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Dupla filiação partidária: ainda breves considerações

Por: Marcelo Dias Martins

A revista RESENHA ELEITORAL - Nova Série, do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, publicou – em sua edição de julho a dezembro de 2004, v. 11, n. 2, p. 35-44 – alentado artigo de Luciana Costa Aglantzakis, servidora do Tribunal Regional Eleitoral de Roraima e Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Atual da Amazônia, no qual a autora discorre sobre a interpretação que tem sito feita pela Justiça Eleitoral acerca da dupla filiação partidária.

Apresenta a autora, como fundamento do quanto expõe, diversos julgados de Tribunais Eleitorais, sem deixar de identificar na maioria deles a interpretação rigorosa do art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995 – Lei dos Partidos Políticos –, cuja redação é a seguinte:

Quem se filia a outro partido deve fazer comunicação ao partido e ao juiz de sua respectiva Zona Eleitoral, para cancelar sua filiação; se não o fizer no dia imediato ao da nova filiação, fica configurada dupla filiação, sendo ambas consideradas nulas para todos os efeitos.

Ressalta, no entanto, também com base em julgados por ela mencionados, que deve prevalecer nessa matéria uma interpretação mais progressista e ponderada, que compatibilize a lei com o ordenamento jurídico, sobretudo com as normas constitucionais que asseguram a autonomia partidária e a liberdade de associação, bem como em função do grau de escolaridade da maioria dos filiados, a dificultar a observância das exigências legais, e, ainda, em razão da própria organização dos partidos políticos.

Diante dessas circunstâncias, sugere a autora que o rigor do art. 22, parágrafo único, da Lei dos Partidos Políticos, somente deve ser aplicado àquele que tem a noção jurídica de que deve ser filiado a apenas um órgão partidário, mas não age de acordo com tal consciência; que referido dispositivo não pode ser aplicado de modo a ferir o princípio da liberdade de associação; que a Justiça Eleitoral deve aferir se há indícios de que o filiado comunicou sua desfiliação ao partido, à Justiça Eleitoral, ou a ambos, abstendo-se, em caso de resposta afirmativa, de pronunciar a nulidade das filiações partidárias; e, por fim, ressalta que a filiação partidária é matéria interna corporis e, como tal, pode ser atestada pelos órgãos de direção partidária, dada a autoridade que possuem, já que não mais estão sob a tutela da Justiça Eleitoral.

Em primeiro lugar, é preciso assinalar a relevância das ponderações trazidas pela autora sobre tema que aflige os jurisdicionados e desafia a Justiça Eleitoral, que tem a incumbência constitucional de aplicar o Direito ao caso concreto, e aqueles em razão do disposto no art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece.

Feitas essas considerações iniciais e registrando parcial concordância com os argumentos expendidos pela autora, penso, todavia, que – antes de investigar o rigor com que têm sido resolvidos pela Justiça Eleitoral os casos envolvendo dupla filiação partidária e se as soluções adotadas estariam, de algum modo, a restringir a abrangência de dispositivos constitucionais – é necessário fixar a correta caracterização legal da chamada dupla filiação partidária.

Nesse ponto, verifica-se que a própria Lei n. 9.096/1995, no dispositivo acima transcrito, oferece ao intérprete os parâmetros do conceito, ou seja, incide na chamada dupla filiação partidária aquele que, já sendo filiado a um partido político, se filia a outro e deixa de fazer a comunicação, no prazo assinado, ao partido e ao juiz de sua respectiva zona eleitoral, para cancelar sua filiação ao partido anterior.

Percebe-se, assim, que o dispositivo tem por finalidade evitar a dupla militância partidária, pois ninguém pode estar filiado a mais de um partido político ao mesmo tempo, o que também justifica a exigüidade do prazo nele previsto, pois se trata de oportunidade concedida ao filiado para corrigir situação anômala.

Vista a questão por esse prisma, parece que a conseqüência prevista na lei, que declara a nulidade de ambas as filiações partidárias, não restringe a abrangência dos dispositivos constitucionais que versam sobre autonomia partidária e liberdade de associação, traduzindo, ao contrário, legítima sanção àquele que descumpriu a lei, à qual, de resto, todos devem observância, autônomos ou não, nos termos da Constituição.
Essa tem sido a orientação pacífica do Tribunal Superior Eleitoral, da qual é exemplo, dentre outros, o acórdão que segue:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2004. REGISTRO DE CANDIDATURA. INDEFERIMENTO. DUPLA FILIAÇÃO.

– Infirmar a conclusão a que chegou a Corte Regional, que entendeu configurada a dupla filiação, demanda o revolvimento de matéria de fato, inviável em sede de recurso especial (Súmula n. 279/STF).

– Oportuna comunicação da desfiliação à agremiação partidária e ao juiz da respectiva zona eleitoral é providência indispensável, que, se não cumprida no dia imediato ao da nova filiação, enseja a nulidade de ambas as filiações (Precedentes/TSE).

– Agravo regimental a que se nega provimento.

[Ac. n. 23.894, de 28.9.2004, Rel. Min. Carlos Velloso, publicado em sessão – grifo nosso.]

Embora seja clara a conclusão do julgado acima mencionado, permito-me fazer uma objeção quanto à conjunção aditiva e, que, de resto, é reprodução do texto legal, para afirmar que, se o interessado comunicou oportunamente sua desfiliação ao partido político, a ausência de comunicação ao Juiz Eleitoral não poderá prejudicá-lo, uma vez que facultativa, materializando-se, aqui, a concordância parcial anteriormente expressada.

Isso porque a filiação partidária ocorre no âmbito do partido político, da mesma forma que a desfiliação, cabendo à Justiça Eleitoral, num e noutro caso, por força da lei, receber a respectiva comunicação apenas para fins de anotação e verificação de prazos de filiação para efeito de candidatura, jamais para que se aperfeiçoe ou ganhe eficácia o procedimento de filiação ou desfiliação (art. 19, caput, da Lei n. 9.096/1995), ou, nas palavras do Ministro Nelson Jobim, proferidas por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 16.410, de 12.9.2000: “[...] se dão no corpo dos partidos, e não no corpo da Justiça Eleitoral, que não tem nada a ver com isso.”

Indo além, já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral, no entanto, em incontestável benefício do filiado, que, na impossibilidade de localizar o diretório municipal da agremiação política, ou seu presidente, a comunicação do desligamento poderá ser feita ao Juízo Eleitoral (Ac. n. 16.477, de 16.11.2000, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ de 23.3.2001).

Mesmo a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, hoje consolidada, passou por intensa discussão, principalmente por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 16.410, anteriormente mencionado, em que o Ministro Fernando Neves, com a acuidade que marcou sua atuação naquela Corte, ponderou que, se a dupla filiação fosse resolvida pelo menos um ano antes da eleição, não haveria prejuízo ao processo eleitoral, entendimento esse que, entretanto, restou vencido.

E disse mais o Ministro Fernando Neves:

No caso de nova filiação, a obrigatoriedade da comunicação ao partido anterior decorre, a meu sentir, da necessidade de se evitar que uma pessoa possa participar ao mesmo tempo da vida partidária de duas agremiações. Todavia, se tal comunicação não ocorrer no exíguo prazo estabelecido na lei, que é de vinte e quatro horas, isso não significa, necessariamente, que tenha havido essa dupla militância partidária. Ao contrário, a presunção, nessa hipótese, é de que o eleitor, ao se filiar ao novo partido, deixou de participar do antigo.

Contudo, prevaleceu na Corte Superior a aplicação da lei no seu aspecto objetivo, não estando a penalidade condicionada à aferição de prejudicialidade para o processo eleitoral, nem tampouco à verificação de que a duplicidade de filiações resulta de dolo ou culpa do filiado, ou mesmo do seu desconhecimento das exigências legais, ou, ainda, se tinha real intenção de mudar de partido, restando àqueles que discordarem a possibilidade de reavivar a discussão, pois têm a seu favor a constante renovação da composição dos Tribunais Eleitorais.

Outra hipótese, que não se confunde com a dupla filiação prevista no art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995, mas pode ensejá-la, é aquela em que o filiado, embora tenha comunicado oportunamente seu desligamento ao partido, continua a integrar sua listagem de filiados, listagem essa que é entregue à Justiça Eleitoral no período previsto na lei, o que poderá lhe trazer algum transtorno se já estiver filiado a outro partido, principalmente por ocasião do registro de candidatura, pois seu nome constará em listagens de partidos diferentes, todas entregues à Justiça Eleitoral.

Todavia, nesse caso, embora figure o interessado em mais de uma listagem de filiados de partidos diversos, havendo prova de que foi observado o art. 21 da Lei dos Partidos Políticos, deverá ser afastada eventual alegação de dupla filiação partidária, conclusão que não se deve a eventual abrandamento do art. 22, parágrafo único, da mesma lei, mas à subsunção dos fatos aos comandos próprios de regência, no caso o art. 21 da Lei dos Partidos Políticos.

Com efeito, prescreve o referido art. 21, caput, da Lei n. 9.096/1995, que: “Para desligar-se do partido, o filiado faz comunicação escrita ao órgão de direção municipal e ao Juiz Eleitoral da Zona em que for inscrito [grifo nosso].” Este é completado pelo seu parágrafo único, que enuncia: “Decorridos dois dias da data da entrega da comunicação, o vínculo torna-se extinto, para todos os efeitos”.

Também aqui vale a mesma objeção feita anteriormente acerca da conjunção aditiva e, de que a comunicação à Justiça Eleitoral é mera faculdade deferida ao filiado. Além disso sua ausência não tem a força necessária para perpetuar a existência da filiação partidária, pois o próprio parágrafo único enuncia a data a partir da qual o vínculo entre filiado e partido estará extinto, uma vez que, como não se desconhece, entre a Justiça Eleitoral e o filiado não se estabelece nenhum vínculo.

Reforça tal entendimento o julgado do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, mencionado por Luciana, segundo o qual:

Comprovado nos autos, pelo Recorrente, pedido de desfiliação endereçado à antiga agremiação antes de ingressar em novo partido, extinto está o liame entre eles, remanescendo válida a última filiação, vez que a comunicação à Justiça Eleitoral constitui mera salvaguarda do eleitor no exercício do direito da liberdade de associação previsto no inciso XVII do art. 5º da Constituição Federal, contra a desídia ou má-fé dos partidos políticos, reconhecida pelo § 2º do art. 19 da Lei n. 9.096/1995, não acarretando sua falta a aplicação do parágrafo único do art. 22 da precitada lei.

Ora, com todo o respeito, não me parece que seja necessário, para chegar à conclusão a que chegou o Tribunal, invocar o dispositivo constitucional acerca da liberdade de associação, nem que a solução encontrada pelo Regional caracterize uma interpretação progressiva do art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995, mas, ao contrário, significa tão-só a correta aplicação do art. 21, e seu parágrafo único, da mesma lei.

Admitir-se, por outro lado, que alguém que tenha comprovado seu desligamento de determinado partido e ingressado no quadro de filiados da nova agremiação somente após a extinção do vínculo entre ele e o partido anterior, seja prejudicado por dupla filiação apenas porque seu nome não foi retirado da listagem do primeiro partido ou porque não comunicou sua desfiliação à Justiça Eleitoral, é solução desajustada à espécie, em prejuízo dos destinatários e da própria Justiça.

Promotor de Justiça em Minas Gerais.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 13, 2006.

 

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