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Dupla filiação e decisões divergentes nos Tribunais Eleitorais: considerações jurídicas sobre o art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995

Por: Luciana Costa Aglantzakis

Verifica-se que existe polêmica em relação à interpretação do art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995 no âmbito da Justiça Eleitoral brasileira. Esse artigo é um sinal da necessidade ímpar de os intérpretes optarem por temperamentos constitucionais porque, em determinadas situações, a opção por uma interpretação literal da norma inserta pode ferir o princípio da autonomia partidária ou, pior, a Lei Magna e o bom senso lógico que aviventa a mente dos cidadãos.

É público e notório, também, que este tema é atual e foi discutido recentemente nos Tribunais Regionais Eleitorais quando dos julgamentos dos registros de candidatura do pleito municipal de 2004.

Segundo essa norma, quem se filia a outro partido político tem a obrigação de informá-lo ao partido a que estava anteriormente filiado e à Justiça Eleitoral sob pena de configurar “dupla filiação” e de ambas as filiações serem consideradas nulas, pois infringiram princípios de fidelidade partidária.

Segue, abaixo, a norma que será analisada nesse artigo:

Art. 22. O cancelamento imediato da filiação partidária verifica-se nos casos de:

I – morte;

II – perda dos direitos políticos;

III – expulsão;

IV – outras formas previstas no estatuto, com comunicação obrigatória ao atingido no prazo de quarenta e oito horas da decisão.

Parágrafo único. Quem se filia a outro partido deve fazer comunicação ao partido e ao juiz de sua respectiva Zona Eleitoral, para cancelar sua filiação; se não o fizer no dia imediato ao da nova filiação, fica configurada dupla filiação, sendo ambas consideradas nulas para todos os efeitos.

Para ilustrar a temática, seguem abaixo jurisprudências demonstrativas de como vem sendo interpretado esse dispositivo na maioria dos Tribunais pátrios:

RECURSO ESPECIAL – REGISTRO DE CANDIDATURA – FILIAÇÃO PARTIDÁRIA – DUPLICIDADE – LEI N. 9.096/1995, ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO. 1. Aquele que se filia a outro partido deve comunicar ao partido ao qual era anteriormente filiado e ao juiz de sua respectiva zona eleitoral o cancelamento de sua filiação no dia imediato ao da nova filiação sob pena de restar caracterizada a dupla filiação. 2. Impossibilitado de localizar o diretório municipal da agremiação política, ou o presidente, a comunicação da desfiliação poderá ser feita ao juízo eleitoral. 3. Recurso provido [TSE. RESP 16.477, (16477), Mairiporã/ SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter; DJU 23.3.2001, p. 184].

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AGRAVO REGIMENTAL – FILIAÇÃO – DUPLICIDADE – LEI N. 9.096/1995, ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO. 1. Aquele que se filia a outro partido deve comunicar ao partido ao qual era anteriormente filiado e ao juiz de sua respectiva zona eleitoral o cancelamento de sua filiação no dia imediato ao da nova filiação, sob pena de estar caracterizada a dupla filiação. 2. Diante da verificação da dupla filiação partidária pela falta de comunicação oportuna, indefere-se o pedido de registro de candidatura (Lei n. 9.096/1995, art. 22, parágrafo único). 3. Precedentes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento [TSE. RAREG 2343 – (2343), Osasco/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter; DJU, 30.3.2001. p. 231].

REJE- PEDIDO DE REGULARIZAÇÃO DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA - FALTA DE COMUNICAÇÃO AO JUÍZO ELEITORAL DO DESLIGAMENTO DO PARTIDO – NÃO-CUMPRIMENTO AOS REQUISITOS IMPOSTOS PELOS ARTS. 21, CAPUT E 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 9.096/1995 - CONFIGURAÇÃO DE DUPLICIDADE DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. 1. Os arts. 21, caput, e 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995 estabelecem a necessidade da comunicação ao Juízo Eleitoral do desligamento do partido. 2. A não-observância de tal requisito acarreta a dupla filiação e a conseqüente nulidade de ambas. 3. A lei não contém palavras desnecessárias. O desligamento de um partido ou a filiação a outro deve ser comunicada ao partido e ao Juiz da Zona Eleitoral em que for inscrito. 4. O fato do nome do recorrente constar na lista de filiados do PT, após o dia 23.9.2003, data em que deveria ter comunicado o Juízo Eleitoral, não tem o condão de sanar a nulidade já caracterizada, nem é capaz de convalescer a irregularidade da falta de comunicação ao Juízo. 5. Recurso Improvido [REJE 14.694, TRE/MT, 14.7.2004].

NE: Alegação de que a autonomia partidária deveria prevalecer nas querelas envolvendo filiação partidária.[...] É firme, no entanto, a orientação do TSE no sentido de que a autonomia constitucional dos partidos tem a ver com a sua organização e funcionamento internos (art. 17, § 1º), não, porém, com as suas relações com a Justiça Eleitoral e os demais partidos, como sujeito do processo eleitoral, que são regidos por lei federal (CF, arts. 16 e 22, inc.I) [AC. n. 20.034, de 25.9.2002, rel. Min. Sepúlveda Pertence].

A lógica jurídica dominante é de que os filiados precisam ter bastante cautela em suas novas opções partidárias, cabendo, na prática, pecar pelo excesso, ou seja, devem informar sua nova opção partidária, no mesmo dia da nova filiação, ao órgão partidário a que eram anteriormente filiados e ao Juiz Eleitoral de sua circunscrição eleitoral, sob pena de configurar dupla filiação.

Apesar de a jurisprudência majoritária adotar essa rotina, é admitido excepcionalmente que, quando ocorrerem obstáculos promovidos pelo partido do antigo vínculo partidário, em receber a comunicação de desfiliação –, fato que deve ser provado –, o filiado pode comunicar sua nova opção partidária somente à Justiça Eleitoral.

Para melhor ilustração, venho trazer a lume o sentido da interpretação que vem sendo dada no Tribunal Superior Eleitoral. Para esse órgão, o art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995, conforme assentou o Ministro Néri da Silveira, REsp. 16.410/PR do TSE, trata-se de uma regra rigorosa, mas que:

[...] tem que ser compreendida dentro da realidade que me parece de alcance significativo. É um esforço para que realmente possamos ter organizações partidárias. É um esforço para que não haja o troca-troca de partidos. Essa regra é muito importante. Se alguém quer trocar de partido, há tempo certo para poder se candidatar pelo segundo partido.[...]O que esteve no intento do legislador? Provavelmente, estabelecer uma disciplina rigorosa para que a desvinculação de um partido se fizesse por razão séria e com objetivo seguro. Quer dizer, o eleitor que se desfiliar, ele se desfilia e comunica. E a lei prevê prazo curto: a comunicação deve ser feita no dia imediato ao da nova filiação. Se ele não o fizer dentro deste prazo curto, é considerado duplamente filiado, com todas as conseqüências da dupla filiação: as duas filiações, diz a lei, são consideradas nulas para todos os efeitos (os grifos constam do original).

Entretanto, parece-me que essa exigência é o mesmo que exigir que um objeto pontudo se torne retilíneo num toque de mágica, quando ambos são iguais na matéria, ou seja, os partidos não possuem objetivos diferentes, a não ser conquistar o Poder Político, sendo insignificante levar adiante uma interpretação rigorosa que tem o condão de prejudicar a parte fraca na estória.

Esse argumento é vazio, também, na medida em que não é razoável exigir fidelidade partidária, de entes partidários que nem sequer possuem estatutos que demonstrem objetivamente as diretrizes partidárias que se propõem a cumprir. O prejudicado será sempre o cidadão que, por razões de autonomia de associação partidária, tem mais afinidade com o grupo A ou B para disputar o Poder Político; pois o partido político geralmente não tem diretriz ou ideologia transparente; onde esse fato pode ser provado pelos próprios Tribunais, que colacionam processos onde os órgãos internos são partes contrapostas.

Dizemos isso pois está sendo corriqueiro querelas interna corporis dos órgãos municipais e regionais de uma mesma agremiação partidária, razão pela qual citamos, v.g., os processos eleitorais em que os diretórios regionais e/ou municipais se digladiam como partes adversárias nos Tribunais Eleitorais para invalidarem ou manterem convenções de registro de candidatura que acordaram coligações com outros partidos, cujos fundamentos são em torno de diretrizes partidárias confusas.

Nesse diapasão, segue uma crítica – favorável a essa – tese do Desembargador Lécio Resende, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, que, em louvável palestra proferida na Escola Judiciária de Roraima, em 19.11.2003, assim se pronunciou:

[...] embora a aparente diversidade de partidos, e consequentemente a diversidade de propósitos, o que há é uma unidade na diversidade, porque o que todos pretendem é alcançar o poder.

Como não há fidelidade partidária, os partidos políticos tendem a se transformar em aglomerados humanos, formando conglomerados de interesses, de regra, pessoais.

Com esse enfoque, entendemos que essa regra somente será obrigatória se o filiado for totalmente irresponsável, ou seja, não comunicar a nenhum desses dois órgãos a informação de sua intenção de desfiliação, preconizada no art. 22, ao anterior partido e à Justiça Eleitoral (apenas por precaução). Essa foi a orientação perfilhada pelo TRE/BA:

Eleitoral. Recurso. Nulidade de filiação partidária. Comprovação de pedido de desfiliação do antigo partido. Validade da nova filiação. Provimento.

Comprovado nos autos, pelo Recorrente, pedido de desfiliação endereçado à antiga agremiação antes de ingressar em novo partido, extinto está o liame entre eles, remanescendo válida a última filiação, vez que a comunicação à Justiça Eleitoral constitui mera salvaguarda do eleitor no exercício do direito da liberdade de associação previsto no inciso XVII do art. 5o da Constituição Federal, contra a desídia ou má-fé dos partidos políticos, reconhecida pelo § 2º do art. 19 da Lei n. 9.096/1995, não acarretando sua falta a aplicação do parágrafo único do art. 22 da precitada lei.

Registre-se, também, que os filiados geralmente são pessoas que não dispõem de conhecimento técnico-jurídico suficiente para o procedimento da distribuição do requerimento de desfiliação.

Exigir que os mesmos remetam ofício-padrão à Justiça Eleitoral e aos partidos, por exemplo, é uma falta de honestidade para com o Estado Democrático de Direito, onde o princípio da igualdade não será efetivado tomando-se em conta a distância e o acesso à Justiça em todos os seus aspectos: conhecimento, satisfação e reconhecimento da Justiça Eleitoral como um órgão de tutela pública justo.

De outra banda, é salutar ponderar que os dirigentes partidários regionais e municipais geralmente consultam o Tribunal Regional Eleitoral sobre qual órgão da Justiça Eleitoral é competente para processar este requerimento exigido pelo art. 22 da Lei n. 9.096/1995. Se consultam é porque não sabem como proceder, sendo comum muitos errarem no procedimento, em que diversas comunicações de filiação e desfiliação são enviadas aos Presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais por filiados, presidentes de partidos, políticos, quando, na prática, o filiado é quem tem a obrigação de comunicar somente ao Juiz de sua circunscrição eleitoral.

O fato é mais grave em relação aos filiados das cidades interioranas; esses geralmente adotam a prática de se filiarem em festas políticas, e não conhecem o risco dessa nova atitude, onde assinam a “ficha” geralmente embriagados ou bastante eufóricos com a balada do forró ou do pagode. Poucos deles possuem discernimento ou instrução educacional necessária para saber que devem expedir dois ofícios (para o anterior partido e ao Juiz de sua circunscrição). Se soubessem, talvez não se filiassem!! O comum é que concebem que basta a nova filiação ou quando não que esse novo aliado partidário é o responsável na comunicação da “nova filiação” ao anterior partido e à Justiça Eleitoral.

Ocorre, também, que alguns cidadãos, por livre arbítrio, e em acordo com o espírito da lei, somente informam ao antigo órgão partidário (que mormente sobrecarregado de atribuições e quase sem estrutura operacional não dispõe de responsabilidade e conhecimento compatível sobre a responsabilidade que tem para atender ao disposto na regra do art. 22 da Lei n. 9.096/1995). Resultado: o partido anterior não exclui esse cidadão de sua relação de filiados; assim, constam inúmeros cidadãos na listagem de dupla filiação das Zonas Eleitorais, tendo o partido que resolver esse fato no decorrer dos processos de registro de candidatura, o que, dependendo do momento, poderá comprometer o processo eleitoral.

Saliente-se que a realidade dos órgãos partidários municipais ou regionais não é de associações estruturadas. Se os Tribunais Eleitorais forem realizar uma estatística sobre órgãos municipais efetivamente instalados irão se deparar com uma infinidade de casas de famílias transmudadas em diretórios ou comissões provisórias municipais. Muitos desses órgãos nem possuem telefone ou movimentação financeira para adquirirem papel, impressora, computador e cartuchos de tinta para imprimir um ofício à Justiça Eleitoral informando que o Filiado A ou B não pertencem mais a esta agremiação partidária. Alia-se, também, ao fato de que os partidos geralmente não atualizam os dados de suas Comissões Provisórias Municipais perante os Tribunais Eleitorais. Tais informações ocorrem, geralmente, ao arrepio da Lei n. 9.096/1995, às Zonas Eleitorais, e as anotações dos órgãos municipais são feitas na véspera do pleito eleitoral, pois nessa época são feitos os acordos políticos que devem prevalecer na escolha dos candidatos nas convenções partidárias.

Se os Tribunais forem traçar um perfil dos filiados, descobrirão que eles sequer sabem redigir uma carta de desfiliação ou de comunicação de filiação para um magistrado. Os partidos, na prática, não são nada mais do que uma roupa dos filiados para almejarem o Poder Público.

Dessa forma, é preciso estudar o caso conforme a orientação da interpretação por ponderação, em que a Justiça Eleitoral somente poderá intervir em assuntos de interesse partidário quando evidenciada ameaça ou efetiva lesão excepcionalíssima à regularidade do processo eleitoral. Nossa opinião é de que essa regra não pode ser aplicada quando venha a ferir unicamente o princípio da associação partidária.

Sugerimos, assim, uma interpretação razoável, nos seguintes moldes:

a) O filiado honesto e digno de receber tratamento de respeito pela sua opção partidária é aquele que tem a noção jurídica de que deve ser filiado a apenas um órgão partidário. Se este filiado não adotar nenhuma atitude que demonstre que merece fé pública, torna-se possível, diante do caso concreto, ocorrer duplicidade de filiação partidária.

b) A regra do art. 22, parágrafo único da Lei n. 9.096/1995, em nenhum momento pode ferir o princípio da liberdade de associação partidária, em que o direito político do eleitor cidadão é um direito fundamental que deve ser respeitado, direito este que não é absoluto quando venha comprometer a regularidade do processo eleitoral;

c) Nos casos práticos, o intérprete positivista da Justiça Eleitoral deve ponderar a situação mencionada, nos autos, no sentido de que se houver indícios de que o filiado comunicou sua nova filiação partidária a algum dos dois órgãos (Justiça Eleitoral ou o anterior órgão em que estava filiado, ou para ambos), não pode ser taxado como eleitor com dupla filiação partidária porque é um filiado fiel, consciente e merecedor de ter o direito de escolher o seu Partido Político, nos moldes dos princípios da liberdade de associação partidária, e também dos seus direitos políticos de cidadão.

d) CONCLUSÃO: “Sendo a filiação partidária matéria interna corporis, os partidos políticos podem atestar, pela autoridade competente dos seus órgãos de direção, a filiação do eleitor aos seus quadros, porquanto não são mais tutelados pela Justiça Eleitoral”. [TRE. Ac. n. 16.228, Anitápolis/SC, 14.6.2000, Juiz Paulo Leonardo Medeiros Vieira], desde que o atestado não atente contra a regularidade do processo eleitoral.

Trata-se, então, de uma situação em que a forma da lei não pode extrapolar a lógica humana da realidade partidária, em que fixamos estas afirmações calcadas na nossa experiência e na vivência profissional adquirida na Justiça Eleitoral do Estado de Roraima.

Salutar também registrar trechos da decisão proferida pelo Tribunal Regional de Santa Catarina no Recurso Contra Decisões de Juízes Eleitorais [Acórdão n. 18.720, de 14.4.2004, Rel. Juiz José Gaspar Rubik]:

Quando a aplicação da legislação eleitoral implica aparente contraposição de preceitos que se eqüivalem na ordem constitucional, cabe ao Juiz oferecer uma interpretação da norma que preserve, na sua essência, todos os dispositivos constitucionais afetos à matéria, de modo a não estabelecer uma supremacia entre interesses igualmente fundamentais, podendo, para tanto, utilizar-se da ponderação de valores.

Dessarte, ainda, percebe-se que os partidos e a política são duas instituições dinâmicas, em que os filiados mudam diuturnamente suas opções partidárias e nem sempre conseguem ou sabem como proceder para ter o novo status jurídico de filiado sem cair no estereótipo de infidelidade partidária.

Muitos deles confiam nos novos órgãos partidários e pensam (ou recebem desses o juramento necessário) que tudo está resolvido perante a Justiça Eleitoral quanto à nova filiação acordada.

Outro fato a ser acrescentado é o de que os filiados desconhecedores da lei concebem, por razão lógica mas nunca jurídica, que basta mandar uma cartinha de desfiliação para o antigo órgão partidário e o problema estará resolvido; confiam cegamente que o antigo aliado partidário processará formalmente a informação prestada.

Não obstante, corriqueiramente, os opostos não se encontram e a situação real é idêntica em muitos Tribunais Eleitorais: filiados, famosos ou não, alguns até detentores de cargos políticos, ficam em situação de dupla filiação, e muitos advogados dizem que é uma causa perdida.

Diante desse contexto, entendemos colacionar uma advertência filosófica para os nossos juristas, feita por Roberto Senise Lisboa na sua obra Manual de Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. São Paulo: RT, 2004, p. 46, que entende que:

Nem sempre a norma jurídica, em que pese a sua legalidade formal, poderá ser considerada justa ou pelo menos legítima; nem tudo o que é legal pode ser tido por legítimo. A legitimidade é aferida mediante a harmonização do conteúdo da norma com os anseios da sociedade, que é sua destinatária. Daí por que nunca se deve esquecer que, apesar de as leis serem formuladas por representantes da sociedade, eles nem sempre adotam posturas que correspondem às expectativas dela.

Sábia também a alusão fornecida pelo Ministro Luís Fux, quando proferiu aula magna em 31.8.1998, na Universidade Gama Filho, cujo tema foi “O que se espera do Direito no terceiro milênio, frente às crises das leis, da justiça e do ensino jurídico”, que de certa monta pode servir indiretamente como outro argumento emotivo e filosófico para ilustrar esta temática:

[...] uma sentença em que se constrói o “jurídico” antes do “justo” se equipara a uma casa onde se erige o teto antes do solo, endossando Plauto Faraco de Azevedo, preconiza a era de um poder judicial criativo [...] que atenda às exigências de justiça perceptíveis na sociedade e compatíveis com a dignidade humana, um poder para cujo exercício o juiz se abra ao mundo ao invés de fechar-se nos códigos, interessando-se pelo que se passa ao seu redor, conhecendo o rosto da rua, a alma do povo, a fome que leva o homem a viver no limiar da sobrevivência biológica”.

Nesse desiderato, entendemos que os Tribunais devem captar o verdadeiro interesse público do art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995: a obrigatoriedade da fidelidade partidária em sintonia com os princípios da autonomia partidária e da liberdade de associação partidária, desde que estes estejam em harmonia com a regularidade do processo eleitoral, situação que deve ser preservada pelos Tribunais Eleitorais, por razão de ordem pública, apenas em casos excepcionalíssimos, como, v.g., o de obstar um pedido de regularidade de dupla filiação em sintonia com um pedido de substituição de candidatura, quando o partido já às vésperas do pleito eleitoral escolhe novo candidato, entretanto sem a condição de elegibilidade da filiação partidária. Vejamos um decisum que priorizou o princípio da autonomia partidária, em que esta deve ser entendida como efetivada no âmbito do próprio partido e que a comunicação intempestiva à Justiça Eleitoral da nova filiação (art. 22, parágrafo único, da Lei n. 9.096/1995) não implica automática caracterização de dupla filiação:

RECURSO – FILIAÇÃO PARTIDÁRIA – DUPLICIDADE – NÃO-CONFIGURAÇÃO – PROVIMENTO – A COMUNICAÇÃO INTEMPESTIVA À JUSTIÇA ELEITORAL DA NOVA FILIAÇÃO (ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 9.096/1995), NÃO IMPLICA AUTOMÁTICA CARACTERIZAÇÃO DE DUPLA FILIAÇÃO, SE O ELEITOR SOLICITOU, TEMPESTIVAMENTE, A DESFILIAÇÃO AO PARTIDO ANTIGO – CUSTAS – DILIGÊNCIAS – ISENÇÃO – PROVIMENTO – Descabe a condenação do partido no pagamento de diligências do oficial de justiça, ante a gratuidade que impera nos feitos submetidos à Justiça Eleitoral (TRESC. Acórdão n. (17.134) – Rel. Juiz Anselmo Cerello; DJSC 4.12.2001 – p. 106).

Corroborando o julgado acima, insta salientar, ainda, que o documento principal a ser considerado para “efeito de prova” é a ficha de filiação partidária, pelo que citamos a seguinte decisão:

[...] A comunicação ao Juízo Eleitoral é também uma garantia que a lei prevê ao eleitor, para que este não fique à mercê dos órgãos partidários, após ter perdido a desfiliação. Assegurando a Constituição a ampla liberdade associativa (art. 5o, XX), a comunicação ao Juízo Eleitoral busca garantir ao cidadão o direito de não permanecer filiado contra sua vontade. Dois dias após a comunicação, o vínculo partidário extingue-se para todos os efeitos (art. 21, parágrafo único da Lei n. 9.096/1995). 2. No caso em exame, embora a lista do partido tenha equivocadamente apontado data de filiação anterior, as fichas de filiação demonstram que a filiação ao novo partido ocorreu no mesmo dia em que foi comunicado ao Juiz Eleitoral o desligamento do partido anterior (RE n. 2.072, Lupionópolis/PR, 14.6.2004, Relator Fernando Quadros da Silva).

O Tribunal Regional Eleitoral de Roraima optou por esta interpretação dinâmica em que firmou jurisprudência também no sentido de ser imprescindível o aviso da Justiça Eleitoral noticiando a dupla militância, entendendo ser indispensável a citação ou a intimação do interessado para, respectivamente, apresentar defesa ou oferecer recurso contra a decisão que considerou existente a duplicidade partidária.

Outro ponto destacado pelo Tribunal roraimense é o de que, nos registros de candidatura, o fato da dupla filiação partidária pode ensejar erro material por excesso de formalismo, sendo necessário averiguar se não existiu dolo ou má-fé. Neste sentido, registramos trechos do voto do Rel. Juiz Chagas Batista, no Recurso Eleitoral n.1.528-II, julgado em 24.8.2004:

[...] as comunicações feitas junto a esta Justiça Especializada e aos partidos políticos, configuram simples formalismo, pois ao filiar-se noutra agremiação o recorrente desfiliara-se tacitamente da legenda anterior. Donde se conclui que inexistia dupla filiação pela ausência de confirmação. Além do mais, não é justo nem razoável extinguir-se um direito material baseado em lacuna de cunho formal.

Em suma, concebemos que os Tribunais Eleitorais devem adotar interpretação progressiva deste dispositivo (art. 22 da Lei n. 9.096/1995), em atenção ao princípio da autonomia e associação partidárias, pois a Justiça Eleitoral não pode ser uma máquina cega de cumprimento de normas incoerentes; além do mais, não é tutora dos entes partidários.

Registre-se também, por final, que os principais “inquisidores” dos cidadãos com dupla filiação são os Promotores e Procuradores Regionais Eleitorais que, sem perceberem, indiretamente, são favoráveis a uma interpretação otimista, até porque eles poderiam ser mais agressivos e paralelamente promoverem denúncias nos moldes dos arts. 319 ou 320 do Código Eleitoral, verbis:

Art. 319. Subscrever o eleitor mais de uma ficha de registro de um ou mais partidos:

Pena – detenção até um mês ou pagamento de 10 a 30 dias-multa.

Art. 320. Inscrever-se o eleitor, simultaneamente, em dois ou mais partidos:

Pena – pagamento de 10 a 20 dias-multa.

Em face das considerações expendidas, segundo as quais os arts. 319 e 320 do Código Eleitoral encontram-se em desuso, entendemos, a título de sugestão, que os Tribunais devem adotar uma interpretação progressiva, no sentido de que a norma do art. 22 da Lei n. 9.096/1995 seja revista e repensada em todos os seus aspectos – nos moldes da nova retórica da interpretação pós-positivista –, tornando-se uma norma otimizada e útil conforme os ditames da coletividade brasileira.

Coordenadora de Partidos Políticos no TRE de Roraima. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Atual da Amazônia.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 11, n. 2 (jul./dez. 2004).

 

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