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Íntegra

Domicílio político

Por: Olavo Rigon Filho

Em recente artigo1 publicado nesta revista, o magistrado Rômulo Pizzolatti brindou-nos com ensaio a respeito do "conceito jurídico de domicílio eleitoral". Nesse artigo censura decisões de nosso Colendo Tribunal Regional Eleitoral que estariam, segundo seu articulado, criando um novo conceito de domicilio eleitoral, desvirtuado do Código Eleitoral e com induvidosa intromissão na atividade legislativa.

Na verdade, critica a posição de alguns julgados que, analisando casos concretos, reconheceram como domicílio eleitoral o lugar onde o candidato ou eleitor exerce seus direitos políticos, o local onde está centrada a sua vida jurídica de cidadão, o centro das suas atividades sociais e profissionais, enfim, o lugar que elegeu como o espaço para exercer sua cidadania.

Sem qualquer outra pretensão - a não ser defender nosso ponto de vista - tentaremos contrapor os argumentos apresentados. lembrando, sempre, que em nenhum momento se pretendeu ultrapassar a linha interpretativa do texto normativo, adentrando em seara alheia. Ao contrário. Como intérprete que exerce, em dado momento, a função mediadora e julgadora de determinada norma jurídica aplicada ao caso concreto, buscou-se tão-somente utilizar a linguagem dos que lidam com o Direito, que é exatamente a da exegese, da interpretação, e não da leitura do frio texto legal. Aplicou-se aquilo que Karl Larenz escreveu sobre o objetivo da interpretação, que é exatamente "falar o sentido oculto nas palavras da lei", sem que isso possa parecer uma criação legislativa ou uma deturpação legal.

E convém lembrar que aquela posição foi defendida com vistas a um caso concreto posto para julgamento, no qual os fatos e a realidade deviam ser interpretados à luz do Direito.

Com efeito, questão de fato e de direito se interpenetram. Isso significa que, para cada decisão de caso real sob a norma, a pessoa que deve tomar a decisão necessita de informações que não se depreendem da norma, mas que, não obstante, determinam a decisão. A interpretação do Direito não é um exercício de ludismo, desenvolvido à margem da realidade. Ambas, questão de fato e questão de direito, se entrelaçam sempre que nos dispomos a interpretar o Direito.

E por não dar atenção à realidade fática, certamente teremos casos de interpretação que poderão conduzir a resultados questionáveis no plano jurídico, como foi o episódio da candidatura do ex-Presidente José Sarney, que reconhecidamente não possuía domicilio político/eleitoral para concorrer a uma vaga ao Senado pelo Estado do Amapá, quando todos sabiam que exercia sua atividade política e de cidadania no Estado do Maranhão, onde de fato tinha domicílio político.

E essa realidade dinâmica é que gera toda a problemática na aplicação da norma legal. Sim, pois é extremamente frágil e inconsistente utilizar-se o critério do local da moradia como definido do domicílio eleitoral, visto que o que define o conceito jurídico de domicílio nada mais é do que "um acontecimento fáctico"2, geralmente de natureza voluntária, pelo qual a pessoa o elege como o espaço "de sua vida de relação, como centro de sua atividade no mundo jurídico"3.

Para Pontes de MIRANDA4, tanto o conceito de domicílio como o de residência estão centrados unicamente no suporte fático. Para ele "domicílio é fato jurídico" e como tal definido como o lugar escolhido para as suas relações sociais. E sendo um acontecimento tático, inquestionável ser possível definir que o domicilio político seja o local em que a pessoa exerce os seus direitos de cidadania, especialmente os eleitorais, mesmo que eventualmente tenha como residência ou moradia outro local.

Uma situação muitíssimo comum nos dias atuais pode servir como exemplo: pessoas que trabalham, estudam, exercem sua vida social na cidade de Florianópolis, mas que residem, por opção, em cidades vizinhas como, por exemplo, São José, Biguaçu ou Palhoça: Nessas cidades apenas residem com suas famílias, mas não têm qualquer atividade social ou de relação com a comunidade. O local onde têm suas ocupações habituais é Florianópolis. Não exercem sua atividade política onde moram. Pergunta-se: nesse caso, um candidato que tem sua influência política e seu reduto eleitoral na cidade de Florianópolis, mas mora em São José, poderia concorrer a um cargo eletivo naquela cidade?

Pelo critério do Código eleitoral certamente a resposta será negativa. Acontece que domicílio representa, segundo o magistério de Zeno VELOSO5, "uma projeção da personalidade humana, um fator de identificação, de individualização das pessoas", e tem como finalidade, no âmbito do Direito, fixar a competência para efeitos jurídicos. E se o objetivo da definição de domicílio está justamente na determinação da competência, por que razão esse critério pode estar dissociado do local onde o eleitor ou candidato exerce sua zona de influência política, sua cidadania, enfim?

Vários autores não limitam a interpretação de domicílio eleitoral ao conceito puro e simples de residência ou moradia. Pinto FERREIRA6 ensina que o domicílio político é o local "em que uma pessoa exerce seus direitos políticos e notadamente seus direitos eleitorais".

Orlando GOMES7, apesar de não enfocar a questão do domicílio eleitoral, identifica o domicílio como o lugar onde a pessoa "estabelece a sede principal de seus negócios, o ponto central das ocupações habituais"(*). Como se vê, o conceito de domicílio está sempre centrado no local que o cidadão elege como ponto principal para sua relação comunitária. O argumento utilizado de que essa interpretação levaria a oportunismos eleitorais como, por exemplo, "a que um vereador de um município, mas residente alhures, não se sensibilizasse quando um eleitor viesse reclamar do aumento exorbitante do IPTU, porque, pessoalmente, é contribuinte em outro município", ou "se fosse o Prefeito que tivesse sua residência em outro município: não saberia, por vivência própria, como é a coleta do lixo, o transporte urbano, a educação, a saúde no município do qual é prefeito", data maxima venia, não pode ser aceito no atual estágio democrático. Eliminar-se o critério de domicílio político como sendo aquele local que o candidato ou o eleito tem como local de seu exercício de cidadania, pelo simples fato de que poderá, por interesses pessoais, deixar de se importar com interesses daquela comunidade, convenhamos, é criar suposições que contradizem a realidade política presente. O eleitor já tem consciência política para discernir entre aquele que é aventureiro e aquele que está inserido no contexto da vida comunitária, "por vivência própria", e que irá defender os interesses dos eleitores do espaço territorial em que foi eleito. Não será o fato de residir em outro local que irá guiar o eleito, mas sim o fato de ter sido eleito porque representa uma parcela dos eleitores que residem e que se importam com aquela comunidade, uma vez que sabem (e é por isso que o elegeram) que é naquele local que tem suas atividades principais e onde tem suas preocupações cívicas. Não onde mora.

Vejo, portanto, que o conceito de domicílio eleitoral não pode ficar delimitado no estreito critério de moradia, de residência. Se onde reside realmente for o centro das relações de sua vida, onde exerce sua cidadania, inquestionavelmente esse será seu domicílio político. Agora, se esse eleitor foi candidato, tem sua residência como simples local de moradia, dissociado e distanciado da comunidade, alheio às relações da vida social, não tenho dúvida em afirmar que esse não poderá ser considerado o seu verdadeiro domicilio eleitoral.

Sem dúvida que o Código eleitoral estabelece um critério para definir o que seja domicílio eleitoral. Não questionaremos esse critério. Certamente teve como objetivo criar um mecanismo de segurança, buscando, além de estabelecer um critério prático para definição de domicílio, neutralizar, quem sabe, os inúmeros problemas de "movimentação de eleitores" entre cidades. Isso, todavia, não elimina o conteúdo axiológico do conceito de domicílio.

E para finalizar - obviamente sem a pretensão de esgotar o assunto - gostaríamos, mais uma vez, de lembrar que, deparando-se com um caso concreto, submetido a julgamento, entendemos que deverá o magistrado sopesar a situação fática e decidir de modo que possa reconhecer que o domicílio eleitoral - eleito livremente pelo eleitor e/ou candidato - coincide com o local onde exerce seus direitos políticos, sua cidadania e onde tem sua zona de influência, que em algumas situações pode não coincidir com o "lugar de residência ou moradia do requerente", de acordo com a redação do artigo 42 do Código Eleitoral.

E essa exegese não implica criação de um novo conceito ou muito menos ingerência na seara legislativa, mas sim a aplicação do salutar processo de interpretação histórico-evolutiva-construtiva, atento e sensível às necessidades da vida social e democrática. E não custa lembrar as palavras de Eduardo ESPÍNOLA8 de que "o juiz não é propriamente um legislador suplente, mas tem a faculdade ou, mais precisamente, o dever de aplicar a lei inteligentemente, quando corresponda às necessidades sociais" de sorte que o juiz moderno, preocupado com a evolução social do Direito, não poderá, jamais, fugir de sua responsabilidade na construção e evolução do ordenamento jurídico. Sim, pois o "intérprete, esclarecendo, iluminando, alargando o pensamento da lei, torna-se um fator de evolução jurídica"9.

Referências Bibliográficas

1 PIZZOLATTI, Rômulo. Conceito jurídico de domicílio eleitoral. Resenha eleitoral - Nova Série. Florianópolis. v. 3, n. 1. p. 15, jan./jun. 1996.

2 MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. v. 1, § 7º, p. 252.

3 Op. cit., p. 248.

4 Op. cit., p. 251.

5 VELOSO, Zeno. O domicílio. Revista de direito civil. São Paulo, v. 10, n. 37, p. 14. jul./set. 1986.

6 FERREIRA, Pinto. Código eleitoral comentado. São Paulo : Saraiva. 1991. p. 82.

7 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Belo Horizonte : Forense. 1979. p. 201.

8 ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema de direito civil brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos. [19__]. v. 1, p. 199, n. 24.

9 A FUNÇÃO do intérprete. Revista de direito civil, comercial e criminal Bento de Faria. Rio de Janeiro, v. 29. p. 253. 1913.

Nota

* Não concordamos totalmente com a afirmação de que o domicilio eleitoral é autônomo e independente. Vemos o domicílio eleitoral como espécie do gênero domicílio, onde os princípios gerais são os mesmos. Sem dúvida que o conceito de domicílio eleitoral tem contornos próprios, guiados pelo sistema político-eleitoral que disciplina a vida política - e democrática - de nosso Pais. Não teria sentido admitir-se o critério da pluralidade de domicílios, quando sabemos que nosso regime político não permite candidaturas (ou eleitores) em mais de uma circunscrição eleitoral, o que, convenhamos, seria um absurdo no atual estágio civilizatório.

Advogado. Ex-Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 4, n. 1 (jan./jun. 1997).

 

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