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Íntegra

Direitos fundamentais aplicados à fidelidade partidária

Por: Flávia Queiroz Barbosa

1. Da democracia

1.1 Conceitos e modalidades  

Democracia, no sentido etimológico do termo, é governo ou poder do povo.

Segundo a memorável fórmula de Lincoln, a democracia se caracteriza como “governo do povo, pelo povo, para o povo”.

Na Antiguidade, sobretudo na Grécia Antiga, a democracia era exercida com plenitude. O grego era o homem-cidadão, desconhecia o individualismo da vida civil e reunia-se em praça pública, a fim de discutir questões do Estado pertinentes ao bem comum (BONAVIDES, 2001).

Dadas as várias transformações que a humanidade sofreu, principalmente após a Revolução Industrial e todas suas fases, o homem passou a se preocupar mais com as necessidades domésticas cotidianas e cada vez menos com a coisa pública. O homem moderno é acessoriamente político, afirma Bonavides (2001). A democracia atual é exercida de modo indireto por representantes. O crescimento populacional, as preocupações contemporâneas, envolvendo o trabalho, a família e as relações sociais de modo geral, assim como outros fatores condicionantes da sociedade moderna, impossibilitam o exercício direto da democracia.

Posteriormente à Primeira Guerra Mundial, criou-se uma terceira forma de democracia, conhecida como “semidireta”, que mescla as formas direta e indireta. O povo elege seus representantes (democracia indireta) e também legisla ele próprio (democracia direta), o que, no Brasil, é feito pelos instrumentos: referendo (arts. 14, II, e 49, XV, CF/1988), iniciativa popular (arts 14, II, e 61, § 2º, CF/1988), e plebiscito (art. 14, I, e 18, §§ 3º e 4º, CF/1988).

1.2 Da democracia moderna à democracia eleitoral  

Dizia Tocqueville que a democracia “é universal, durável e todos os acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento”. Cada nação promove seu próprio desenvolvimento democrático, e, mesmo percorrendo caminhos diversos, todos levam à busca da igualdade de condições – o ponto gerador da democracia. E acrescenta: “Nessa diversidade de caminhos que as nações podem percorrer para a realização da democracia, o fator mais importante para defini-los é a ação política de seu povo” (TOCQUEVILLE apud WEFFORT, Org., 1999, p. 154).

Com efeito, essa ação política, quando bem organizada e com vistas ao interesse coletivo, leva à realização do bem comum e, portanto, ao maior bem-estar coletivo.

Para Rousseau apud Weffort (1999), um Estado bem constituído e a felicidade comum estão intimamente relacionados. Os indivíduos buscam e se preocupam mais com os negócios públicos do que com os particulares, e disso decorre uma maior participação nas assembleias. Todavia, ao se subjugar a vontade geral aos interesses particulares, indicia-se a má direção da pólis, fato que deságua no desinteresse do povo pelos negócios do Estado, e atesta sua perdição. Quando essa situação se instala no seio social, abre-se espaço para a falta de amor à pátria, e o interesse particular somado aos abusos do governo passa a sobrepujar o interesse público.

Atualmente, esse sentimento se faz presente, sobretudo, no período eleitoral, com a observância, pelos eleitores, da postura dos administradores e parlamentares eleitos. O sentimento de que a vontade geral é subjugada e traída faz da eleição ato político de manifestação coletiva organizada e fundada nas ideias de liberdade e de igualdade, um momento penoso de descrédito na própria democracia.

A dúvida acerca da natureza humana e de suas fraquezas parece ter sido um dos fundos justificadores que levou aquele filósofo a afirmar que:

O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois o é somente durante a eleição dos membros do parlamento; logo que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz, mostra que bem merece perdê-la [ROUSSEAU apud WEFFORT, Org., 1999, p. 235].

Todavia, no que pese a afirmação de Rousseau de que o homem só é livre quando vai às urnas, o próprio movimento de alternância de opinião do eleitor, que observa a concretização dos projetos de governo lançados em bases eleitoreiras, configura-se como afirmação da liberdade.

Kelsen apud Sartori (1994, p. 55) assim apreendeu: “Nem aquele que vota com a maioria está inteiramente sujeito à sua vontade após a votação. Tem consciência disso quando muda de opinião [...]”.

E, como explica Sartori (1994), há maioria democrática quando há alternância no exercício do poder. Se a maioria é permanente, impossibilita-se a minoria de se tornar maioria, logo, não há democracia.

A democracia numa sociedade autodirigida pressupõe que a liberdade de um seja a liberdade de todos – o respeito aos direitos da minoria condiciona a manutenção do processo democrático.

Atualmente, a democracia não é vista apenas no sentido formal, limitada ao princípio da maioria. Conjuga-se, sobretudo, seu sentido material: observam-se os direitos das minorias. É preciso permitir que as minorias de hoje se tornem a maioria de amanhã, e isso não só em relação à representação política, mas também quanto ao diálogo em espaço público aberto à busca do bem comum e da promoção da verdadeira cidadania.

Nesse ínterim, vê-se que há duas formas de participação no poder: a direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo, e a representativa baseada no princípio eleitoral (SILVA, 2006).

Uma das facetas da democracia ocidental, sobretudo da brasileira, é a democracia eleitoral, baseada na representatividade política.

Segundo a teoria eleitoral da democracia, esta “a) [...] postula uma opinião pública autônoma, b) que dá sustentação através das eleições, a governos consentidos, c) os quais, por sua vez, são receptivos às opiniões do público”, explica Sartori (1994, p. 155).

É certo que os eleitores gozam de certo poder de decisão. Todavia a democracia, hoje, não se restringe apenas às eleições. De fato, essas a compõem, mas o processo democrático também permeia os debates, ações políticas dos cidadãos e atuações dos três Poderes que constituem o Estado Democrático de Direito. E, para a realização de uma democracia participativa, é indispensável que o processamento desses fatores conjugue dois direitos fundamentais do homem: liberdade e igualdade.

1.3 Da democracia material e dos direitos fundamentais  

A democracia pode ser concebida, nas lições da jurista Leitão (1989), como um processo filosófico e político. Na qualidade do primeiro, a democracia é um meio de que o Estado se utiliza para promover a dignidade do ser humano e seus direitos fundamentais. Na do segundo, a democracia é o princípio de organização dos instrumentos políticos, com o consentimento dos indivíduos na participação do poder.

Enquanto o processo filosófico caracteriza a democracia substancial (material), o processo político configura a democracia instrumental. Ambas as concepções são inseparáveis, uma leva à realização da outra. A democracia se sustenta sobre as bases da dignificação do homem como fim precípuo do Estado (democracia substancial) e da participação popular na realização do processo político (democracia instrumental).

Tal participação popular interage com a democracia representativa, substituta da democracia direta de moldes gregos, e contribui para a dilatação da cidadania que, através de um processo dialético, leva a sociedade, em todos seus estratos, à maior participação nas tomadas de decisão que envolvem o poder e suas ramificações.

Destaca-se que o maior avanço alcançado pelas experiências social e jurídica na articulação da prática política foi o de reconhecer à democracia o valor de direito fundamental.

Os direitos fundamentais representam o espelho dos valores que certa sociedade atribui à expressão humana. A doutrina classifica-os em gerações ou dimensões, todas coexistentes. Bonavides (2000) elenca como direitos fundamentais de primeira geração os decorrentes da liberdade, de segunda geração aqueles provenientes da igualdade, de terceira geração os relacionados à fraternidade e como de quarta geração a pluralidade, situando nesse espaço a democracia.

Esse insigne constitucionalista ergue a democracia ao status de direito fundamental de quarta geração, ao lado do direito à informação e do direito ao pluralismo. A democracia apenas se desenvolve quando permeada pela divulgação de informações com seriedade e pelo respeito às diversas formas de pensamento e ideologias. O jurista defende que a sociedade aberta do futuro depende da concretização desses direitos e acrescenta ainda:

[...], há de ser também uma democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder. Tudo isso, obviamente, se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e coadjutores da democracia; esta, porém, enquanto direito do gênero humano, projetado e concretizado no último grau de sua evolução conceitual [BONAVIDES, 2000, p. 525].

A democracia, nesse patamar dos direitos fundamentais, busca a justiça social por meio da qual a dignidade do ser humano, a cidadania e todos os direitos humanos deixam de ser meras especulações para se tornarem realidade.

Nessa esteira, é o magistério de José Afonso da Silva (2006, p. 132):  

Assim, a democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – aponta para a realização dos direitos políticos, que apontam para a realização dos direitos econômicos e sociais, que garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante. Os direitos econômicos e sociais são de natureza igualitária, sem os quais os outros não se efetivam realmente. É nesse sentido que também se pode dizer que os direitos humanos fundamentais são valores da democracia. Vale dizer: ela deve existir para realizá-los, com o que estará concretizando a justiça social.

Para que essa realização atinja seu ápice, imprescindíveis os meios legítimos de adesão popular no funcionamento do poder. O cume, por ora admitido pelo atual estágio histórico, é a democracia de massas, onde há espaço para manifestação de opiniões e comunicações políticas de diversos segmentos, até mesmo antagônicos.

Nesse sentido o Estado reconheceu a institucionalização de partidos políticos (LEITÃO, 1989). A essas organizações, ao se perpassar por conflitos políticos e ideologias opostas, cumpre o papel de promover a forma mais ampla de democracia: o reconhecimento da igualdade substancial de uns em relação aos outros, respeitando-lhes a diversidade, na plenitude de suas liberdades de opiniões e manifestações.  

1.4 Da democracia de partidos  

A preocupação de Tocqueville (apud WEFFORT, Org., 1999) com a fragilidade da liberdade, fator indispensável ao processo universal em que se constitui a democracia, levou-o a concluir, em defesa dela, que não basta sua institucionalização como direito. Há necessidade da ação política do cidadão e de sua participação nos negócios públicos, através da organização de associações políticas, com o fim de defender a cidadania ou por meio de grandes partidos.

Os partidos políticos são associações com natureza de pessoa jurídica de direito privado, amparados constitucionalmente, cuja função social é bem conduzir a democracia. Estão catalogados na Lei Maior entre os direitos fundamentais e, para a doutrina, juntamente com os direitos políticos, categorizam-se como direitos de participação: “o indivíduo desfruta de competência para influir na vontade do Estado” (BRANCO, 2007), realização alcançada através da cidadania plena.

Sob o aspecto legal, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, Lei n. 9.096/1995, no seu art. 1º, impõe-lhes a finalidade de atender aos interesses do regime democrático, à autenticidade do sistema representativo e à defesa dos direitos fundamentais.

Aos partidos compete, de acordo com Ferreira Filho (1966), para a realização da autodeterminação social, despertar e formar a opinião pública, auxiliando na passagem da autodeterminação pessoal à autodeterminação social. Enfim, extrair uma vontade geral de um feixe de vontades particulares.

E, do ponto de vista da representação política, segundo aquele autor, as agremiações partidárias desempenham papel indispensável na democracia representativa, apresentando-se como fiadoras das qualidades pessoais dos candidatos que disputam as eleições. No que se refere à representação no Poder Legislativo, em qualquer esfera que seja, viabilizam a manifestação ideológica da minoria e dão corpo à oposição, com vistas a atrair a atenção do povo, titular do poder, para as ações do governo.

Os partidos de oposição têm seu fundamento no princípio do pluripartidarismo acolhido pela Lei Maior. O dissenso e a alternância no poder naturam o pluralismo.

Mas, atente-se: a par de suas contribuições para a democracia, os partidos podem igualmente corrompê-la. O uso da máquina estatal, para atender aos interesses particulares, menosprezando o bem comum e a vontade geral, carreia o divórcio entre os representantes e o povo soberano. Nesse ponto, a atuação dos partidos deixa de ser legítima, explica Ferreira Filho (1966).

O “troca-troca” de partidos é exemplo que espelha bem a circunstância em que a vontade geral é ignorada. O representante eleito desvirtua a democracia representativa ao promover, sem justa causa, a mudança de agremiação partidária. E, nessas circunstâncias, as omissões partidárias desatendem sua própria finalidade existencial.  

2 Da fidelidade partidária

2.1 Definição  

O termo fidelidade tem origem no latim fidelitas, e significa atributo ou qualidade de quem ou do que matém ou preserva suas características originais, ou quem ou o que se guarda fiel à sua origem. Implica confiança entre dois indivíduos, entre sujeito e objeto – abstrato ou concreto. E, do ponto de vista político, é o atributo ou qualidade que determina um vínculo entre afiliado e partido político, entre partidos, no interesse mútuo, ou entre eleitor e candidato.

Restringindo-se à fidelidade partidária, para Farhart apud Silva, José A. (2006), ela é baseada

na adesão intelectual do membro do partido – filiado ou representante eleito, no Governo, no Congresso, nas assembléias legislativas estaduais ou nas câmaras municipais – à filosofia do partido, sua concepção de sociedade e dos métodos, caminhos e meios para realizar suas idéias a esse respeito.  

2.2 Trajetória histórica na legislação brasileira  

A fidelidade partidária adquiriu status constitucional pela primeira vez com a Emenda Constitucional n. 1/1969, que deu nova redação à Constituição Federal de 1967. Disciplina o art. 152 dessa Constituição:

Perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito (BRASIL, 2008).

Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, aperfeiçoou o disposto no art. 152 da Constituição de 1967, acrescentando a ressalva de que o desligamento do partido não implicaria em perda do mandato quando a finalidade fosse participar como fundador de novo partido.

Retrocedeu, todavia, a norma constitucional brasileira quando adveio a Emenda Constitucional n. 25, de 15 de maio de 1985, que suprimiu daquela o instituto da fidelidade partidária.

Com a Constituição Federal de 1988, art. 17, § 1º, o instituto em questão, por meio de uma interpretação sistêmica, pode ser admitido no ordenamento brasileiro. Essa interpretação e os princípios constitucionais, notadamente o estabelecido pelo art. 1º, parágrafo único, da Carta Magna vigente, acerca da democracia adotada no Brasil, e pelo art. 14, caput, do mesmo diploma, que trata da soberania popular, respaldam o resultado hermenêutico.

Em nível infraconstitucional, o instituto da fidelidade partidária também esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro.

A revogada Lei n. 5.682, de 21 de junho de 1971, antiga Lei Orgânica dos Partidos Políticos, dispunha expressamente sobre o tema no Título VI – “Da Disciplina Partidária”, em específico no Capítulo II – “Da Perda do Mandato por Infidelidade Partidária”. O art. 72 dessa lei caracteriza a infidelidade partidária da seguinte forma:

Art. 72.  O Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual ou Vereador que, por atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda for eleito, perderá o mandato.

Parágrafo único. Equipara-se à renúncia, para efeito de convocação do respectivo suplente, a perda do mandato a que se refere este artigo [BRASIL, 1976].

Já a atual Lei dos Partidos Políticos (Lei n. 9096/1995) deixou ao cargo das próprias agremiações partidárias o estabelecimento, em seus estatutos respectivos, de regras sobre disciplina e fidelidade partidárias, bem como o processo para apuração de infrações e aplicação de penalidades aos filiados, assegurada a ampla defesa (art. 15, V, Lei n. 9.096/1995).

O Código Eleitoral vigente – Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965 – nada tratou sobre partidos políticos e disposições pertinentes.

Após a promulgação da Constituição, até os dias atuais, circularam na Câmara dos Deputados várias proposições de alteração do ordenamento vigente acerca do tema.

O Projeto de Lei Complementar n. 127/1989, de autoria do deputado do PDS/BA, Arbage (1989), propunha alteração na antiga Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar n. 5/1970), para declarar inelegível o titular de cargo eletivo que abandonasse o partido político pelo qual se elegera. Todavia, o projeto não prosperou e foi arquivado em 2 de fevereiro de 1991.

Quanto aos Projetos de Lei n. 107/1991, de autoria do deputado  Motta, do PDS/RS, e n. 3.166/1997, de autoria do deputado Gibson, do PSB/PE, ambos com o objetivo de restabelecer a fidelidade partidária, além de outros fins, também não foram aprovados. Este foi arquivado em 2 de fevereiro de 1999, e aquele em 21 de agosto de 2007.

Em 2009, sob as pungências da reforma política, por iniciativa do Poder Executivo, foi apresentado à Câmara dos Deputados o PL n. 4635/2009, que propõe alterações na Lei n. 9.096/1995 e na Lei n. 9.504/1997, para dispor sobre o tema em análise.

Já em relação aos projetos de emenda à constituição, estes ainda persistem. Tratam da perda do mandato por infidelidade partidária os seguintes projetos que, apensados à PEC n. 85/1995 (MOTTA, 1995), tramitam em conjunto na Câmara: n. 90/1995, n. 137/1995, n. 215/1995, n. 542/1997, n. 24/1999, n. 27/1999, n. 143/1999 e n. 242/2000. Além desses, também versam sobre fidelidade partidária, mas com propostas de alterações apenas no art. 55 da Constituição Federal, as seguintes proposições que, apensadas à PEC n. 42/1995 (CAMATA, 1995), seguem com tramitação conjunta: n. 51/1995, n. 60/1995 e n. 4/2007.

A mais recente proposta de emenda à constituição – a PEC n. 4/2007, de autoria de Dino et al, deputados do PCdoB-MA, visa disciplinar a perda do mandato em virtude de infidelidade partidária, mas admite três exceções à regra: participar da criação de novo partido político; alterações essenciais nos programas e estatutos formalmente registrados; e mudanças no período de trinta dias imediatamente anterior ao término do prazo de filiação partidária para candidatura à eleição subsequente. Conforme esse projeto, a perda será decidida pela Justiça Eleitoral, mediante iniciativa do representante do Ministério Público competente (para parlamentares do Legislativo Federal, atuará o Procurador-Geral da República; para parlamentares da esfera estadual ou municipal, atuará o Procurador Regional Eleitoral) ou partido político representado na Casa a que pertencer o parlamentar.

A par da função típica do Poder Legislativo, o Poder Judiciário foi instado sobre o tema e, no uso de suas funções atípicas, legislou a respeito da fidelidade partidária.

Por meio da Resolução n. 22.610/2007, alterada pela Resolução TSE n. 22.733/2008, o Tribunal Superior Eleitoral, no uso das atribuições que lhe foram conferidas pelo art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, e na observância do que decidiu a Suprema Corte, nos Mandados de Seguranças n. 26.602, n. 26.603 e n. 26.604, resolveu disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária.

2.3 Considerações sobre a Resolução TSE n. 22.610/2007  

De acordo com a referida legislação eleitoral, o partido político interessado pode pedir à Justiça Eleitoral, no prazo de trinta dias, que decrete a perda do mandato daquele que se desfiliou sem justa causa.

Configura-se justa causa quando está demonstrada

a incorporação ou fusão de partido, ou criação de novo partido, ou mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, ou a grave discriminação pessoal a motivar a desfiliação partidária.

Conforme resposta do TSE, em 7 de abril de 2009, à Consulta n. 1678, feita pelo Democratas, de relatoria do Ministro Marcelo Ribeiro, o simples ajuizamento de pedido de reconhecimento de justa causa para desfiliação futura, perante a Justiça Eleitoral, não implica em cancelamento de filiação partidária para os efeitos da resolução em tela (http: www.tse.gov.br, em 31.5.2009).

Insta observar ainda, como bem asseverou o TSE, no Agravo Regimental na Petição n. 2.778, decidido em abril de 2009, que:  

O processo instituído pela Res.-TSE n. 22.610/2007 tem caráter dúplice porque, uma vez julgada improcedente a ação, pelo reconhecimento da justa causa, atestada estará a regularidade da migração partidária, sendo desnecessária e incabível a formulação de ‘pedido contraposto’ [http://www.tse.gov.br, em 31.5.2009].

Quanto à legitimidade ad causam, a agremiação partidária não é a única legitimada para peticionar a decretação de perda de mandato eletivo do infiel. Passado in albis o referido prazo para o grêmio partidário legítimo, abre-se a possibilidade de formulação desse pedido pelo juridicamente interessado, a exemplo do suplente à vaga ocupada pelo parlamentar que se desfila, sem justa causa, do partido de origem, ou pelo Ministério Público Eleitoral.

Recaindo o requerimento sobre mandato federal, a competência do órgão julgador se restringe ao TSE e, para os demais casos (deputados estaduais ou distritais e vereadores), é competente o Tribunal Regional Eleitoral do respectivo Estado.

Essa legislação, juntamente com a Resolução TSE n. 22.733/2008, foram submetidas ao controle de constitucionalidade perante a Suprema Corte através das malogradas ADIs n. 3.999, proposta pelo Partido Social Cristão (PSC), e n. 4.086, proposta pelo procurador-geral da República. Veja-se a ementa dessas:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL 22.610/2007 e 22.733/2008. DISCIPLINA DOS PROCEDIMENTOS DE JUSTIFICAÇÃO DA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA E DA PERDA DO CARGO ELETIVO. FIDELIDADE PARTIDÁRIA.

1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008, que disciplinam a perda do cargo eletivo e o processo de justificação da desfiliação partidária.

2. Síntese das violações constitucionais argüidas. [...]

3. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 reconheceu a existência do dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária. Ressalva do entendimento então manifestado pelo ministro-relator.

4. Não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo.

5. As resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão-somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar.

6. São constitucionais as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008 do Tribunal Superior Eleitoral. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente. [http://www.stf.jus.br, em 31.5.2009.]

No que se refere à transitoriedade da norma atacada, destaca-se a responsabilidade do Poder Legislativo quanto à regulamentação do tema. A resolução em comento representa resposta à omissão legislativa. E diga-se, é permissivo do próprio legislador. Basta que veja o disposto pelo Código Eleitoral:  

Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior:

[...]

IX – expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código;

[...]

XII – responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político;

[...]

XVIII – tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral. [Grifo nosso.]

Todavia, em que pesem as disposições legais, não é recomendável que o Poder Judiciário invada a esfera do Legislativo. O princípio da separação dos poderes deve ser preservado. Mas, quando há necessidade de se concretizar direitos fundamentais e, portanto, a própria Magna Carta, aos Tribunais Superiores cabe uma conduta pró-ativa. A inatividade do Legislativo não pode justificar restrição a direitos e valores constitucionalmente resguardados.

Foi o que ocorreu com a fidelidade partidária e os direitos a ela entrelaçados. O julgamento da ADI n. 3.999 é uma interpretação construtiva do tema, que vivifica a própria Constituição. A Resolução n. 22.610/2007 do TSE configura típico ativismo judicial.

Como ensina Barroso (2009), o ativismo judicial, cuja raiz remonta ao Direito norte-americano, é uma forma de interpretar valores e fins constitucionais com maior interferência na esfera dos outros Poderes. Ocorre, em regra, quando há atuação tímida do Poder Legislativo frente às exigências de solução efetiva das demandas da sociedade. Manifesta-se por meio das seguintes condutas:

(I) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (II) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (III) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

É o oposto da autocontenção judicial, que limita a incidência da Constituição em prol de instâncias tipicamente políticas.

Trata-se de novo direcionamento da democracia contemporânea conduzido pelo Judiciário através da concretização de princípios constitucionais. Isso é o que representa a mencionada resolução do TSE.

Enquanto o legislador não elabora a lei pertinente à fidelidade partidária, a situação se regula, provisoriamente, pela citada legislação. Frisa-se: a regulação da fidelidade partidária pelo TSE não é caso de usurpação de competência, mas, sim, de um papel do Judiciário, resguardado pela ordem constitucional atual de velar pelo respeito à soberania popular exercida por meio do sufrágio universal. Remonta a Resolução TSE n. 22.610/2007 à concretização de nada mais do que o princípio da moralidade, envolvendo o mandato eletivo e o sistema representativo brasileiro.

Vê-se, portanto, que a decisão do excelso Tribunal foi acertada. Defendeu a concretização do direito constitucional do partido político ao mandato eletivo e suas implicações práticas.  

2.4 Dos mandatos eletivos e da fidelidade partidária  

A fidelidade partidária remonta à ideia do mandato que lhe é intrínseca.

A natureza do mandato pode assumir dois aspectos: representativo ou imperativo (BONAVIDES, 2001).

O mandato representativo tem origem na Revolução Francesa. Na França de 1791, o rei era o legítimo representante da nação; e quem era eleito para exercer algum cargo ou função dentro da administração pública não recebia esse título de representante; estava intimamente relacionado com o princípio da soberania nacional, para o qual o representante é o depositário da soberania, representa toda a nação. Todavia nesse tipo de mandato predomina essencialmente a doutrina da duplicidade.

Segundo essa doutrina, há duas vontades distintas a serem consideradas: a do representante e a dos representados. Estes consentem àquele o poder de governá-los de acordo com suas próprias convicções. No mandato representativo, de acordo com Bonavides (2001), há autonomia da vontade; o representante tem vontade própria, podendo divergir da vontade dos representados; ele não pode ser destituído; seus atos não precisam ser ratificados pela vontade nacional.

Um dos maiores defensores desse mandato é Montesquieu. No “Espírito das Leis”, afirma que o povo é incapaz de gerir a coisa pública, cabe-lhe apenas escolher os representantes. São suas as palavras:

O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade. Somente pode decidir-se por coisas que não pode ignorar, e por fatos que se apresentam aos seus sentidos. [...]. Contudo, saberá o povo conduzir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos, e aproveitá-los? Não, não o saberá. A grande vantagem dos representantes é que estes são capazes de discutir as questões públicas. O povo não é, de modo algum, apto para isso, fato que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia [MONSTESQUIEU, 2002, p. 24/169].

Já em relação ao mandato imperativo, este adveio do pluralismo da sociedade de grupos, do declínio da doutrina da duplicidade com o princípio da disciplina partidária, munida da sanção de perda do mandato. Baseia-se a imperatividade especialmente na doutrina da identidade. Conforme a própria nomenclatura sugere, lastreia-se na existência de uma só vontade: a vontade do representante atrela-se à vontade dos representados. O mandatário deve guardar fidelidade para com o mandante, sob pena de revogação do mandato. Despontam nesse os princípios da soberania popular e do sufrágio universal. O povo soberano elege e controla seus representantes, os quais assumem a responsabilidade de bem conduzir o mandato, em consonância com os compromissos eleitorais e partidários assumidos, que cativaram a confiança do eleitor (BONAVIDES, 2001).

Nesses moldes de imperatividade, os partidos políticos, no sistema representativo, são de grande relevância, já que, deles emergem candidatos a representantes do povo. Assim, se eleitos, assumem o dever de fidelidade e, se descumprido, sujeitam-se à perda do mandato.   

2.5 A visão dos tribunais   

Após anos de debate improfícuo no Poder Legislativo sobre disciplina e fidelidade partidária, o Poder Judiciário foi chamado a se pronunciar sobre o tema.

O partido Democratas (DEM) formulou a Consulta n. 1.398 ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de definir a quem pertence o mandato eletivo, se ao próprio parlamentar ou ao partido político. Quanto ao sistema eleitoral majoritário, o Tribunal foi também provocado por meio da Consulta n. 1.407, feita pelo deputado federal Nilson Mourão, eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

Em ambos os casos, o TSE respondeu que a detenção de tais mandatos, tanto para o Poder Legislativo quanto para Poder Executivo, recai sobre os partidos políticos.

Posteriormente, o STF foi acionado e, julgando em conjunto os Mandados de Segurança n. 26.602, n. 26.603 e n. 26.604, acolheu a posição do TSE e decidiu que o eleito, ao abandonar a legenda pela qual se elegeu, renuncia tacitamente ao mandato.

Quanto à Consulta n. 1.398, respondida em 27 de março de 2007, os ministros do TSE fundamentaram seus votos utilizando-se de princípios constitucionais, tais como: a moralidade administrativa, a soberania popular, o sufrágio universal, entre outros. Além de dispositivos da própria Magna Carta (art. 14, 17 e 37, caput), basearam-se também em diplomas infraconstitucionais (Código Eleitoral, Lei dos Partidos Políticos e Lei das Eleições).

O ministro-relator Cesar Asfor Rocha, nessa consulta, destacou o status constitucional dos partidos políticos, a necessidade de filiação partidária como condição de elegibilidade, a utilização de uma hermenêutica constitucional que confere aplicabilidade imediata aos princípios constitucionais, fazendo menção expressa à moralidade administrativa. Em sua manifestação, esclarece que “o vínculo de um candidato ao partido pelo qual se registra e disputa uma eleição é o mais forte, se não o único elemento de sua identidade política”. O candidato não existe fora do partido e, se eleito, não é de modo algum possuidor de parte da soberania popular. E o mandato eletivo, função política e pública, não há de ser usado no interesse particular, sob pena de afronta ao princípio da moralidade.

Outro voto afirmativo à Consulta n. 1.398 foi o do ministro Cezar Peluzo. Através de abordagem constitucional e infraconstitucional do sistema representativo proporcional, ressaltou que a legitimidade do mandato impõe ao representante fidelidade ao eleitor. Ao partido cabe o papel de intermediário entre o povo e o Estado. E, quanto ao eleito, é mero particular na execução do mandato, devido à grandeza da função pública exercida em proveito dos interesses do cargo, e não da pessoa que o ocupe.

Votou vencido o ministro Marcelo Ribeiro, segundo quem não há norma expressa no ordenamento pátrio sobre fidelidade partidária.

No tocante ao sistema eleitoral majoritário, também houve resposta do TSE no sentido de que o eleito deve respeitar a fidelidade partidária, sob pena de perder o mandato. Foi relator da Consulta n. 1.407 ao TSE, decidida em 16 de outubro de 2007, o ministro Carlos Ayres Britto. Segundo ele, apesar da tendência de o prestígio pessoal prevalecer sobre o partidário, não há, para a eleição majoritária, a independência de ideologia político-partidária. O mandato eletivo se vincula ao regime representativo – o povo e os partidos políticos são a fonte de legitimação eleitoral.

Frente às decisões do STF e do TSE, insurgiram-se inúmeras vozes, sob o argumento de arbitrariedade e inconstitucionalidade.

Para os advogados Abreu (2007), Leite Neto (2007) e Montalvão (2007), a Constituição Federal de 1988, no art. 55, é taxativa quanto aos casos de perda do mandato, o que não autoriza o Poder Judiciário a dar-lhe interpretação extensiva, nem o legitima a legislar.

Em relação ao art. 55 da CF/1988, alerta o ministro Cezar Peluzo, em seu voto na Consulta n. 1.398, que esse dispositivo constitucional tem a natureza sancionadora, o que não se coaduna com a natureza da fidelidade partidária. Estipula sanções para atos ilícitos praticados por parlamentares.

E, quanto ao argumento de que o Poder Judiciário legislou acerca do tema, não há o que refutar. Mas, atente-se: sob o contexto ocorrido, outra não poderia ser a postura dos Tribunais (STF e TSE). A democracia em nada se abalou.

À luz do pensamento de Barroso (2009), a separação dos Poderes há de ser vista com temperamentos. Juízes e tribunais são coadjuvantes na criação do Direito. E, nesse caso, foi o que se vislumbrou com a interpretação sobre o mandato eletivo, o sistema representativo e a fidelidade partidária. E, ainda, a omissão legislativa e a falta de funcionalidade do Poder Legislativo são os fomentadores de uma jurisdição constitucional criativa e expansiva.

O caso em tela configurou resposta judicial caracterizada por uma relação de compromisso entre os Tribunais Superiores e a soberania popular. Portanto, a favor da democracia.

O Judiciário foi demandado acerca do tema fidelidade partidária, e sobre ele respondeu. A decisão foi legítima; todavia, devido ao enfraquecimento do Legislativo, foi ativista, expansionista.

E, nesse sentido, sem querer substituir aos eleitos para a função legiferante, aguarda-se a legislação proveniente do Congresso Nacional, bem como a concretização da reforma política pertinente.  

2.6 O sistema eleitoral constitucional e a fidelidade partidária  

A Lei Maior protege a liberdade de expressão, de pensamento e de associação, logo a mudança de partido é permitida. Todavia, o que o sistema eleitoral constitucional veda é candidatura fora de bandeira partidária.

Assim, é defeso ao eleito a mudança de filiação partidária, mas isso implica em renúncia ao mandato pelo qual se elegeu às custas do partido que o acolheu nas disputas eleitorais.

Nesse sentido, o ministro-relator Carlos Ayres Britto, na Consulta n. 1.407 ao TSE, afirmou que é necessária e imprescindível a inserção dos partidos políticos no sistema representativo brasileiro, uma vez que “ninguém em particular é candidato de si mesmo”.

Ressalta-se, quanto ao sistema eleitoral proporcional, que a vaga do parlamentar só é alcançada caso o partido tenha atingido os quocientes eleitoral e partidário que lhe garantam certo número de cadeiras na Casa do Poder Legislativo. Esses quocientes seguem as regras dos arts. 106 a 109 do Código Eleitoral.

Explica-se: o quociente eleitoral define os partidos e/ou coligações que têm direito a ocupar as vagas em disputa nas eleições proporcionais. É o resultado da divisão do número de votos válidos pelo de lugares a preencher na respectiva circunscrição. Apenas os partidos ou coligações cuja soma dos votos válidos atinja esse quociente alcançam a distribuição de vagas.

Já o quociente partidário é alcançado pela divisão do quociente eleitoral pelo número de votos válidos para a legenda; tem a função de determinar a quantidade de vagas para cada partido que tenha obtido o quociente eleitoral.

Portanto, consideram-se eleitos a quantidade de candidatos registrados por partido (ou coligação), indicada pelo quociente partidário, obedecendo à ordem de votação nominal.

A par dessas elucidações, conclui-se que o candidato que se elege não o consegue fora de uma agremiação partidária, que arregimenta todos os recursos possíveis para o sucesso daquele que é depositário de sua confiança.

Mas, de outro lado, após eleito, o titular do mandato eletivo deve estar atrelado às diretrizes do partido a que se filiou para concorrer ao pleito? Não goza ele de liberdade de expressão e de associação?

Vislumbra-se, diante disso, um suposto conflito de normas constitucionais – a colisão entre o direito fundamental da manifestação do pensamento e de associação versus o sistema representativo.  

3 Da infidelidade partidária e dos direitos fundamentais

3.1 Da relação entre filiado e partido político  

Após ser eleito, vários eventos podem ocorrer de forma a minar a relação entre o detentor do mandato eletivo e o partido político pelo qual foi lançada sua candidatura nas eleições em que se tornou vitorio-so: dissensões políticas; alterações nas diretrizes partidárias; negativa em seguir a ideologia partidária, seja no parlamento ou no governo; apoio aos oponentes partidários e perseguições políticas. Inúmeras são as situações que podem levar o eleito a procurar filiação em outra bandeira partidária.

Diante disso, diga-se que, em nível constitucional, a desfiliação partidária é permitida. É direito de todos a manifestação do pensamento, a liberdade de consciência, assim como ninguém é obrigado a se associar ou a permanecer associado. A liberdade de pensamento e de associação são direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, em seu art. 5º, VI, VIII e XVII a XXI.

Com efeito, a liberdade, na qualidade de direito fundamental de primeira geração, é um direito de resistência ou de oposição ao Estado. Ao mesmo tempo em que deve se abster de condutas que a restrinjam, o Estado deve também observar os meios necessários a torná-la efetiva, real (BRANCO, 2007). Assim sendo, não cabe ao Estado intervir na escolha das convicções políticas de cada cidadão, e muito menos utilizar de subterfúgios que o coíbam a adotar certa ideologia político-partidária.

Seja qual for o aspecto da liberdade, por meio desse direito fundamental o homem expande sua personalidade, concretizando o princípio da dignidade do ser humano, um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, disciplinado pelo art. 1º, III, da Carta Política brasileira.

Ademais, a liberdade é um dos componentes essenciais à democracia. E, no tocante à questão da filiação partidária, a liberdade política figura-se imprescindível à realização humana como móvel da doutrina dos partidos políticos.

Todavia, a questão da filiação partidária se torna complexa ao envolver os homens públicos que estão no poder, ocupando mandatos eletivos.

A Constituição Federal de 1988 assegura às agremiações político-partidárias o direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (art. 17, § 3º), ambos direitos fundamentais de prestação. E, de outro lado, exige filiação partidária como condição de elegibilidade para as disputas eleitorais (art. 14, § 3º, V, CF/1988).

Desde as convenções partidárias, que são realizadas até 30 de junho do ano eleitoral (Lei n. 9.504/1997, art. 8º), o partido passa a investir naqueles que, escolhidos pelos convencionais, identificam-se com as suas ideologias político-partidárias e se dispõem a lutar, sob a sigla da respectiva grei, pelo mandato eletivo.

Para a disputa eleitoral, o partido deve efetuar, na Justiça Eleitoral, o registro de candidatura dos escolhidos em convenção, cujo prazo para as agremiações é até 5 julho do ano em que se realizarem as eleições (Lei n. 9.504/1997, art. 11) e até o dia 7 do mesmo mês para o candidato prejudicado pelo não requerimento do partido ou coligação partidária acerca de seu registro como tal (Lei n. 9.504/1997, art. 11, § 4º).

A partir de então, o partido político aloca todos seus recursos em favor dos respectivos candidatos, distribuindo entre estes cotas do fundo partidário (art. 44 da Lei n. 9.096/1995 e art. 20 da Lei n. 9.504/1997), horários para propaganda no rádio e na televisão (art. 46 da Lei n. 9.504/1997), além de outros gastos eleitorais (art. 26 da Lei n. 9.504/1997). Logo, o candidato, obviamente, não tem como alcançar o mandato eletivo sem o concurso de uma grei.

A reivindicação das agremiações desfalcadas com a infidelidade partidária remonta à crise de representatividade, abalando a essência do Estado Democrático de Direito, visto que a democracia representativa concretizada através dos partidos políticos é o modelo constitucional de democracia adotada pelo ordenamento brasileiro.

Esta crise de representatividade remete ao conflito entre o direito fundamental à liberdade de pensamento, de manifestação política por meio da desfiliação partidária contraposta ao direito fundamental à democracia representativa, supostamente fraudada com a migração partidária dos eleitos.  

3.2 Métodos de solução para os conflitos entre direitos fundamentais  

O ordenamento jurídico possui um caráter unitário e sistemático, conferido-lhe pela Constituição, que, na qualidade de norma fundamental, funciona como ligação entre os diversos elementos normativos que constituem o ordenamento estatal.

Porém, considerando que a sociedade brasileira é uma sociedade plural, supõem-se a existência de interesses e valores conflitantes, sobretudo colisões entre direitos fundamentais. Nesse ínterim, emerge o princípio da unidade da Constituição, apto a conformar e harmonizar valores e bens jurídicos em colisão.

Leciona Barroso (1996) que a Carta Fundamental do Estado é um produto dialético de interesses e aspirações distintos, quando não antagônicos. Em virtude dessa pluralidade de concepções é que a unidade da interpretação se torna imprescindível.

Para atingir o equilíbrio entre eventuais colisões e antinomias, intoleráveis pelo direito, ainda é necessária a utilização de antigos métodos de interpretação e aplicação de normas do ordenamento vigente, mas figuram insuficientes para atender a complexidade dos conflitos que emergem do interior da Constituição.

A velha hermenêutica baseada nos critérios da hierarquia, temporalidade, especialidade, segundo a doutrina em geral, realiza uma interpretação mais estática que dinâmica acerca dos direitos fundamentais, com nível de concretização aquém das exigências advindas das transformações sociais.

E, conforme assevera Bonavides (2000, p. 585), “são esses direitos fundamentais à Constituição mesma em seu máximo teor de materialidade”. Para dar-lhes efetividade, é necessário uma hermenêutica operante, criativa, capaz de conferir à norma concretização de valores e princípios.

Enquanto a velha hermenêutica efetua uma operação lógica, sem nada acrescentar ao conteúdo da norma, a nova hermenêutica interpreta com acréscimo.

A tarefa de interpretação que incumbe ao juiz constitucional implica proteção e concretização dos direitos fundamentais. Sustenta Huber apud Bonavides (2000) que concretizar esses direitos implica exaurimento e aperfeiçoamento dos conteúdos constitucionais, executando-os em consonância com o tempo e as mudanças ocorridas na sociedade.

Dada a complexidade das relações sociais contemporâneas, não raro há o choque entre direitos fundamentais de titulares diferentes. Com vista à solução pontual de eventuais colisões, Hesse apud Mendes (2004) considera que o juízo de ponderação adequado perpassa pela concordância prática, de modo a atribuir realidade a cada um dos valores jurídicos em conflito.

Conforme Alexy (1998), esse processo de ponderação passa por três níveis, respectivamente: a delimitação da intensidade da intervenção; a relevância da justificativa para o ato, e a ponderação em sentido estrito e específico. Elucida que, quanto mais intensa a intervenção num direito fundamental, mais fortes devem ser os argumentos justificadores dessa intervenção.

Além da ponderação de valores, Alexy (1998) apresenta como solução de conflito entre direitos fundamentais a força vinculante destes e a adoção da teoria dos princípios.

Quanto à força vinculante dos direitos fundamentais, há de ser rechaçada qualquer tendência ou ideia de não judicialização desses direitos, pois tal entendimento afeta diretamente a força da Constituição. Uma constituição cujo rol dos direitos fundamentais não passa de normas programáticas seria uma constituição sem conteúdo material.

Já a aplicação da teoria dos princípios implica a otimização das normas constitucionais; não excluem a utilização de regras, postulados definitivos, mas impedem o esvaziamento dos direitos fundamentais; dilatam ou restringem seu conteúdo normativo.

 A nova hermenêutica amparada em métodos de ponderação de valores, na força vinculante dos direitos fundamentais e na aplicação dos princípios constitucionais aos casos práticos, implica interpretação dinâmica e concretista dos valores amparados constitucionalmente.

Portanto, há de ser incentivada como o melhor método para a solução de conflitos envolvendo direitos fundamentais.  

3.3 A perda do mandato eletivo por infidelidade partidária e o princípio da proporcionalidade  

Visto que a solução para o conflito entre direitos fundamentais passa pela ponderação de valores, de modo que cada um tenha a máxima concretude possível, vejamos o caso concreto.

Segundo o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2007) e, no mesmo sentido, o Tribunal Superior Eleitoral, com a edição da Resolução n. 22.610/2007, o eleito que se desfilia do partido pelo qual se elegeu perde o mandato eletivo, salvo nos casos de justa causa (art. 1º, §1º, Resolução-TSE n. 22.610/2007).

Conflita-se, nessas posições dos tribunais, o direito fundamental do candidato eleito à liberdade de pensamento e de associação e o direito do partido à vaga ocupada pelo trânsfuga, com implicações diretas sobre o direito fundamental à democracia representativa.

Que liberdade é essa que adstringe, sob pena de perda do mandato, o eleito ao partido originário, pelo qual disputou as eleições para ser representante do povo, seja no Poder Executivo ou no Legislativo? Não seria essa restrição contrária aos ditames democráticos?

Não, não é. Através da teoria dos princípios tem-se a solução.

Sobre essa teoria, em especial quanto à proporcionalidade, Alexy (1998) afirma a necessidade de se analisar a questão sob a ordem de três postulados, os quais devem ser observados necessariamente um após o outro, sendo que o primeiro é o da adequação do meio utilizado para a persecução do fim almejado; o segundo recai sobre a averiguação da necessidade desse meio, devendo ser este o mais suave e o menos restritivo possível; e o terceiro postulado é o da ponderação (proporcionalidade em sentido estrito).

Do ponto de vista do partido, este se vê em prejuízo com a infidelidade partidária daquele que se elegeu às suas custas. Já pela ótica da democracia brasileira, essencialmente representativa, a questão apresenta viés mais tênue.

A Lei Fundamental da República do Brasil, no seu art. 1º, parágrafo único, elege a democracia representativa e a participação direta como princípios fundamentais e, no art. 14, caput, a soberania popular como direito político, componente dos direitos fundamentais listados pelo poder constituinte originário. Nesse sentido, a democracia apresenta dois princípios primários: o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, e o da participação deste no poder através da expressão da vontade popular, sendo que, quando a participação é indireta, caracteriza-se o princípio da representação popular (SILVA, José Afonso da, 2006, p. 131).

Desta feita, a democracia representativa apresenta como elemento básico o mandato político representativo, gerado pela eleição em favor do eleito. O povo, portador da soberania popular, realiza sua participação indireta por meio do sufrágio universal, concedendo ao eleito representante um mandato eletivo.

No entanto, para ser eleito há circunstâncias a serem obedecidas. É cediço que o sistema constitucional brasileiro não admite candidaturas avulsas. A filiação partidária é condição de elegibilidade (art. 14, § 3º, V, CF/1988). Diante disso, os partidos políticos assumem papel indissociável da democracia brasileira; compõem um dos instrumentos de coordenação e expressão da vontade popular.

Por conseguinte, a base do mandato político há de assumir caráter popular, democrático e, cada vez, mais interligado às reivindicações do povo, principalmente àquelas pelos quais o eleito realizou suas bases eleitorais. Há tendência de que as relações entre os mandatários e o povo se tornem, progressivamente, mais e mais estreitas (SILVA, José A. da, 2006), isso especialmente, com a atuação dos partidos políticos, que imprimem aos eleitos e demais filiados normas de disciplina partidária. A vinculação do povo aos seus representantes e, portanto, aos partidos políticos tende a dar feição imperativa ao mandato eletivo, implicando a assunção pelo eleito conduta que reflita sua fidelidade com o partido, mormente com o povo que o elegeu.

Insta destacar ainda: é dever dos ocupantes de cargos eletivos o zelo pelo prestígio, aprimoramento e valorização das instituições democráticas e representativas, bem como o exercício do mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular, agindo com boa-fé, zelo e probidade (Código de Ética e de Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, art. 3º, III e IV).

Visto isso, pode-se avaliar a questão da infidelidade partidária com perda do mandato eletivo versus o direito fundamental do eleito à liberdade de pensamento, de convicção política e de associação, da seguinte maneira:

A perda do mandato atende à adequação pertinente ao restabelecimento das diretrizes democráticas que, pautadas numa democracia partidária, faz do mandato eletivo concedido pelo soberano a seus representantes, instrumento apto a concretizar políticas públicas correspondentes às discursadas na disputa eleitoral. O mandato político pertence ao povo soberano que o exerce através das agremiações partidárias. E, na fase atual do processo político, não se conhece outra medida capaz de implementar uma democracia representativa sem escamoteações que não essa.

Quanto à necessidade do meio empregado, foi observado que, enquanto a liberdade individual, no sentido de liberdade político-partidária, é intocável, a vontade popular há de ser igualmente protegida. Não há como impedir a liberdade de um eleito à migração partidária, porém o respeito à vontade popular e à democracia representativa culmina como dever constitucional. Por conseguinte, a perda do mandato eletivo é medida necessária para a preservação das instituições democráticas e representativas atingidas pela infidelidade partidária.

Ademais, a decretação da perda do mandato eletivo pela infidelidade partidária passa pelo devido processo legal – também um direito fundamental. A Justiça Eleitoral decretará a respectiva perda observando o contraditório e a ampla defesa. A medida disciplinada pela Resolução-TSE n. 22.610/2007, atende aos parâmetros constitucionais pertinentes, inclusive em obediência ao comando das decisões nos mandados de segurança que lhe deram origem (MS n. 26.602, MS n. 26.603 e MS n. 26.604).

Nessa linha, posicionou-se o ministro Cezar Peluzo, na ADI n. 3.999, que declarou constitucional a citada resolução. Segundo ele, o devido processo legal agasalha o processo decorrente de outras fontes normativas que não apenas a lei. E, assim, pronunciou-se:

[...] a necessidade da disciplina do procedimento, que foi a razão da edição da resolução ou das razões ora impugnadas, advém de outra fonte constitucional, a eficácia da coisa julgada material de um acórdão do Supremo Tribunal Federal. Noutras palavras, se esta Corte, em decisão recoberta pela autoridade da coisa julgada material, determina ao Tribunal Superior Eleitoral que, para dar eficácia prática ao objeto da sua decisão, deva disciplinar o modo de concretização de seu comando, a atuação do Tribunal Superior Eleitoral não pode deixar de ser considerada como expressão de um devido processo legal, de fonte constitucional, porque nasce exatamente de eficácia da coisa julgada material que a Constituição lhe garante. [http://www.stf.jus.br, em 31.5.2009.]

O eleito, diga-se, tem a oportunidade de provar que sua desfiliação foi por justa causa e que, por consequência, não traiu a vontade do eleitor nem feriu a democracia representativa.

Vê-se, então, que a restrição é dotada de caráter pontual, necessário, afastando métodos escusos que denegririam a imagem do Estado Democrático de Direito. Com o devido processo legal – instrumento de Justiça – conclui-se, nesse ínterim, que a perda do mandato eletivo é medida equilibrada e capaz de frear, com precisão, as subjugações político-partidárias que afetam a representatividade da soberania popular.

O terceiro critério – proporcionalidade em sentido estrito – também é atendido, visto que a ponderação de valores sub judice é razoável. A democracia representativa no Brasil, portando-se nos moldes partidários, para evitar descrédito, é necessário que se erga sobre partidos fortes, com ideologias sólidas e bem distintas. Meras facções políticas, umas em oposição às outras, com apenas aparência de distinções no conteúdo e na forma de agir, mais se aproximando de lutas mesquinhas pelo poder que da realização do bem comum, em nada contribuem para a concretização dos direitos fundamentais e fortalecimento da democracia.

Diga-se, ainda, pelo fato de o povo se utilizar dos partidos políticos para a realização da democracia representativa, a ruína destes é a própria ruína da democracia. Logo, é condição de existência dos partidos a imposição de disciplina e fidelidade partidária.

Nas sábias lições de Ferreira Filho (1966), a democracia não se realiza em sua essência senão através dos grupos políticos. Mas, se tais partidos podem ser ótimos instrumentos para a formação da democracia, podem também deformá-la e matá-la. O sufrágio universal quando corrompido e a vontade do eleitor traída pela vontade particular do eleito – que, na alternância frenética de partidos políticos, mais para satisfação de sua ganância e ambição do que para promover o bem comum – levam o cidadão a se desinteressar pelos negócios públicos, o que, no dizer daquele autor, configura fato mortal para a democracia.

O mandato não é atributo pessoal do eleito; é instrumento para a realização das convicções filosóficas e político-partidárias, através das quais se promoveu durante as disputas eleitorais. E o povo, por tê-las acolhido como as mais convenientes ao contexto vivido, legitima o representante a cumpri-las. Assim, não é à outra convicção ou projeto a que está adstrito, senão àqueles autorizados pelo soberano. O eleito que viva internamente um conflito de convicções, deve migrar de partido e deixar que seu suplente na grei concretize as propostas eleitorais.

A liberdade de pensamento e de associação do eleito não foi tolhida, ele pode escolher a grei que melhor represente seus ideais políticos e filosóficos. Não lhe é permitido, todavia, levar consigo para outra agremiação o mandato que lhe fora emprestado pelo povo para concretização de ideais que serviram à sua base eleitoral.

Nesse sentido, vale destacar as palavras de Burdeau:

A escolha de um governante não lhe atribui carta branca; é apenas uma forma indireta de expressão da vontade política do povo. O eleitor não vota, via de regra, num homem por causa de suas qualidades pessoais que, comumente, desconhece, ele vota no homem que encarna ou que reflete uma visão política determinada, notadamente por pertencer a um grupo político. Mais concretamente, ele atribui a esse homem um mandato, encarregando-o de tomar esta ou aquela medida precisa, e deixando-lhe certa latitude em face dos problemas imprevistos, ou quanto ao acessório (sic) [BURDEAU apud FERREIRA FILHO, 1966, p.104].

Pertinente ao direito fundamental do eleito à liberdade em todas suas formas de expressão, Mendes (2004) elucida que “nem tudo que pratica no suposto exercício de determinado direito encontra abrigo no seu âmbito de proteção”.

O direito não tolera abusos. É permitido ao eleito migrar de sigla partidária, mas ele deve ter consciência e responsabilidade pelos seus atos frente ao corpo político que o elegeu.

Dessa forma, considerando que o mandato eletivo não é um bem particular do eleito, mas instrumento público para realização do bem comum, a ponderação entre valores foi atingida com grande plenitude.  A liberdade (de pensamento e de associação) e a democracia – ambos direitos fundamentais – encontram-se realizadas em seus respectivos conteúdos, sem que a perda do mandato por infidelidade partidária implique negação recíproca de tais direitos.

A evidência do respeito à fidelidade partidária fortalece os partidos políticos e areja a democracia brasileira, corroborando a dignificação da soberania popular.

Vê-se, portanto, que a colisão em tela foi apenas aparente.  

4 Conclusão

Constatou-se que o direito fundamental à liberdade de pensamento e de associação do eleito não colide com o direito fundamental à democracia, realizada através da representação político-partidária.

A representação política é o método pelo qual a democracia flui, mas, cabe ao povo a autoridade do poder. Dada a impossibilidade do exercício da democracia grega na íntegra, este governa por representantes, que, por sua vez, hão de conduzir o governo para o povo.

A democracia é indissociável da liberdade e, portanto, propulsora da dignidade do ser humano, que se determina com autonomia e responsabilidade.

Nesse passo, o eleito representante goza da liberdade em toda sua extensão. Todavia, ao exercê-la, há de ser responsável, o que pressupõe a consciência de seus atos quanto ao mandato eletivo que não lhe pertence. Afinal, a soberania é do povo.

Assim, tem autonomia no exercício de suas convicções políticas, através do partido político que lhe convém, sem que o exercício livre de sua escolha partidária afete o grau de representatividade do regime democrático brasileiro.

As agremiações partidárias, na função social que lhes cabe, devem estar atentas a todos os atos de seus filiados que desrespeitem ou fraudem a vontade do soberano, impondo-lhes disciplina e fidelidade partidária.

Salienta-se que esse raciocínio é fruto da aplicação da nova hermenêutica constitucional, sobretudo na utilização de princípios constitucionais. Os direitos fundamentais em questão foram interpretados de modo a se atingir a máxima otimização possível, dentro do ordenamento jurídico brasileiro e da realidade social a que se aplica.

Diante disso, concluiu-se que a perda do mandato eletivo pela infidelidade partidária é medida razoável na preservação dos valores constitucionais materializados pelos direitos fundamentais.   

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* Bacharela em Direito pela UFU-MG. Especialista em Direito Constitucional pela Unisul-SC.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, vol. 17, 2010.

 

 

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