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Democracia, Constituição e princípios constitucionais: notas de reflexão crítica no âmbito do direito constitucional brasileiro

Por: Ruy Samuel Espíndola

"Fora da Constituição, não há instrumentos nem meio que afiance a sobrevivência democrática das instituições."1

A teoria da constituição, basicamente, tem relacionado democracia e constituição em duas importantes perspectivas: a primeira, colocando a democracia como princípio legitimador da constituição; noutra, abordando a democracia como princípio jurídico integrante da constituição, ou seja, como princípio constitucional encartado na ordem jurídica.

Avalia-se, pela primeira perspectiva, se a feitura do texto constitucional, o processo constituinte, o texto como resultado desse processo, a criatura do criador poder constituinte são ou não democráticos, ou se correspondem a níveis de democraticidade esperáveis segundo as circunstâncias de cada jogo político armado pelas comunidades organizadas em Estados.

Pela segunda, tenta-se compreender as conseqüências normativas, teóricas e dogmáticas de se ter a democracia como norma jurídica ordenadora da vida do Estado, da sociedade e dos cidadãos; questionam-se as conseqüências práticas de se ter a democracia como princípio constitucional informando a compreensão, produção e aplicação do Direito Positivo - como princípio normativo heterodeterminante da ordem jurídica globalmente considerada. Exemplo de norma constitucional com tal conteúdo deduz-se da cabeça do art. 1º de nossa Constituição da República, sendo que ao longo do texto encontraremos os subprincípios e regras densificadores do princípio democrático (e. g., preâmbulo, arts. 1º, V; 5º, VIII; 7º, XI, última parte; 10; 11; 14; 17; 23, I; 27; 29, I; 34, VII, letra "a"; 45; 46; 47; 58, § 1º; 77; 81; 90, II; 96, I, letra "a", primeira parte; 103; 127, caput; 206, II, III, primeira parte e VI).

Na esteira desta última perspectiva, a teoria do Direito Público também se ocupa da democracia e com seus enraizamentos constitucionais. A juspublicística preocupa-se em reconhecer na democracia um princípio reconstrutor do Direito Público; princípio em torno do qual se encabeçam e se estruturam todas as normas atinentes a este grande ramo do Direito Positivo.2

Essas perspectivas teóricas oferecem interessantes aportes à análise de nossa Lei Fundamental.

Todavia, outra é a nossa perspectiva neste trabalho, pois queremos demonstrar que, apartado da idéia de constituição e da juridicidade superior dos princípios constitucionais, o conceito de democracia, e sua práxis, é incompleto e inseguro. Nossa tese parte da premissa que a realizabilidade da democracia tem como exigência necessária e inarredável a efetividade da constituição, o respeito à constituição e o acato da força normativa de suas regras e princípios.

Assim, à luz deste foco de análise, queremos desenvolver as seguintes questões: qual a relação necessária entre princípios constitucionais, constituição e democracia? Qual a possível resultante de uma problematização desses conceitos em face de problemas colocados pela realidade institucional e social, realidade composta por diversificados dados, entre os quais avultam os da compreensão e pré-compreensão hermenêuticas que a sociedade civil, os cidadãos e os operadores jurídicos têm a respeito das idéias-conceito constituição, democracia e princípios constitucionais? E o que essas idéias têm a ver com a proteção da cidadania e da dignidade da pessoa humana, através de uma postura que preze a força normativa da constituição?

De outro modo: de como a incompreensão, a irrealização desses conceitos no plano da vida, frustrando a força normativa da constituição, podem fragilizar a defesa dos direitos e interesses das pessoas humanas em face das realidades arredias às normativas principiológicas e regrísticas da ordem constitucional.

A tomada de rumo nesse sentido implica que passemos a discorrer sobre os conceitos-chaves que compõem o título de nosso trabalho, ou seja, analisemos a idéia de democracia, constituição e princípios constitucionais.

Por necessidade de bom método didático, comecemos pela idéia de democracia - de democracia contemporânea. Dela enfatizaremos o aspecto que mais nos interessa, para os fins deste trabalho.

De há muito a idéia de democracia não é mais tomada somente como a regra da maioria, o governo do maior número. Uma tal idéia, levada a extremos, poderia fazer com que uma maioria circunstancial revogasse a própria regra da maioria e colocasse o poder decisório na mão de um único homem, ou de um restritíssimo grupo de homens. A história é repleta de tais exemplos, sendo desnecessário aqui retomá-los. Todavia, a proposta esdrúxula da miniconstituinte, tão bem combatida por Paulo Bonavides3, consiste em exemplo vivo e atual do problema.

Uma concepção mais dilatada, que entende a regra da maioria como um elemento importante do conceito de democracia, mas não o preponderante, advoga a tese de que, para um adequado conceito de democracia, é necessário um mínimo de regras institucionalizadas que estabeleçam quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. É a idéia de democracia como um mínimo de regras do jogo político para o exercício do poder. Essa é a concepção profligada por Norberto Bobbio4. Todavia, entende esse mesmo autor que só essa idéia ainda não é capaz de fomentar uma tendencial convivência democrática.

Hoje se firma no pensamento político a idéia de que a democracia pressupõe a crença, a convivência e os costumes sociais e políticos perspectivados sob o apanágio, a inspiração de valores: valores éticos, políticos e jurídicos. Ou seja: a democracia orientada segundo diretivas axiológicas e normativas. A democracia como um conjunto de idéias, de ideais, de princípios (éticos, políticos e jurídicos) ordena a vida do povo e os fins da ação pública do Estado.

É a democracia fundada na idéia do consenso estabelecido não só pela confluência do número de decisores, mas também pela eleição e autovinculação do consenso em torno do razoável; do razoável como o racionalmente aceito como bem de todos, em todos os tempos e lugares, para verificação, em cada tempo e lugar, daquilo que pode, concretamente, ser feito a bem do maior número possível.

E essa idéia do razoável fundando o consenso instituinte da democracia, contempla a idéia da democracia justa, da democracia edificada e vivida sob a égide dos direitos humanos, cujo fundamento seria a igualdade absoluta de todos os homens, em sua comum dignidade de pessoas humanas (segundo o pensamento de Fábio Konder Comparato5).

Assim, para este trabalho, importa afirmar que a democracia, ou o seu aspecto que aqui mais deve grassar é o de que ela representa uma convivência comunitária fundada à luz dos direitos humanos, na perspectiva de assegurá-los, com real eficácia a todos os homens em suas dignidades de pessoas humanas. Democracia constitucional que, para a consecução desses fins, serve-se, sobremaneira, dos princípios jurídicos assentados nas constituições, dos princípios constitucionais integrantes da ordem jurídica.

Os valores éticos, políticos e jurídicos aludidos vêm expressos preponderantemente em normas jurídicas, principalmente normas constitucionais, e, por esse viés normativo, fartam a democracia de fins a serem perseguidos por governantes e governados. E o Direito, principalmente o Constitucional, tem procurado oferecer instrumentos jurídicos aptos a proteger esses valores.

Assim, basta dizer que a democracia aqui tratada é a democracia que deve ser vivida sob a égide de valores que dirijam o agir concreto dos homens; democracia que preserva a dignidade da pessoa humana, das gerações presentes e vindouras, com absoluta igualdade de consideração dos elementos mínimos asseguradores dessa dignidade.

Feito esse exercício sobre o conceito de democracia, analisemos a idéia de constituição.

A constituição há muito deixou de ser entendida como mero documento de belas e boas intenções políticas; carta de exortações morais aos poderes públicos; apostila de recomendações aos gestores da coisa pública; epístola de aspirações realizáveis ao sabor das contingências do momento político e do fígado dos ocupantes temporais do poder. Há muito morreu a idéia de carta política sem força de direito.

Também, a idéia da Constituição como um instrumento de governo, insensível às políticas públicas sociais, e só envolvida com a proteção da liberdade individual e das garantias de cada indivíduo, já se tornou opinião da história das idéias político-constitucionais do século XX.

A constituição não é mais vista apenas como definidora de competências dos órgãos político-estatais, em consagração ao princípio da separação de poderes, nem só como a declaradora dos núcleos de direitos de defesa inderrogáveis do indivíduo, funcionando somente como carta alheia aos interesses sociais em evolução e amoldada ao bom trato do status quo político e jurídico.

Essa função de garantia da constituição hoje é ladeada pela função programadora da atividade futura do Estado e da sociedade; é acompanhada pela idéia de programação conformadora da ação estatal e social. Assim, a normatividade constitucional não se endereça somente aos órgãos do Estado, exigindo-lhe abstenções, inações e não-interferências; ela também vincula os órgãos estatais a ações positivas, à produção de políticas públicas tendentes a realizar os fins constitucionais plasmados na ordem jurídica. Políticas públicas realizáveis por meio de atos, processos e medidas administrativas; de leis e sentenças, através do Judiciário, do Legislativo e do Executivo.

Além do Estado, as constituições contemporâneas (como as produzidas a partir do último quartel do século XX) também vinculam os particulares, numa normatividade constritora inclusive do Direito Privado, como antes nunca visto6.

Ao lado dessa mudança revolucionária da função do texto constitucional, outra se destaca. A mudança de seu sentido ontológico: de carta política a norma de direito. Hoje a constituição é vista como um todo normativo, como um todo legal, como bloco de normas que constituem leis, valem como leis, como lei de todas as leis, heterodeterminando a produção, a interpretação e a aplicação de todas as partes da ordem jurídica.

Essas novas concepções potencializam a força normativa da constituição (Konrad Hesse7) e lhe garantem a inescusável qualidade de norma jurídica - é a idéia de constituição como norma (Garcia de Enterria8). A força normativa da constituição, hoje, indica a força de lei, força de direito e de norma jurídica. E, para esse rico raciocínio, se o todo é lei, suas partes também o são; e, se o todo é norma, as regras e princípios que o compõem também o são.

A constituição, então, como um grande código de vida comunitária de uma nação, estabelece os principais valores de organização da vida em sociedade; fixa as formas de organização, investidura e exercício do poder; determina as formas e meios de defesa dos direitos e interesses tuteláveis dos cidadãos, dos grupos e movimentos organizados.

Esses valores vêm mediados em forma de princípios e regras constitucionais, que são espécies do gênero norma constitucional. Eles são captados pelos três níveis de racionalidade da constituição (segundo o magistério de Gomes Canotilho9) - níveis esses componentes do consenso geral da comunidade sobre o que seja razoável em termos de proteção dos direitos humanos: o nível da racionalidade ética, o da racionalidade política e o da racionalidade jurídica.

O primeiro - da racionalidade ética - consagra os principais valores éticos da convivência humana, como a vida, a dignidade da pessoa humana, etc. (art. 1º, III, e art. 5º, caput, da Constituição da República).

O segundo nível - o da racionalidade política - revela-nos quem pode exercer o poder, como poderá conquistá-lo, como deverá exercê-lo e que fins deverá prosseguir no desencadear de seus instrumentos e formas (e. g., arts. 14 e 37, caput e § 3º, da CR).

O terceiro - da racionalidade jurídica -, estabelece os instrumentos de proteção dos direitos e interesses das pessoas humanas, assegurando o acesso à jurisdição, através do processo judicial, e o acesso aos outros direitos, via processo administrativo, ou a realização de atos negociais, pela preservação da autonomia negocial dos indivíduos (e.g., arts. 5º, II, XXXIV, XXXV, LIII, LIV, LV, LXVIII, LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXXIII; 102, I, letra "a", e § 1º; 103, § 2º). Estatui, ainda, quais os limites de produção, interpretação e aplicação do Direito Positivo (e. g., arts. 5º, XXXVI; 34, VI; 35, IV; 51, III; 52, XII; 59 a 61; 93, IX, primeira parte; 96, I, letra "a", 92; 97).

Esses níveis de racionalidade se revelam por meio das normas constitucionais, que por sua vez tanto se manifestam na forma de regras quanto na forma de princípios10.

Aliás, essa distinção entre regras e princípios é por demais importante no centro da teoria jurídica contemporânea e muito auxilia na compreensão da constituição como um sistema jurídico aberto de regras e princípios constitucionais. Sistema jurídico aberto à realidade social e política da comunidade dos cidadãos.

O que realmente vale ficar da idéia da constituição, para os objetivos deste discurso, é que ela, de certa forma, é documento orientador da ação do Estado e da sociedade; ela tem algo de utopia positivada; ela tem o que se aposta no futuro pela força revolucionadora das normas constitucionais. Ela é, no dizer de Canotilho, uma constituição dirigente.

Destacadas as linhas importantes do atual conceito de constituição, adentremos, agora, no conceito de princípios constitucionais.

Os princípios jurídicos como princípios constitucionais têm a mais alta normatividade do sistema jurídico. Isso fez com que a antiqüíssima postura que conferia aos princípios mera posição subsidiária em face dos atos de integração da ordem jurídica, fosse superada; ou seja, antes, os princípios gerais do Direito eram apenas elementos de colmatação de lacunas do sistema jurídico, segundo o enunciado do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e do art. 126 do Código de Processo Civil.

Todavia, hoje constituem verdadeiros parâmetros de aferição de constitucionalidade do sistema jurídico; fazem dos princípios normas prenhes de direitos; fazem dos princípios os principais sentidos hermenêuticos da ordem jurídica; sumariam as estruturas básicas de justiça, que, estabelecidas na constituição pelos princípios constitucionais, ganham vigor e materialidade.

Na antiga e superada postura positivista, os princípios só assumiam importância quando houvesse lacunas na ordem jurídica. Hoje essa posição não mais procede. Contemporaneamente, houve uma completa revolução nas concepções principialistas no Direito.

Os princípios jurídicos, como afirma Paulo Bonavides, ao saltarem dos códigos para as constituições, do Direito Privado para o Direito Público, da dogmática civilista para a dogmática constitucional, promoveram uma completa mudança no modo de se compreender, interpretar e aplicar as normas integrantes do sistema jurídico11.

Pelos princípios constitucionais positivaram-se os principais valores éticos, políticos e jurídicos ordenadores da sociedade e do Estado; dos princípios constitucionais, em termos jurídico-positivos, podemos extrair os grandes sentidos da democracia constitucional contemporânea.

Como exemplo de valores éticos, positivados em princípios constitucionais, que conformam os objetivos a serem realizados pela democracia brasileira, podemos destacar o conhecido princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, III; o princípio constitucional garantidor da vida, como valor supremo do homem, estabelecido no caput do art. 5º; o princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, art. 4º, IX.

Como exemplo de valor político, positivado em norma constitucional, podemos citar o próprio princípio democrático (art. 1º); o princípio do pluralismo político (art. 1º, V); o princípio federativo (art. 1º c/c art. 18) e o princípio presidencialista (art. 75, caput).

Por sua vez, como exemplo de valores jurídicos, as normas consagradoras de direitos e garantias fundamentais, em sua quase totalidade, constituem princípios, como os do devido processo legal, do juiz e do promotor natural, do contraditório e ampla defesa, da motivação dos atos administrativos, etc.

É claro que essa classificação não é estanque, cada uma das normas citadas guarda valores éticos, políticos e jurídicos, sendo apenas de destacar o caráter axiológico predominante de cada uma delas.

A concepção de democracia antes enunciada bem se amolda ao atual estágio do Direito Constitucional, especialmente no tocante à sua compreensão e pré-compreensão de constituição e de princípios constitucionais. E aí começa a relação mais imediata, em termos jurídicos, da idéia de democracia com a de princípios constitucionais.

Com efeito, não bastam a regra da maioria e as regras procedimentais para conceituar democracia. Ainda mais: não bastam essas idéias para um povo bem conviver democraticamente. É preciso a ação de valores, de princípios postos como fins a serem perseguidos pelos agentes da democracia, pelos governantes e pelos governados. Mais: é preciso que esses valores possam valer, possam ter eficácia imperativa, possam ter efetividade vinculante; possam ser reclamados em órgãos que garantam a sua aplicabilidade e respeitabilidade; possam ser defendidos contra atos que queiram contradizer seus comandos. Mais: é preciso que esses valores tenham dignidade tal que não lhe resistam negativas de sua autoridade por quem quer que seja, trate-se de autoridades de qualquer nível ou particulares de qualquer condição, intestinos à Nação ou exteriores a ela.

Nessa perspectiva coloca-se a inegável contribuição do Direito Constitucional12 para o conceito, a prática, a crítica e a vivência da idéia de democracia.

Nesse norte, os princípios constitucionais, como diretivas normativas e hermenêuticas, conferem e dão autoridade aos grandes valores éticos, políticos e jurídicos da democracia contemporânea, da democracia brasileira planejada em termos jurídicos pela nossa vigente Constituição.

Vejamos alguns exemplos concretos da bondade dos princípios constitucionais em prol da democracia brasileira e do reconhecimento da força normativa de nossa Constituição.

Pelos núcleos de princípios constitucionais enunciados nos primeiros artigos da Constituição, como os especificadores da ordem de garantia do desenvolvimento nacional; da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalidade e da redução das desigualdades sociais, podemos fazer não só críticas políticas às práticas de nossa atual gestão da República brasileira, mas poderemos, também, questionar a constitucionalidade de atos integrantes de políticas públicas ventiladas pelo mandatário maior do Executivo.

Essa idéia mais ousada foi defendida por Fábio Konder Comparato13, embora afirme que este questionamento seja algo para produzir direito futuro, e não tanto para aplicar sob as diretivas da ordem vigente, ou, seja, seria um problema mais de lege ferenda do que de lege lata.

No entanto, embora as políticas constituam conjuntos de medidas ventiladas por leis e atos administrativos, não nos esqueçamos de que as leis se sujeitam à perquirição via ação direta de inconstitucionalidade (controle concentrado de constitucionalidade), bem como à argüição incidental nas vias processuais ordinárias (controle difuso); e, mais, os atos administrativos, via ação popular, mandado de segurança, ação civil pública e vias processuais comuns (art. 271 do Código de Processo Civil) podem ser contrastados com os princípios constitucionais, para análise da validade de suas expedições.

O que queremos dizer é que os princípios constitucionais são paramétricos tanto em relação às leis quanto aos atos administrativos, e mesmo quanto às sentenças, sujeitando estas últimas a recursos extraordinários, ordinários e comuns quando violarem seus comandos generalíssimos ou suas densificações regrísticas (e. g., arts. 102, II e III; 121, § 4º, I; 5º, LV).

Questionar a validade de atos praticados por maiorias congressuais oportunisticamente submissas, ou monocracias executivas exasperadas, ou mesmo aristocracias judiciárias coniventes ou omissas é exigência necessária e inarredável da atual democracia constitucional brasileira (luzes nos arts. 2º; 5º, II, XXXV e LIV).

Assim, é fácil concluir que não é só democrático integrar a vontade da maioria ou submeter-se aos seus efeitos; não é só democrático que governantes decidam de acordo com regras procedimentais de formação da vontade política; é também democrático e democratizante servir-se a cidadania de instrumentos jurídicos hábeis para impugnar atos praticados em ofensa aos princípios e regras constitucionais orientadores da ação de autoridades e poderes instituídos pela ordem jurídica: legisladores, juízes, administradores e particulares produtores de atos negociais.

Para tornar o poder mais diáfano, mais controlável pela cidadania, como exigência dos rumos democráticos contemporâneos, ninguém negará a bondade dos princípios da legalidade da ação administrativa, da moralidade administrativa, da impessoalidade da ação estatal, da legitimidade das despesas públicas, da economicidade nos gastos do erário, princípios assentados nos arts. 37 e 70 da Constituição da República.

Ninguém negará a bondade do princípio da publicidade dos atos públicos (e. g., arts. 31, § 3º; 37, caput; 93, IX, segunda parte), da motivação dos atos de decisão, sejam atos judiciais ou atos administrativos (art. 93, IX, primeira parte, e X).

Ninguém negará as exigências principiológicas advindas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), do devido processo legal (art. 5º, LIV); ninguém refutará a bondade do princípio da reserva penal (art. 5º, XXXIX c/c XL) e da legalidade tributária (art. 155, I); do princípio da proporcionalidade (implícito no art. 5º, LIV) e outros mais, garantidores da ação do Estado em prol dos direitos fundamentais da pessoa humana (arts. 4º, II e 5º, § 2º), ao tutelar não só seus direitos de defesa, mas também seus direitos a prestações.

Nesses termos, democraticidade e legalidade, democraticidade e constitucionalidade, democracia e principiologia, democrático e jurídico quase se confundem de forma indivisível.

E assim se firma a idéia de que a democracia é impensável sem uma constituição que a garanta, que ordene e estruture seus desenvolvimentos e regule suas realizações presentes e futuras.

Não é possível realizar a democracia apartada da realização e da efetividade dos princípios constitucionais. Não há democracia sem respeito à constituição, sem acato a sua principiologia constitucional.

A democracia brasileira será mera democracia formal se os valores éticos, políticos e jurídicos, mediados pelos princípios constitucionais, não obtiverem força de direito.

E, para a efetividade dessa força, é preciso que a nossa vontade de constituição, que o nosso sentimento constitucional, que nossa vontade de democracia, que o nosso sentimento democrático, estejam juntos, cultivando esses valores em nossos espíritos, como pessoas que somos e como povo que constituímos.

É preciso que em cada petição, em cada arrazoado, em cada parecer, em cada sentença, em cada discussão parlamentar, em cada conjunto de intenções político-administrativas, em cada aula, em cada discurso público, em cada momento da vida política individual e comunitária, os princípios constitucionais e a Constituição sejam compreendidos como as grandes trincheiras (e espadas) históricas, construídas para a salvaguarda dos grandes valores éticos, políticos e jurídicos que protegem o homem e a sociedade contra a ação antidemocrática e inconstitucional de poderes arbitrários, autoritários e pseudolegitimados pelas circunstâncias e por interesses políticos que nem sempre se amoldam aos fins e aos valores constitucionais.

É preciso eleger a Constituição e seus princípios como grandes defensores dos mais altos valores da civilidade que desejamos e ainda não alcançamos em concretude.

É preciso compreender que, tanto quanto a estabilidade da moeda, o pleno emprego e a justa distribuição de renda, precisamos de estabilidade constitucional, de pleno acato e respeito aos comandos constitucionais para um justo governo e para uma justa distribuição do direito e da justiça de acordo com a vontade de constituição (Hesse).

O futuro de nossa democracia está irremediavelmente ligado ao futuro de nossa Constituição, já que desrespeitar a Constituição é desrespeitar a democracia; ferir a Constituição é ferir a democracia, de modo tal que um ato inconstitucional, emanado do Legislativo, do Judiciário ou do Executivo, é um ato, antes de tudo, antidemocrático e abreviador de nossa convivência em democracia.

Diante dessas considerações, concluímos que o maior dos deveres cívicos, políticos, profissionais, éticos e humanitários, aplicáveis a todos os operadores do Direito, é o de bem defender a força normativa e o respeito à nossa Constituição do Estado democrático de direito; é o de compreender o valor, a importância e a força do Direito Constitucional no cotidiano de nossas vidas, no cotidiano de nosso País, para podermos levar à concretude o sonho de uma verdadeira democracia constitucional.

Urge defendermos nossa democracia e nossa Constituição com o melhor de nossas forças, seu maior penhor de garantia! O Brasil e os brasileiros de ontem, de hoje e de amanhã precisam dessa defesa. Unamo-nos nesta batalha!

Notas

1 BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de estado institucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 13.

2 Exemplo dessas preocupações, são as expostas na obra de Manuel ARAGON, constitucionalista espanhol, intitulada Constitucion y democracia. Madrid: Tecnos, 1990. Postura com esse matiz já foi bem exposta entre nós, só que com ênfase no princípio republicano, no livro de Geraldo ATALIBA, intitulado República e Constituição, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

3 Para tanto, ver BONAVIDES, op. cit.

4 Ver seu livro O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

5 Cf. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 16, 1996. p. 5-14.

6 Ver, e. g., CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do Direito Constitucional ou constitucionalização do Direito Civil? A eficácia dos Direitos Fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. IN: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito Constitucional : estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 108-115; MENDES Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas - análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. p. 207-225; LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 613.

7 Ver seu livro Força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

8 Ver seu livro La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1981.

9 Ver seu livro Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1982.

10 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 61-64, 219-231, 247 e 249.

11 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 228-266.

12 Nessa perspectiva do Direito Constitucional, importante salientar os seguintes trabalhos: o organizado por Antonio G. Moreira MAUÉS, que reúne quinze textos de juristas brasileiros e estrangeiros, intitulado Constituição e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 290 e os escritos de Paulo BONAVIDES, reunidos no livro Teoria constitucional da democracia participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma Nova Hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 280.

13 Cf. "Ensaio sobre o juízo de inconstitucionalidade de políticas públicas. MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Direito Administrativo e Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997.v. 2. p.343-359.

Referências

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ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

__________. Do país constitucional ao país neocolonial : a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de estado institucional. São Paulo: Malheiros, 1999.

__________. Teoria constitucional da democracia participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Almedina, 1982.

__________.Civilização do Direito Constitucional ou constitucionalização do Direito Civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 108-115.

COMPARATO, Fábio Konder. Variações sobre o conceito de povo no regime democrático. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 16, 1996. p. 5-14.

__________.Ensaio sobre o juízo de inconstitucionalidade de políticas públicas. Celso Antônio Bandeira de MELLO (Org.). Direito Administrativo e Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. v. 2, p. 343-359.

ENTERRIA, Eduardo Garcia. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1981.

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

HESSE, Konrad. Força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991.

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MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas - análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. p. 207-225.

Advogado e consultor jurídico em Santa Catarina (Florianópolis), sócio-gerente da “Espíndola & Valgas, Advogados Associados”, mestre em Direito Público pela UFSC, professor de Direito Constitucional de graduação e pós-graduação (Univali e Esmesc), coordenador do curso de pós-graduação em Direito Municipal e vice-coordenador da especialização em Direito Administrativo, ambos do Cesusc.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 9, n. 2 (jul./dez. 2002).

 

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