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Íntegra

Conceito jurídico de domicílio eleitoral

Por: Rômulo Pizzolatti

Grassa imprecisão conceitual, na doutrina e na jurisprudência eleitoral, sobre o que seja "domicílio eleitoral". Daí a necessidade, teórica e prática, de estudo aprofundado do tema, na busca do conceito mais apropriado. As reflexões que se alinham não pretendem haver encontrado a verdade, mas tão-somente provocar o indispensável debate, sem o qual não se constrói a Ciência do Direito.

A jurisprudência eleitoral tem assentado que o domicílio eleitoral não se confunde com o domicílio civil. Isso não decorre de nenhuma construção pretoriana, mas resulta do texto mesmo do Código Eleitoral, expresso no sentido de que o conceito de "domicílio" que estipula é "para efeito da inscrição" (Código Eleitoral, art. 42, parágrafo único). Cada disciplina jurídica pode fixar suas categorias ou conceitos operacionais, diversos daqueles conceitos utilizados por outras disciplinas. Assim, a par do "domicílio civil", normativamente regulado pelos arts. 31-42 do Código Civil, há o "domicílio tributário" (Código Tributário Nacional, art. 127) e, como antes se referiu, o "domicílio eleitoral", conceito próprio do Direito Eleitoral.

Todavia, a despeito de haver, no âmbito da legislação eleitoral, um conceito operacional de "domicílio", inconfundível com o "domicílio" do Código Civil, ou com o do Código Tributário Nacional, o conceito de domicílio eleitoral, fixado na lei, se tem prestado a manipulações retóricas quanto ao seu sentido, resultando de tal modo flexibilizado que, ao fim, acaba por confundir-se, em alguns casos, com o "domicílio civil", ou, pior que isso, redunda em fórmula tão vaga, que legitima toda sorte de oportunismo eleitoral.

Com efeito, o Código Eleitoral conceitua, para fim de inscrição eleitoral, o domicílio como "o lugar de residência ou moradia do requerente"; no caso de ter o cidadão mais de uma residência ou moradia, o domicílio pode ser determinado por qualquer delas (art. 42, parágrafo único). Em caso de transferência de domicílio eleitoral, exige-se residência mínima de três meses no novo domicílio (Código Eleitoral, art. 55, § 1°, III, com a redação da Lei n. 6.996, de 1982).

Verifica-se que a definição de domicílio, na lei eleitoral, seguiu a técnica definitória por sinonímia, a qual, segundo o Prof. Luís Alberto WARAT, "... permite mostrar a significação, correlacionando o termo cujo sentido se desconhece com outro que tem para o receptor uma significação clara" (A definição jurídica. Porto Alegre: Atrium, 1977. p. 4 ). Como o legislador não estava seguro de que o termo "residência", tradicional do Direito Civil, fosse suficientemente claro, definiu-o mediante o sinônimo "moradia", que a seu juízo seria melhor entendido.

No Direito Civil, a residência com ânimo definitivo também é o critério para a determinação do domicílio (Código Civil, art. 31). Mas o Direito Civil admite a hipótese de pluralidade de domicílios, que ocorre quando: (a) a pessoa natural tiver diversas residências, onde alternadamente viva, ou (b) tiver vários centros de ocupações habituais (Código Civil, art. 32).

Já o Direito Eleitoral não admite pluralidade de domicílios: o domicílio será um só - o do lugar de residência ou moradia do eleitor. Disso resulta que, se a pessoa tiver residência em um município, mas exercer suas atividades em outro, seu domicilio eleitoral será o do lugar onde reside, e não o do lugar onde trabalha ou tem seu centro de ocupações. Nesse ponto há coincidência com as regras de determinação do domicilio do Direito Civil, pois, conforme a lição de Carvalho SANTOS: "se a pessoa tiver residência num lugar e centro de negócios em outro, o domicílio será no lugar da residência" (Código Civil brasileiro interpretado, 12. ed. Freitas Bastos, 1980. v. I, p. 427).

O sentido da lei eleitoral começou a sofrer redefinição a partir de decisões que se impressionaram demasiado com o caso concreto e buscaram solução de equidade, deixando de lado a solução normativa. Assim é que o Tribunal Superior Eleitoral concedeu, por maioria, a ordem impetrada, por entender não haver justa causa para ação penal, por crime do art. 350 do Código eleitoral, em caso em que o paciente havia indicado como seu endereço, para fins de transferência de domicílio eleitoral, o lugar onde prestava serviços médicos, embora residisse efetivamente em outro município (Acórdão n. 210, JTSE, v. 6, n. 1, p. 11-16). Em outro julgado criminal, Acórdão n. 13.459, o TSE não conheceu do recurso interposto pela Procuradoria Regional Eleitoral contra acórdão que absolvera o réu, também processado por infringência do art. 350 do Código Eleitoral. Aqui, o TSE entendeu que não havia crime de falsidade ideológica no caso de réu que declarara residir, para fins de transferência de domicílio eleitoral, em município onde possuía interesses patrimoniais (JTSE, v. 6, n. 1, p. 376-380). Tais julgados, entretanto, não possuem a força de precedentes, visto que motivados pelas particularidades dos respectivos casos concretos, reveladoras da ausência do elemento subjetivo (dolo) por parte dos acusados.

Também no Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina observam-se decisões que operam redefinição do conceito legal de domicílio eleitoral. No Acórdão n. 12.053, publicado em 15 de setembro de 1992, em que foi relator o Juiz Olavo RIGON FILHO, entendeu-se que era legal a candidatura a cargo eletivo em município que não o da residência do candidato, uma vez que exercia ele atividades, inclusive políticas, no primeiro município. Já na Resolução n. 6.686, publicada em 18 de março de 1992, em que foi relator o Juiz Anselmo CERELLO, o entendimento fora o mesmo (Resenha Eleitoral, TRE/SC, v. 1, n. 1, p. 163-171).

Profunda reflexão sobre o tema leva-me à conclusão de que a redefinição do conceito de domicílio eleitoral, operada por essa tendência jurisprudencial, configura invasão, pelo Judiciário, da competência legislativa, que a Constituição deferiu ao Poder Legislativo (CF, art. 2°), sendo certo, conforme já assentou o Supremo Tribunal Federal, que:

"Não pode o Juiz, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com o seu sentimento de justiça ou equidade, substituir-se ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável. Mitigue o Juiz o rigor da lei, aplique-a com equidade e equanimidade, mas não a substitua pelo seu critério". (RE n. 93.701-3 -MG, rel. Min. Oscar CORREA, JSTF-LEX, 85/83).

Com efeito, o entendimento pretoriano, segundo o qual o lugar onde uma pessoa exerce suas atividades laborais ou cívicas também é "residência", para fins de inscrição eleitoral, embora essa mesma pessoa "resida", de fato, alhures, implica introduzir na lei a figura da duplicidade de domicílios eleitorais, conseqüência hermenêutica incorreta, pois pluralidade de domicílios existe em Direito Civil, e não em Direito Eleitoral, no qual vigora o princípio da unidade domiciliar.

Esse indevido resultado hermenêutico só pode explicar-se pelo abandono ou desprezo, inconsciente ou não, da letra da lei, olvidada a advertência do jurista português José de Oliveira ASCENSÃO, no sentido de que:

"a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação (...), se prescinde totalmente do texto, já não há interpretação da lei, pois já não estaremos a pesquisar o sentido que se alberga em dada exteriorização" (C Direito: introdução e teoria geral; uma perspectiva luso-brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 313).

Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo e guardião da Constituição, no julgamento do RE n. 166772-9-RS, relatado pelo Ministro Marco AURÊLlO, assentou que a atividade interpretativa não pode levar:

"... ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos, quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios".

Já, no tocante à extensão da carga construtiva na atividade interpretativa, o mesmo julgado assinala:

"Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem juridico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício da gratificante arte de interpretar, descabe inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja -sobre a finalidade que conviria fosse por ela perseguida - Celso Antônío Bandeira de MELLO - em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este àquele".

Portanto, quando o Código Eleitoral, no seus artigos 42, parágrafo único, e 55, inciso III, fala em "residência", definindo sinonimicamente esse termo como "moradia", não pode o juiz, no exercício da atividade interpretativa - e não atividade legislativa -, enxergar aí "local onde são exercidos os direitos políticos", "centro das funções sociais", "centro da atividade eleitoral", "zona de influência política", "reduto eleitoral" (expressões utilizadas no Acórdão n. 12.053, do TRE/SC, rei. Juiz Olavo RIGON FILHO), ou ainda "centro das atividades", "local das relações jurídicas", "local onde tem o eleitor a vida jurídica" (expressões usadas na Resolução n. 6.868, do TRE/SC, rel. Juiz Anselmo CERELLO), expressões fluidas que, por desbordarem da moldura legal, permitem que o domicílio eleitoral seja arbitrariamente fixado pelo cidadão, bastando que alegue que quer se alistar eleitoralmente em determinado município, embora more noutro, porque tem naquele a sua "zona de influência política" ou o seu "centro de funções sociais ...".

Assim, os endereços comercial, profissional ou mesmo funcional não servem como critério determinante do domicílio eleitoral. O critério legal, excludente de qualquer outro, é o da "residência", entendida como "moradia". Se houver mais de uma residência (moradia) - e só nesse caso -, poderá o alistando optar por qualquer delas, conforme a ressalva da parte final do parágrafo único do art. 42 do Código Eleitoral.

A regra não muda no caso dos funcionários públicos, os quais, pela lei (Lei federal n. 8.112, de 1990, no caso dos servidores públicos civis da União), têm sede funcional no município onde a repartição estiver instalada e onde o servidor tiver exercício, em caráter permanente" (art. 242). O conceito operacional "sede funcional" é de uso restrito às relações estatutárias, como por exemplo, para efeito de recebimento de diárias, às quais tem o servidor direito quando se afasta da sede em caráter eventual (art. 58), ou para recebimento de ajuda de custo quando passa a ter exercício em nova sede (art. 53); não se presta à determinação do domicílio eleitoral, mas apenas do domicílio civil, por força do disposto no art. 37 do Código Civil, segundo o qual os funcionários públicos reputam-se domiciliados (civilmente) onde exercem as suas funções em caráter permanente. A particularidade, no caso do funcionário público, é que, quando transferido funcionalmente para outra sede, a sua transferência eleitoral não depende do requisito da residência mínima de três meses no novo domicílio, exigido pelo art. 55, III, do Código Eleitoral, diante da ressalva expressa do § 2° do mesmo dispositivo legal. Mas é pressuposto da transferência eleitoral que o funcionário transferido ou removido também tenha transferido sua residência para o lugar da nova sede funcional. Se não o fizer, dar-se-á, no âmbito civil, segundo a lição de Caio MARIO, "... a instituição de domicilio plúrimo: o legal, decorrente do fato que o impõe, e aquele onde se aloja a residência com ânimo definitivo" (Instituições de direito civil, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. v. 1, p. 326). No âmbito eleitoral, seu domicílio continuará sendo o da sua residência, a despeito da mudança da sede funcional e, decorrentemente, do domicílio civil. Sem razão, portanto, Fávila RIBEIRO, para quem "... o funcionário público deve ter por domicilio [eleitoral] o local em que tem sede a repartição em que está lotado" (Direito eleitoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 173).

A redefinição do conceito legal de domicílio eleitoral pode ter, na prática, conseqüências sérias. Levaria, por exemplo, a que um vereador de um município, mas residente alhures, não se sensibilizasse quando um eleitor viesse reclamar do aumento exorbitante do IPTU, porque, pessoalmente, é contribuinte em outro município. Mais grave ainda, se fosse o Prefeito que tivesse sua residência em outro município: não saberia, por vivência própria, como é a coleta do lixo, o transporte urbano, a educação, a saúde no - município do qual é prefeito. Isso acarretaria certa insensibilidade e mesmo desinteresse dos problemas locais, porque não estaria totalmente integrado à comunidade.

A residência, ou moradia, é um dos principais fatores de integração da pessoa na comunidade. Parece-me, em visão sociológica e política, indispensável a quantos exerçam funções políticas ou mesmo funções públicas mais relevantes. no caso, por exemplo, além do de todos aqueles investidos em cargo eletivo, também dos juizes e membros do Ministério Público (titulares), que a Constituição Federal determina residam na comarca onde lotados (arts. 93, VII e 129, § 2°). Porém, a mesma permissividade, condescendência, cumplicidade quase, que têm os Tribunais e a cúpula do Ministério Público com seus integrantes que não cumprem o preceito constitucional da residência no local de suas funções, alastra-se, feito moléstia contagiosa, no âmbito da Justiça Eleitoral, para com os que pretendem investir-se em cargo eletivo. Tudo com sérios danos para o cabal desempenho das funções públicas, que exigem total integração do agente público à comunidade, sob pena de desconhecimento da realidade e insensibilidade aos problemas locais.

Para conjurar esse estado de coisas, que reputo insatisfatório, nada melhor do que volver ao velho, mas sempre atual, ARISTÓTELES e dele colher a lição de que o governo das leis, por mais imperfeito que seja, ainda é melhor que o governo dos homens (Política, 1286a.). Traduzindo para o tema em estudo: a solução da lei eleitoral, para determinar o domicílio eleitoral, se não é perfeita, é de qualquer modo bem superior às soluções propostas pelos julgados revisionistas.

Juiz Substituto do TRESC. Juiz Federal. Mestre em Direito (UFSC) e Doutorando em Direito (UFSC). Professor do Curso de Mestrado da UNIVALI - Itajaí.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 3, n. 1 (jan./jun.1996).

 

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