “legislativa”.

Notas

1 Governabilidade aqui tratada, de forma simplificada, como relacionada à formação de maioria no Legislativo, de maneira a que o Executivo possa implementar sua agenda.

2 A exposição aqui realizada dos argumentos utilizados pelos ministros do TSE toma como base, em parte, a repercussão que tiveram nos meios de comunicação nos dias seguintes à decisão.  Os argumentos apresentados nas decisões posteriores do TSE e do STF são, em boa parte, similares a eles.

3 O art. 24 dispõe: “Na Casa Legislativa, o integrante da bancada deve subordinar sua ação parlamentar aos princípios doutrinários e programáticos e às diretrizes estabelecidas pelos órgãos de direção partidários, na forma do estatuto”. O art. 25, por sua vez, define penalidades possíveis, a serem estabelecidas nos estatutos dos partidos, para parlamentares indisciplinados (que se opuserem “às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos partidários”). O art. 26 prevê: “Perde a função ou cargo que exerça, na respectiva Casa Legislativa, em virtude da proporção partidária, o parlamentar que deixar o partido sob cuja legenda tenha sido eleito”.

Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina.

* Este artigo é uma versão revista e atualizada (em novembro de 2007) da palestra apresentada no Fórum Brasileiro de Direito Eleitoral: A Reforma Eleitoral em Debate, promovido em setembro de 2007 pela Escola Judiciária Eleitoral de Santa Catarina – TRESC.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 14, 2007.

 

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