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A natureza das atividades da Justiça Eleitoral

Por: Rômulo Pizzolatti

O verdadeiro caráter das atividades desenvolvidas pelos órgãos judiciários da Justiça Eleitoral é matéria que constitui objeto de permanente controvérsia, trazendo, a cada momento, perplexidade aos juízes e tribunais eleitorais, porque, conforme a natureza que tenham estas atividades, devem-se aplicar certos princípios, com exclusão de outros.

Tal perplexidade tem vindo amiúde à tona em julgamentos não só do Tribunal Superior Eleitoral, senão também do Supremo Tribunal Federal. Vejam-se, exemplificativamente, quanto ao TSE: Acórdão n. 12.121, JTSE, v. 4, n. 3, p. 11; Acórdão n. 13.098, JTSE, v. 5, n. 2, p. 280; Acórdão n. 12.024, JTSE, v. 6, n.4, p. 98. Quanto ao STF, veja-se a Ação Originária n. 58-AgRg-DF, RT J 1331507. Não haveria controvérsia caso (como ocorre na maioria dos países) a apuração dos pleitos coubesse a uma autoridade ou corpo de autoridades não-judiciárias, ficando o controle de legalidade dos atos respectivos, por força do art. 5°, XXXV, da Constituição, reservado ao Poder Judiciário. Em tal contexto não se instalaria qualquer dúvida: os órgãos eleitorais praticariam atos administrativos, e os judiciários atos jurisdicionais.

Não estando devidamente fixada a natureza das atividades dos órgãos judiciários da Justiça Eleitoral, não se conseguem, decorrentemente, estabelecer os princípios aplicáveis em cada caso, com o que um sem-número de problemas práticos acabam sem tratamento uniforme, trazendo mais incerteza ao Direito Eleitoral, esse outro desconhecido.

Assim, há julgados que, não conseguindo precisar a natureza da causa eleitoral que examinam, fazem por exigir que as postulações perante a Justiça Eleitoral sejam intermediadas por advogado, a pretexto de que este é órgão indispensável à administração da justiça, a teor do que dispõe o art. 133 da Constituição. É de ponderar, todavia, que este dispositivo constitucional, no que faz referência à "administração da justiça", parece indicar a justiça em sentido estrito, isto é, a jurisdição dita contenciosa, com o que ficariam de fora daquela exigência atividades outras, como a jurisdição dita voluntária e a atividade administrativa exercida pelos órgãos judiciários. O princípio da intermediação do advogado (CF, art. 133) não é absoluto, mas relativo, devendo, em algumas situações, ceder o passo ao do acesso à jurisdição (CF, art. 5°, XXXV). Não se aplica, portanto, ao Habeas Corpus (STJ, RHC 1.701/CE, Rel. Min. Flaquer SCARTEZZINI, DJU de 4.05.92, Seção 1, p. 5.895) nem a certas justiças especializadas, como os Juizados de Pequenas Causas, a Justiça do Trabalho e a Justiça de Paz (veja-se o acórdão proferido pelo STF na ADln 1.127-8-DF-Liminar, Rel. Min. Paulo BROSSARD, DJU de 14.10.94, Seção 1 , p. 27.596, suspendendo, em parte, a eficácia do art. 1°, I, da Lei n. 8.906, de 1994). Segundo Eros Roberto GRAU, ao tratar do tema do conflito entre princípios jurídicos, "...a circunstância de, em determinado caso, a adoção de um princípio, pelo aplicador do Direito ou pelo intérprete, implicar o afastamento de outro, que com aquele entre em testilhas, não importa em que este seja eliminado do sistema, até porque - em outro caso, e mesmo diante do mesmo princípio, este poderá vir a prevalecer" (A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e critica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1990, p. 115-6). Por isso, andou bem, a meu ver, o Acórdão n. 14.530 do TRE/SC (Ementário, v. 1, n. 1, p. 238), ao entender que pedido de recontagem de votos (jurisdição voluntária) pode ser formulado por delegado de partido, sem que seja advogado. Contraditoriamente, a Resolução n. 6.984, do mesmo Tribunal (Ementário, v. 1, n. 1, p. 341 ), respondeu consulta eleitoral no sentido de que, como regra geral, há obrigatoriedade de representação das partes por advogado perante a Justiça Eleitoral, mas, por exceção, dispensa-se a intermediação de advogado nas "impugnações a pedido de registro de candidatura". Parece-me que o que a Resolução apontou como regra deveria ser exceção, e a exceção regra. De fato, "ação de impugnação de pedido de registro de candidatura" (LC n. 64, de 1990, arts. 3° e 15) deflagra sem dúvida processo de jurisdição contenciosa, pelo que é de rigor a atuação do advogado. Mas os procedimentos judiciais-eleitorais são, na generalidade, de jurisdição voluntária, em que é possível- por a ela não se referir o art. 133 da CF - a atuação das partes sem advogado, embora lei especifica possa estender aos procedimentos eleitorais a exigência feita pelo Código de Processo Civil (art. 36) para as causas da jurisdição civil, contenciosa ou voluntária (art. 1°). Jurisdição civil não se confunde, porém, com jurisdição eleitoral.

Não há dúvida, portanto, da importância de investigação teórica acerca da natureza das atividades dos órgãos judiciários da Justiça Eleitoral. Mas serão elas de jurisdição dita contenciosa, de jurisdição dita voluntária, ou atividades meramente administrativas?

Metodologicamente, cuido que não cabe ao jurista, como se fora um novo Procusto, propor modelos e fórmulas a que deva adaptar-se a realidade jurídica.

Segundo a mitologia grega, era Procusto um facínora que estendia suas vítimas sobre um leito, cortando-lhes os pés quando o ultrapassavam e estirando-as quando não lhe alcançavam o tamanho. Daí a expressão "leito de Procusto."

Deve ele, mais restritamente, procurar descrever essa realidade normativa tal como ela se apresenta, porque a realidade jurídica, sempre pressionada pela realidade social, revela-se cambiante e é sempre mais rica que a imaginação dos juristas.

Ao jurista cabe partir da realidade normativa para a teorização, em lugar de abordar essa mesma realidade com teorias já prontas e acabadas, a que já se filiou e jurou fidelidade eterna. Não é atitude científica o apego a teorias, mas, sim, a abertura para a constante revisão do modo de pensar.

Proponho provisoriamente, para ulterior comprovação, a hipótese, ditada pela experiência jurídica, de que a Justiça Eleitoral desenvolve uma série de atividades, que não se acomodam a um mesmo gênero, como, por exemplo, a jurisdição dita contenciosa. Isso implica dizer que as várias atividades da Justiça Eleitoral devem ser discriminadas, agrupadas as que tiverem notas essenciais comuns, e depois averiguada a natureza de cada grupo ou espécie, segundo os modelos jurídicos construídos pela Ciência do Direito.

Partindo do exame da realidade concreta, verifica-se que o grosso das atribuições da Justiça Eleitoral, isto é, as que respeitam á organização do eleitorado e das eleições, são atividades de caráter administrativo, ainda quando praticadas por tribunais ou juizes eleitorais. É o caso, por exemplo, da competência normativa do Tribunal Superior Eleitoral para expedir instruções convenientes à execução do Código Eleitoral (art. 22, IX), bem como da competência normativa do mesmo tribunal e dos tribunais regionais eleitorais para responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade ou partido (Código Eleitoral, arts. 22, XII, e 30, VIII). Como nessas hipóteses os órgãos da Justiça Eleitoral não aplicam a lei a casos concretos, que lhes sejam submetidos à apreciação, não há falar em jurisdição, nem contenciosa, nem voluntária. E como se vinculam os órgãos judiciários ao direito positivo, tampouco se pode dizer que exerçam atividade legislativa. Tais atividades seriam, por exclusão, administrativas.

Segundo KELSEN, as funções administrativa e judiciária não são funções essencialmente distintas, na medida em que uma e outra consistem na execução de normas gerais. A discriminação de atividades judiciárias e administrativas só poderia ser feita por meio da descrição das atividades típicas dos tribunais, civis ou criminais. Em última análise, a atividade judiciária caracterizar-se-ia por estabelecer que foi cometida uma violação da ordem jurídica e ordenar uma sanção, civil ou criminal (Teoria geral do direito e do estado. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo. Martins Fontes; Brasília : Editora da UNB, 1990. p. 266-7).

Os juizes e tribunais eleitorais também se encontram investidos da competência administrativa conhecida como "poder de polícia", atribuição que exercem, inclusive de ofício, notadamente para corrigir de pronto abusos no exercício do direito de propaganda eleitoral por partidos e candidatos (Código Eleitoral, art. 249) e para, durante o procedimento de votação, coibir atos atentatórios à liberdade do voto (Código Eleitoral, arts. 139-41 ).

O poder de polícia da Justiça Eleitoral não resulta diretamente da Constituição, mas é inerente a este ramo do Poder Judiciário da União, e se explica pela doutrina dos "poderes implícitos", construída pelo direito constitucional norte-americano, segundo a qual no âmbito de um poder devem ser considerados abrangidos, como partes integrantes, os meios necessários ao seu exercício (cf. GARCIA, José Carlos Cal. Linhas mestras da Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 117-8; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 312, n. 379-XI). Nos dizeres de Joel José CÂNDIDO, "no exercício do Poder de Polícia a Justiça Eleitoral age como Justiça-Administração Pública, regulando, controlando e contendo os excessos no exercício da propaganda, em nome do interesse público" (Direito eleitoral brasileiro. 6. ed. Bauru : EDIPRO, 1996, p. 149).

Decidiu o TSE, no Acórdão n. 220 (JTSE, v. 6, n. 3, p. 11), que, havendo desobediência à ordem do juiz eleitoral, no exercício do poder de polícia, fica ele impedido de, no processo criminal conseqüente, atuar como julgador. Tal situação demonstra que por vezes se torna problemática a função híbrida de juiz eleitoral: atuando como administrador, pode ficar impedido para atuar como órgão jurisdicional.

Por igual, exercem os juízes eleitorais competência administrativa quando, tomando conhecimento de quaisquer das causas de cancelamento da inscrição eleitoral (Código Eleitoral, art. 71), instauram ex officio procedimento de exclusão do eleitor (Código Eleitoral, art. 74).

Como a exclusão do eleitor se faz, no caso, mediante um processo, com amplo direito de defesa, culminando com "sentença" de cancelamento da inscrição (Código Eleitoral, arts. 77-78), poder-se-ia pensar que se trata de exercício de jurisdição. Mas a jurisdição, como demonstrou Pedro ARAGONESES (Processo y derecho procesal. Madrid : Aguilar, 1960, pp. 12 e segs.), é "heterocomposição", isto é, forma de resolução dos conflitos por intervenção de um terceiro (não-parte), e de forma imparcial (desinteressada). Quando a parte que instaura o processo é a mesma que o julga, a resolução do conflito é "partia!" (por quem é parte) e, por conseqüência, "parcial" (há interesse do instaurador no resultado), o que constitui a chamada "autotutela processualizada", que de semelhança com a heterocomposição judicial mediante processo só tem a forma dialética da cognição, por teses e antíteses, prova e contraprova, e síntese final (julgamento). No caso referido - exclusão de eleitor -, o juiz eleitoral funciona como instância administrativa, ao passo que o Tribunal Regional Eleitoral, se houver recurso, atuará como instância de controle jurisdicional, na forma do art. 5°, XXXV, da Constituição Federal. Bem por isso afirma José Maria Rosa TESCHEINER: "Jurisdição implica, pois, heterorregulação: regulação de relações estranhas ao julgador; não de relações de que seja parte" (Elementos para uma Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993. p. 71 ).

Ao lado dessas atividades administrativas, há atividade jurisdicional contenciosa nos âmbitos criminal e não-criminal.

No âmbito criminal, as atividades jurisdicionais eleitorais são aquelas desenvolvidas mediante provocação, em regra por ação penal pública (denúncia) do Ministério Público Eleitoral (Código Eleitoral, art. 355), ou, em caso de omissão deste, ação penal privada subsidiária (queixa) do ofendido (CF, art. 5°, LlX), instrurda com elementos informativos da ocorrência de crime eleitoral, para aplicação de sanção penal ao criminoso. Aqui, há conflito de interesses entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do acusado, que deve ser solucionado pelo órgão jurisdicional, estranho a tal conflito.

No âmbito não-criminal, a atividade jurisdicional eleitoral desenvolve-se para aplicação de sanções não-penais, devendo a jurisdição ser provocada por "ação", que pode ser pública (o que nos textos legais é denotado pela atribuição de legitimidade concorrente ao Ministério Público Eleitoral) ou privada (aqui o interesse defendido é exclusivamente privado, pelo que o Ministério Público não tem legitimidade concorrente).

Há ações eleitorais públicas, para as quais há vários legitimados, inclusive o Ministério Público, e que visam à aplicação de sanções eleitorais não-penais, sem que da decisão resulte proveito especificamente para o autor da ação, visto que não está a disputar, com a parte contrária, determinado bem da vida. Entre inúmeros exemplos, tem-se a "ação de impugnação de mandato eletivo" (CF, art. 14, § 10), a "ação de impugnação de pedido de registro de candidatura" (LC n. 64, de 1990, art. 3°), a "ação de investigação judicial eleitoral" (CF, art. 14, § 9°; LC n. 64, de 1990, art. 22), o "recurso contra diplomação de candidato" (Código Eleitoral, art. 262). Nesses casos, embora não haja previsão legal expressa, é certo, por imposição dos princípios, que havendo desistência da ação pelo seu autor originário, o Ministério Público ou outro legitimado poderia substituir o desistente, como se passa com a ação popular (Lei n. 4.717, de 1965, art. 9°) e a ação civil pública (Lei n. 7.347, de 1985, art. 5°, § 3°).

A "ação de impugnação de pedido de registro de candidatura" (LC n. 64, de 1990, art. 3°), segundo Joel José CANDIDO, leva à instauração de "...processo de jurisdição contenciosa, onde se opera a coisa julgada, razão de ser da exigência de advogado habilitado representando os partidos ou candidatos" (Direito eleitoral brasileiro. 68 ed. Bauru : EDIPRO, 1996, p. 124), mas ressalva ele que "a questão, porém, não é pacífica na doutrina e na jurisprudência" (p. 124). Parece-me correta esta posição. A jurisprudência do TSE, todavia, tende a manter posições pragmáticas já consolidadas, muita vez sem maior consistência teórica. Assim, recentemente decidiu que "o candidato pode impugnar pedido de registro, mas não tem legitimidade para recorrer da sentença sem assistência de advogado" (Acórdão n. 13.123, JTSE, v. 5. n. 2, p. 300). E em outra oportunidade assentou que o delegado de partido tem legitimidade e capacidade postulatória para impugnar pedidos de registro de candidatura em nome do partido que o credenciou (Acórdão n. 12.735, j. 24.09.92, JTSE, v. 5, n. 1, p. 230).

Sustenta João Batista de Oliveira ROCHA ("Direitos eleitorais indisponíveis", in REVISTA DE DIREITO PÚBLICO, v. 68, pp. 80-4), a meu ver com razão, que os direitos de votar e ser votado são indisponíveis, pelo que, alegada a inelegibilidade do candidato em impugnação de registro de candidatura, ou em recurso contra a sua diplomação, não é admissível a desistência da impugnação ou do recurso. Aliás, segundo este mesmo autor, o chamado "recurso contra diplomação de candidato" (Código Eleitoral, art. 262) é verdadeira ação, por não existir decisão de mérito anterior, afastada assim a incidência do art. 501 do Código de Processo Civil.

Também há ações eleitorais privadas, como é o caso da "ação de direito de resposta" (Lei n. 9.100, de 1995, art. 66). Aqui, a sanção se dá em proveito exclusivo do autor, no que a ação privada difere das ações eleitorais públicas. Também neste grupo se incluiriam todas as ações, deflagradas por partido(s) ou candidato(s) contra outro(s), para a disputa de determinado bem da vida. Tem-se exemplo no caso de um candidato disputar, com outro, a utilização de determinado número ou apelido para concorrer às eleições.

Existe uma série de situações problemáticas, no âmbito da Justiça Eleitoral, que não se ajustam á moldura da jurisdição contenciosa, por não haver lide, nem aplicação de sanções; nem ainda se enquadram na moldura do ato administrativo, porque são resolvidas pelo juiz (ou tribunal), como órgão imparcial do Estado, e não como administrador (parte). É. o caso, por exemplo, do processo de alistamento eleitoral (Código Eleitoral, arts. 42-5), dos processos de registro de candidatos nos quais não haja impugnação (Código Eleitoral, arts. 87-102), do pedido de recontagem de votos, de competência das Juntas Eleitorais (Lei n. 9.100, de 1995, art. 28) e de um sem-número de situações. Cuido que há, aqui, exercício da jurisdição dita voluntária.

Correntemente, conceitua-se a jurisdição dita voluntária como "administração pública de interesses privados" (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo et alii. Teoria geral do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 149-52; TESHEINER, José Maria Rosa. Jurisdição voluntária. São Paulo: Aide Editora, 1992, p. 40-54). Tal concepção, contudo, está aferrada à (de)formação "civilista" ou "privatista" dos nossos processualistas, que tomam como paradigmas de seus estudos apenas os modelos de direito privado, deslembrando-se do direito público (no qual se situa o direito eleitoral). Parece-me, portanto, correta a posição de Ovídio A. Baptista da SILVA, que critica tal concepção privatista de jurisdição voluntária. Para o processualista sul-rio-grandense, haverá jurisdição sempre que o juiz se pronunciar como órgão imparcial do Estado, estranho aos interesses em jogo, pouco importando a natureza desses interesses. Dai que a atividade por ele desenvolvida na "jurisdição voluntária" é tipicamente jurisdicional. A jurisdição dita voluntária distinguir-se-ia da contenciosa pelo fato de que na primeira não há jurisdição declarativa de direitos, que é responsável pela formação da coisa julgada na segunda, mas sim relevância da eficácia constitutiva da sentença, em detrimento da eficácia declaratória (Curso de processo civil. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 1987, v. I, p. 29-36). Nessas condições, interesses púbicos, como os tutelados pelo direito eleitoral, podem ser administrados pelos órgãos judiciários, o que ocorre no caso brasileiro, configurando-se caso típico de jurisdição voluntária, a despeito da restrição defendida pela doutrina tradicional.

As idéias que vêm de ser expostas prestam-se, a meu ver, para a resolução de problemas práticos, de forma harmoniosa com a Constituição e com os princípios processuais. Busquemos, como teste, aplicá-las à problemática situação a seguir exposta.

Um dos assuntos mais tormentosos em época de eleições é o que diz respeito à propaganda eleitoral. Pode ela ser criminosa (Código Eleitoral, arts. 322-37), caso em que a sua repressão se dará já mediante o exercício de poder de polícia, com a tomada incontinente pelo Juiz Eleitoral, inclusive ex officio, das medidas inibitórias apropriadas, em ordem a fazer cessar a sua continuação; já pela via penal, para aplicação de sanções penais, mediante denúncia do Ministério Público Eleitoral (Código Eleitoral, art. 355) ou, em caso de omissão, mediante queixa subsidiária (CF, art. 5°, LIX). Mas a propaganda eleitoral pode ser apenas irregular (Código Eleitoral, arts. 240-3; Lei n. 9.100, de 1995, arts. 511 54, 55, 64, 89, entre outros). Neste último caso, também se legitima o exercício do poder de polícia da Justiça Eleitoral, para cessação imediata da propaganda, sem prejuízo das sanções não-penais, como, no regime da Lei n. 9.100, de 1995, multas que vão de 5.000 a 20.000 UFIRs, inclusive com duplicação da penalidade em caso de reincidência, até a suspensão das transmissões, em caso de a infratora ser emissora (Lei n. 9.100, de 1995, arts. 59 e 64, § 1°, in fine).

Cuido que, em se tratando de propaganda irregular, o juiz eleitoral só pode atuar ex officio no exercício de poder de polícia, para fazer cessar desde logo a propaganda, situação que reclama tutela urgente. Em caso tal, não há prévio devido processo legal (CF, art. 5°, LlV). A cognição judicial será sumária, sem forma nem figura de juízo, quase que coincidindo com a execução das medidas cabíveis. Assim, se está sendo veiculada propaganda em bem do Poder Público (lei n. 9.100, de 1995, art. 51 ), cabe ao juiz determinar a sua cessação, mediante as providências práticas adequadas, inclusive intimando os responsáveis para se absterem do seu prosseguimento, de tudo sendo lavrado auto circunstanciado. Aos eventuais prejudicados caberá depois, mediante a alegação de excesso de poder de policia, recorrer ao Judiciário (CF, art. 5°, XXXV).

Observa, com propriedade, Vicente GREGO FILHO (Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Ed. Saraiva, 1989), discorrendo sobre a execução dos atos administrativos, que em geral "a decisão executória não se confunde com a execução mesma, que é o fato da realização do direito por meios materiais ou jurídicos" (p. 97), mas ressalva que "às vezes, especialmente nas atividades relacionadas com o poder de polícia, sucedem-se imediatamente o ato executório (quiçá verbal) e os atos materiais de execução" (p.99).

Todavia, para aplicação das pesadas multas não-penais, previstas na legislação eleitoral (v.g., art. 64, § 1°, da lei n. 9.100, de 1995), não é correta a instauração ex officio pelo juiz do processo respectivo - como dá a entender, numa análise literal, o caput do art. 65 da lei n. 9.100, de 1995. Se o processo for instaurado pelo juiz motu proprio mediante despacho ou portaria, perderá a sua natureza jurisdicional, porque o instaurador será o próprio julgador, carente de imparcialidade. Como dizia BÚlGARO, não há judicium (processo jurisdicional) sem estas três pessoas - autor, juiz e réu. O princípio da imparcialidade da jurisdição (seja ela contenciosa ou voluntária) impõe como solução a remessa pelo juiz dos elementos que tiver ao Ministério Público Eleitoral. A este caberá, mediante petição inicial fundamentada, com indicação de provas e requerimento de citação do(s) réu(s), provocar a jurisdição. Assim ficará preservada a imparcialidade do órgão julgador e a jurisdicionalidade do processo.

Tratando da imparcialidade como característica distintiva da jurisdição, diz José Maria Rosa TESCHEINER: "A imparcialidade deve ser entendida no sentido: a) de que existam partes, um autor e um réu; b) que o juiz não seja uma delas, pois ninguém é juiz em causa própria (Nemo judex in rem suam); c) que o juiz seja 'independente', isto é, não subordinado nem ao autor nem ao réu, o que implicaria, em última análise, a transformação de uma das partes em juiz" (Elementos para uma Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993, p. 71). A partir daí, afirma o mesmo autor que o processo penal inquisitório, que já não mais existe no Brasil (GF, art. 129, I) caracteriza-se como 'função de administração da justiça', sem caráter jurisdicional; e que a jurisdição penal só é possível porque se 'parcializou' o Ministério Público, artifício pelo qual se garantiu a imparcialidade do julgador (op. cit., p. 72).

O particular - candidato ou partido - não tem, a meu ver, "ação" seja para provocar o exercício do poder de polícia dos órgãos da Justiça Eleitoral, seja para a imposição jurisdicional de multa não-penal pelos mesmos órgãos, nos casos de propaganda irregular. No primeiro caso, porque a atividade é administrativa, e não jurisdicional; no segundo, porque a multa eventualmente imposta não reverterá em seu beneficio, mas é destinada ao Fundo Partidário (Lei n. 9.096, de 1995, art. 38, I). O de que dispõem os interessados é apenas o direito constitucional de "petição" ou "representação" aos Poderes Públicos (CF, art. 5°, XXXIV, "a"), para provocar a atuação seja do Juiz Eleitoral, seja do Ministério Público Eleitoral. Assim decidiu o TRE/SC no Acórdão n. 14.481 (Ementário, v. 1, n. 1, p. 212). Já o arquivamento imotivado da representação ou a omissão abusiva da autoridade em apreciá-la são corrigíveis mediante mandado de segurança (MlRANDA, F. C. Pontes de. Comentários à Constituição de 1967.3" ed. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1987, tomo V, p. 630; MELLO FILHO, José Celso de. Constituição federal anotada. São Paulo: Ed. Saraiva, 1984, p. 370). Portanto, a meu ver, negaram vigência ao art. 5°, XXXIV, "a", da Constituição, os Acórdãos 14.124 e 14.191 do TRE/SC (Ementário, v. 1, n. 1, p. 53 e 191 ), que entenderam não ter o cidadão legitimidade para provocar mediante representação os órgãos da Justiça Eleitoral, com o objetivo de ser aplicada sanção pecuniária por propaganda eleitoral irregular. Para "representar", não só o cidadão, mas também os indivíduos não-cidadãos estão legitimados; o que não há, no caso em tela, é o direito de "ação" do cidadão, como tampouco há, a meu ver, "ação" de candidato, partido ou coligação: só o Ministério Público Eleitoral tem "ação", como antes se referiu.

Enfim, deve-se observar que, diferentemente do que ocorre na jurisdição civil ou penal, o processo eleitoral pode mudar de natureza no seu curso. Um exemplo seria o processo de exclusão de eleitor, instaurado ex officio pelo juiz eleitoral (Código Eleitoral, arts. 74, 77 e 78). Tem-se ai um processo administrativo, e não jurisdicional. Com a exclusão do eleitor e a sua inconformidade, materializada mediante a interposição de recurso contra a decisão que determinou o cancelamento de sua inscrição eleitoral, nasce o conflito de interesses entre o Estado e os prejudicados pela decisão (eleitor e o partido a que eventualmente filiado). O Tribunal Regional Eleitoral que julgar o recurso exercerá jurisdição contenciosa, ao controlar o ato administrativo do juiz eleitoral (CF, art. 5°, XXXV). Outro exemplo é a diplomação do candidato. Não havendo impugnação ao registro do candidato, nem investigação judicial eleitoral (esta cabível até a diplomação), o processo terá sido de jurisdição voluntária - sem lide, mas conduzido imparcialmente pelo juiz. Todavia, interposto recurso contra a diplomação do candidato (Código Eleitoral, art. 262), o processo, de jurisdição voluntária, transforma-se em processo de jurisdição contenciosa. Com o pedido de recontagem de votos (Lei n. 9.100, de 1995, art. 48), ocorre o mesmo. A Junta Eleitoral o aprecia, no exercício de jurisdição voluntária. Interposto recurso ao Tribunal Regional Eleitoral, instaura-se instancia jurisdicional contenciosa.

A propósito do procedimento de recontagem de votos, assim se manifestou o Min. Sepúlveda PERTENCE, no TSE: "Se algum erro de direito ou de fato na recontagem for cometido, e algum candidato perder o seu diploma, terá, aí sim, se lhe abrirá [sic] a via jurisdicional do recurso contra a diplomação dos outros, para discutir a validade do novo resultado, Até agora, o que se decidiu foi refazer um procedimento administrativo" (JTSE, v. 4,n. 3, p. 20). Em perspectiva mais ampla, parece-me correta a assertiva, exceto no tocante à natureza do procedimento de apuração dos votos, que, a meu ver, é de jurisdição voluntária, e não administrativo. As diferenças são patentes. Primeiro, o procedimento de apuração dos votos é presidido por órgãos judiciários eleitorais (Juristas Eleitorais), estranhos aos interesses sobre que versam sua atividade, e por isso atuando imparcialmente, o que não ocorre com a função administrativa, em que o administrador age de forma parcial, a despeito de impessoalmente. Segundo, as Juntas Eleitorais, na apuração, limitam-se a aplicar as regras legais e regulamentares ao caso concreto, ao passo que o administrador busca não a aplicação da lei ao caso concreto, mas a realização do bem comum, segundo o direito objetivo (cf. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987, v. I, p.28-9).

A guisa de fechamento das presentes reflexões, pode-se concluir que a incerteza reinante no trato do "processo eleitoral" deve-se principalmente à insuficiência de fixação teórica da natureza dos vários procedimentos e ações existentes, colocados indistintamente sob o largo rótulo "processo eleitoral", ao qual se vão aplicando, sem critério, princípios entre si incompatíveis.

Urge pois que, partindo-se do exame dos procedimentos e ações eleitorais, tal como postos na realidade normativa se inicie um trabalho de descrição e discriminação teórica, para uniforme aplicação dos princípios processuais.

Não é satisfatório que o direito eleitoral, que é antes de tudo "processo eleitoral", continue no atraso teórico em que se encontra. Enquanto a Justiça Eleitoral brasileira se põe na vanguarda pela informatização, o "processo eleitoral" - esse outra ainda desconhecido - fica, teoricamente, na retaguarda.

Juiz Efetivo do TRESC. Juiz Federal. Mestre em Direito (UFSC) e Doutorando em Direito (UFSC). Professor do Curso de Mestrado em Direito da UNIVALI (Itajaí).

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 4, n. 1 (jan./jun. 1997).

 

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