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A justiça social como norma constitucional

Por: Sérgio Luiz Junkes

1 Introdução

O Brasil é um país de contrastes econômicos e sociais. Enquanto determinadas regiões e setores brasileiros desfrutam de grande desenvolvimento econômico e social, a maioria da população convive em meio à miséria, à falta de serviços públicos adequados e à míngua, até, de perspectivas de vida. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em junho de 2005, o Brasil apresenta a segunda pior distribuição de renda do mundo. Perde apenas para o país africano de Serra Leoa. Segundo o mesmo instituto, em 2003, apenas 1% dos brasileiros mais ricos detinham uma renda equivalente aos ganhos dos 50%.1

Em razão destes dados impressionantes é que tanto a imprensa, em suas matérias, como as agremiações políticas, por seus discursos e ideários, identificam “justiça social” como expressão atrelada à mudança deste paradigma. A justiça social, de certo modo, soa, intuitivamente, como uma exigência ética de uma sociedade consciente de que todo ser humano deve ser respeitado em sua dignidade e também poder desfrutar do bem-estar proporcionado pelos esforços coletivos. Contudo, dada a importância do tema e pelo fato de o sistema político-institucional responsável, em sentido amplo, em gerar a (in)justiça social, ser estabelecido a partir do modelo jurídico existente, mostra-se apropriada uma investigação a respeito, pela perspectiva da Ciência Jurídica. Afinal, a “justiça social” é apenas objeto de retórica ou apresenta-se como um direito estabelecido pelo ordenamento jurídico brasileiro? Esse, precisamente, constitui o objetivo geral deste trabalho.

A investigação da temática centra-se apenas no plano teórico-normativo. Por opção metodológica, o presente estudo jurídico centrou-se na Constituição da República Federativa do Brasil, doravante denominada apenas de Constituição, em face de que é tal lei que, da base do ordenamento, fixa os alicerces de todo o sistema jurídico, ao mesmo tempo em que estabelece a sua conjugação com o social, o econômico, o cultural e o político.

2 Sistema normativo aberto: princípios e regras

Antes da tentativa de fixar os delineamentos jurídicos da justiça social, faz-se necessária uma breve investigação do sistema normativo brasileiro pelo viés da moderna teoria constitucional contemporânea. A norma jurídica –entendida como proposição vinculativa institucionalizada, que estatui uma hipótese à qual imputa uma conseqüência jurídica e que funciona como um critério de decidibilidade2 – constitui, em outros termos, gênero em relação às espécies dos princípios e das regras. Esses princípios se assemelham, em estrutura lógica, às denominadas normas programáticas, ao passo que as regras se apresentam sob a forma tradicionalmente atribuída às demais normas de Direito em um sentido mais amplo. Ou seja, as regras contêm a descrição de uma hipótese fática e a sua qualificação prescritiva, que pode ser amparada ou não por uma sanção. Os princípios, ao contrário, não se dirigem a uma hipótese específica da qual decorre certa conseqüência jurídica.3 Muito além disso, dirigem-se tais princípios a uma infinidade de hipóteses e situações possíveis em relação às quais impõem o favorecimento de determinado valor. Em outras palavras, as regras são normas que impõem, permitem ou proíbem determinado ato, o que pode ou não ser cumprido. Em um caso concreto não deixam qualquer margem para solução, que não no exato terreno das suas prescrições. Já os princípios são mandados de otimização, ou seja, normas que ordenam algo que deva realizar-se na maior medida possível, conforme as possibilidades jurídicas e fáticas existentes.4 Isto é, a aplicação de cada princípio submete-se aos condicionamentos da realidade e às contingências resultantes do convívio eventualmente conflitante com outros princípios. O conflito entre princípios, aliás, resolve-se pelo critério do maior peso axiológico, o que permite um equilíbrio entre os valores preponderantes em determinado tempo e espaço e os interesses em jogo. No caso das regras, a sua convivência é antinômica,5 isto é, excluem-se segundo o critério da validade.6

As duas grandes características dos princípios, ou seja, o seu alto grau de abstração e sua carga axiológica, por outro lado, possibilitam que a Constituição tenha um conteúdo material, na medida em que representa uma ordem objetiva dos valores sociais proeminentes, ou seja, sobre aqueles que são objeto de consenso no meio social.7 Conseqüência disso é que a concepção jurídica material de Constituição deve ser captada a partir do aspecto normativo em conexão com a realidade social, esta que por sua vez lhe fornece o conteúdo fático e o sentido axiológico.8 Assim, concebe-se a Constituição como um complexo de regras e princípios de maior força hierárquica dentro do ordenamento jurídico – cujo conteúdo é a conduta humana motivada pelas relações sociais – que tem por fim a realização dos valores sociais proeminentes por mrio da organização e estruturação do poder político pela definição de competências de seus órgãos e dos seus limites, e da fixação dos direitos humanos fundamentais.9

Por outro lado, a existência de regras e princípios é que permite a compreensão da Constituição como um sistema aberto, dinâmico, suscetível de uma constante mutação de acordo com as contingências da realidade e os valores emergentes em cada época.10 Isso só é possível em razão da alta abstração e carga axiológica dos princípios. Em primeiro lugar, porque os princípios cumprem uma função normogenético-sistêmica, uma vez que, em face da sua referência aos valores, se põem como fundamento das regras e, assim, irradiam-se e imantam todo o sistema jurídico,11 conferindo coerência e unidade ao ordenamento. Em segundo lugar, porque o texto constitucional pressupõe que a sua operacionalização prática se dê por meio de processos jurisdicionais, procedimentos legislativos e administrativos e iniciativas dos cidadãos.12

Em resumo, para os fins deste trabalho, princípios são espécies de normas jurídicas desprovidas de sanção, cujos preceitos são dotados de alto grau de abstração e carga axiológica e passíveis de uma otimização de acordo com as condições fáticas e jurídicas (estas últimas são decorrentes de eventuais conflitos com outros princípios). Normas que são, os preceitos contidos nos princípios vinculam imperativamente tanto o comportamento público como o privado.13

Cabe indagar: trata-se a justiça social de um princípio jurídico? É o que será pesquisado nos próximos capítulos.

3 Justiça social e Constituição

Consta do Preâmbulo da Constituição que a justiça é um dos valores supremos da sociedade, tal qual a harmonia social e a liberdade. Segundo Gebran Neto, apesar de destituído de grande concretude, o Preâmbulo presta-se como norte interpretativo de todo o texto constitucional.14 Daí resulta a importância do valor justiça estar consagrado também em sede preambular. Por outro lado, o valor justiça, quando expresso em algum artigo da Constituição, costuma estar sempre associado à idéia de Justiça social. Nesses termos, o primeiro inciso do art. 3º da Constituição estabelece que a construção de uma sociedade que seja justa é um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Ao circunscrever a justiça ao espaço da sociedade, o texto legal refere, em síntese, que a promoção da justiça na sociedade é um fim do Estado brasileiro. Semanticamente, isso eqüivale a dizer que se constitui em meta da República Federativa do Brasil a promoção da justiça social.

A justiça social, com esta terminologia composta, está expressamente estatuída como um preceito jurídico nos arts. 170 e 193 da Constituição, nos capítulos que tratam, respectivamente, dos princípios gerais da atividade econômica e das disposições gerais da ordem social. Muito embora o ordenamento jurídico brasileiro não explicite categoricamente o conteúdo jurídico da expressão justiça social, tal pode ser obtido pela interpretação dos próprios dispositivos da Constituição, iniciando-se por aqueles já mencionados.

Segundo Paula,15 a justiça social tem o seu significado jurídico indicado no art. 3º da Constituição.

Na Constituição anterior, o conteúdo jurídico da justiça social era, de acordo com Bandeira de Mello, identificado com os princípios previstos no referido art. 160.16 A Constituição vigente também fixa a justiça social como finalidade, tanto da ordem econômica quanto da ordem social, e associa a sua consecução a alguns princípios. Por isso, para captar o atual significado jurídico emprestado à justiça social, recorrer-se-á ao mesmo raciocínio utilizado por Bandeira de Mello. Ou seja, o seu conteúdo jurídico pode ser densificado a partir dos princípios que lhe guardam de alguma maneira correspondência.

Inicialmente é possível destacar e decompor do caput do art. 170 da Carta Magna as seguintes locuções: ordem econômica, valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência digna, justiça social e princípios. Examinando-as da perspectiva do sentido em que são empregadas, observa-se que a expressão justiça social condiciona todas as demais. Ou seja, tanto a ordem econômica, a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa e a existência digna devem ser desenvolvidas para realizar a justiça social, de acordo com os seus ditames. Em outros termos, é a justiça social que conforma o fim da ordem econômica de assegurar existência digna a todos.17 Para tanto, ou seja, para que a Justiça social possa ser atingida, é necessária a observância de alguns princípios. Isso eqüivale a dizer que os princípios, previstos nos nove incisos do art. 170, também são vinculados à realização da Justiça social.

Portanto, sem a observância desses princípios – contidos nos nove incisos do art. 170, da Constituição – e da valorização do trabalho humano, da livre iniciativa e do asseguramento da existência digna a todos, princípios contidos no caput do mencionado artigo, não é possível, na ordem econômica, concretizar a justiça social. Conseqüência disso é que o cumprimento do teor daqueles princípios especificados no caput e nos nove incisos do art. 170 da Constituição, integra os componentes ou elementos da justiça social aplicáveis à ordem econômica.18 Disso decorre, de acordo com os meios léxico e teleológico de interpretação, que esses componentes fazem parte do conteúdo da Justiça social. A fim de melhor captá-lo, passa-se a estudar estes seus elementos mais pormenorizadamente. Nesse desiderato, será também empregado o meio sistemático de interpretação, pelo cotejo do art. 170 da Constituição com os demais dispositivos pertinentes do texto magno.

O princípio da valorização do trabalho humano – constante do caput do art. 170 da Constituição – denota que a ordem econômica estabelece a primazia do trabalho humano sobre o capital e os demais valores da economia de mercado. Disso resulta que a atividade estatal deve ser orientada à proteção de tal prioridade e à promoção, em um sentido amplo, dos valores sociais do trabalho.19 Tal consiste em fundamento não só da ordem econômica como da própria República Federativa do Brasil, conforme o art. 1º, IV, da Constituição. Além disso, de acordo com Cretella Júnior,20 constitui a valorização do trabalho humano pressuposto necessário também à promoção da dignidade humana e à geração de oportunidades de emprego.

A livre iniciativa representa a possibilidade de agir de determinada maneira, sem influência externa.21 Não deve visar apenas ao lucro e à realização pessoal do empresário. Conforme Afonso da Silva, para ser legítima, a livre iniciativa deve ser exercida no interesse da realização da justiça social, propiciando a existência digna de todos.22 A liberdade de iniciativa apresenta-se como uma premissa do desenvolvimento da atividade empresarial. Em consonância com os incisos IV e VII do art. 170 da Constituição, o desenvolvimento e a expansão da atividade empresarial também condizem com o fim da justiça social. Isso na medida em que favorece o crescimento econômico e a geração de riqueza, sem o que não se poderiam reduzir a miséria e as desigualdades sociais e regionais de uma maneira geral.23 Além de se constituir em base da ordem econômica, também se apresenta como fundamento e fim do Estado brasileiro, nos termos do art. 1º, IV, e do art. 3º, I, da Constituição.

A ordem econômica deve assegurar a todos existência digna, que implica que cada pessoa, indistintamente, de acordo com as exigências peculiares de sua natureza física, espiritual e política, deve poder dispor daqueles meios materiais necessários para viver de uma maneira confortável. Em outras palavras, a igualdade em dignidade rechaça as desigualdades profundas representadas pela pobreza absoluta, pela miséria.24

O imperativo de existência digna a todos, de que resulta a igualdade das pessoas em dignidade, pode ser ainda captado a partir do princípio fundante do Estado brasileiro, previsto no art. 1º, III, da Constituição, e dos direitos fundamentais individuais e sociais, insculpidos na Carta Magna, conforme arts. 5º, caput, 6º, 7º e 14º. A soberania nacional significa que a ordem econômica é pautada por um modelo de desenvolvimento nacional, autônomo, sem ingerências externas.25 Modelo esse que visa reequilibrar a posição de inferioridade das pessoas menos favorecidas econômica e socialmente.26

A propriedade privada constitui um dos alicerces da ordem econômica. Consiste no direito subjetivo conferido a uma pessoa de explorar com exclusividade um bem e de fazer valer esta faculdade contra outrem que queira a ela se opor. A propriedade privada é condicionada à sua função social. Disso decorre que deve ser respeitado o direito exclusivo de dono sobre determinado bem. Porém, exige-se que a sua utilização seja voltada ao bem-estar geral da sociedade,27 nos termos dos arts. 182, § 2º, e 186 da Constituição.28

O princípio da livre concorrência veda que o poder econômico seja exercido de maneira desmesurada e anti-social.29 Com base nessas premissas, todos devem ter assegurada a liberdade de concorrer no mercado econômico com seus serviços ou produtos. De acordo com o art. 173, § 4º, da Constituição, as condutas tendentes à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros configuram-se em modalidade de abuso do poder econômico.

A necessidade da defesa do consumidor reside no fato de que é ele geralmente o pólo mais fraco em uma relação de consumo, e, por isso, suscetível a sofrer toda sorte de abusos. Por isso, deve o Estado interferir nas relações de consumo, a fim de compensar esse desequilíbrio. A defesa do consumidor apresenta-se, assim, como um dos sustentáculos do equilíbrio da ordem econômica e como um direito fundamental, conforme consta do art. 5º, XXXII, da Constituição.

A defesa do meio ambiente também é um fator condicionante da atividade econômica, uma vez que dele depende a própria sobrevivência humana. Obstacula-se, destarte, a degradação ambiental que, por sua vez, traz reflexos negativos à qualidade de vida de todos. A atividade econômica deve desenvolver-se, assim, de modo a conservar equilibrado o meio ambiente, conforme exige o art. 225, caput e § 1º, da Constituição.

De acordo com Ferreira Filho,30 o desenvolvimento econômico não constitui um fim. Trata-se simplesmente de um meio para se atingir o bem-estar da sociedade. Dessa maneira, esse desenvolvimento deve ser razoavelmente dosado, de modo que possibilite a redução das desigualdades regionais e sociais. Com isto, tal como também estabelece o art. 3º, III, da Constituição, estar-se-á caminhando para gradualmente desonerar-se o sacrifício imposto aos setores mais pobres. Outros dispositivos convergentes com esse desiderato são aqueles previstos nos arts. 23, X; 43; 165, § 1o, e 174, § 1º, da Constituição.

A busca do pleno emprego é um princípio diretivo da ordem econômica que se contrapõe às políticas recessivas. Estabelece que ela deve ensejar o máximo aproveitamento de todos aqueles que estejam aptos a exercer atividades produtivas, respeitando as respectivas inclinações. A busca do pleno emprego vincula a ordem econômica a criar oportunidades de trabalho para todos viverem dignamente. Tal preceito, portanto, determina que a ordem econômica propicie a erradicação dos subempregos, como os de bóia-fria e de biscateiros.31 A plenitude do emprego, por outro lado, não se coaduna com a mera busca em termos quantitativos e com o indiscriminado postulado econômico da oferta e da procura. Implica, sim, que ao trabalho corresponda uma remuneração proporcional à sua participação na geração da riqueza, de conformidade com sua posição prioritária na ordem econômica.32 Aliás, a remuneração de trabalho deve ser suficiente a assegurar “existência digna” ao trabalhador, conforme o caput do art. 170 da Constituição.

O tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país justifica-se, de acordo com Ferreira Filho,33 pelo fato de que a sobrevivência delas é extremamente difícil no cenário de gigantismo empresarial. O tratamento constitucional favorecido a essas empresas, portanto, representa um mecanismo de equilíbrio necessário à ordem econômica.

Ao privilegiar a tutela da livre iniciativa, do trabalho e do pleno emprego, o mandamento constitucional relativo à justiça social, expresso no art. 170 da Constituição, quer se referir, ainda, a uma igualdade de oportunidades. Isso porque para que alguém consiga trabalho ou possa ser um empreendedor, é premissa lógica que sejam abertas portas nesse sentido. Ou seja, são necessárias determinadas condições para que tal possa ocorrer. Isso eqüivale a dizer que o art. 170, caput, do Texto Magno, assegura a igualdade de oportunidades a todos, tanto para trabalhar como para iniciar um empreendimento, vinculando a atuação fomentadora do Estado nessa direção.34

Usando-se o mesmo critério hermenêutico utilizado por Bandeira de Mello em relação à Constituição anterior, tem-se que todos os princípios contidos nos incisos e no caput do art. 170 da Constituição integram o conteúdo jurídico da justiça social.

O art. 193 da Constituição é o que vincula a justiça social à ordem social. Ao tratar desta, a Constituição harmonizou os seus princípios aos da ordem econômica. A justiça social é normatizada como um fim da ordem social. O primado do trabalho, por outro lado, constitui-se em elemento indispensável à sua realização. Por isso, compõe o conteúdo jurídico da justiça social. A expressão primado do trabalho coaduna-se com os princípios da valorização do trabalho e da existência digna ao ser humano, que fundam a ordem econômica. Em resumo, expressa-se a justiça social como um direito conferido à sociedade frente ao Estado nos arts. 3º, 170 e 193 da Constituição.

4 O princípio constitucional da justiça social

A partir da conjugação dos textos constantes nos arts. 3º,170 e 193 da Constituição e do estudo realizado acerca dos princípios deles colhidos, é possível propor a sistematização dos aspectos associados à noção jurídica da expressão “justiça social” em quatro grupos:

a) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da dignidade em favor de todas as pessoas;

b) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção do valor liberdade a todos os membros da sociedade;

c) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da equalização de oportunidades a todos;

d) grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da redução dos desequilíbrios sociais em favor dos membros ou setores mais inferiorizados da comunidade política.

Nos termos propostos, é possível distribuir-se os preceitos relacionados à justiça social contidos tanto no art. 3º e no art. 170, como no art. 193 da Constituição, em um dos quatro grupos citados. Muitos desses preceitos poderiam, talvez, figurar em mais de um grupo. Todavia, pretende-se aqui inscrevê-los respectivamente em um só deles, de acordo com a importância que cada preceito representa para a realização dos valores que distinguem cada agrupamento.

Os preceitos, para os fins propostos dessa classificação, referem-se, via de regra, àquelas expressões destacadas e decompostas a partir dos arts. 3º, 170 e 193 da Constituição. Os que forem doravante citados referem-se à Constituição. No grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da existência digna a todas as pessoas, podem ser alinhados, assim, os seguintes:

a) extraídos do art. 3º: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV);

b) do art. 170: valorização do trabalho humano, existência digna;

c) extraído do art. 193: primado do trabalho.35

No grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção do valor liberdade a todos os membros da sociedade, podem ser alinhados os seguintes:

a) do art. 3º: construir uma sociedade livre ... (inciso I);

b) do art. 170: livre iniciativa e livre concorrência (caput e inciso IV).

No grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da equalização de oportunidades a todos, podem ser alinhados os seguintes: extraídos do art. 170: “busca do pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País” (incisos VIII e IX).

No grupo de preceitos relacionados preponderantemente à garantia e à promoção da redução dos desequilíbrios sociais em favor dos membros ou setores mais inferiorizados da comunidade política, podem ser alinhados os seguintes:

a) extraídos do art. 3º: garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (incisos II e III);

b) do art. 170: soberania nacional, função social da propriedade privada, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente e redução das desigualdades regionais e sociais (incisos I, II, III, V, VI, VII).36

Destarte, reunindo-se os quatro agrupamentos e com base nos aspectos jurídicos realçados, tem-se que a justiça social, sob a perspectiva da Ciência Jurídica, consiste em um direito da sociedade de exigir do Estado que este atue de forma a garantir e promover, contínua e simultaneamente, a redução dos desequilíbrios sociais e a igualdade de todos os seus integrantes no que se refere à liberdade, dignidade e oportunidades

Resta agora precisar em que espécie normativa se enquadra o direito da sociedade de exigir do Estado a realização da justiça social. Tendo em vista o acentuado grau de abstração e a alta carga axiológica dos mencionados dispositivos constitucionais que tratam da justiça social, e a suscetibilidade de serem otimizados de acordo com as variadas e cambiantes condições fáticas e jurídicas, estes assumem um caráter principiológico. Melhor dizendo, o conjunto de tais artigos integra o conteúdo do que aqui se denomina de Princípio da Justiça social. O Princípio da Justiça social, portanto, é o que confere o direito à sociedade de exigir do Estado uma atuação vinculada à redução dos desequilíbrios sociais e comprometida simultaneamente com a garantia e a promoção da igualdade de todos os seus integrantes, no que se refere à liberdade, à dignidade e às oportunidades.

5 Considerações finais

A justiça social se situa, no ordenamento brasileiro, como um direito posto. Sob a forma de princípio constitucional, condensa, por meio de seu conteúdo, um verdadeiro feixe de direitos obtidos pela conjugação articulada de vários outros princípios contidos nos arts. 3º, 170 e 193 da Constituição. Em razão de sua natureza, estende-se a toda a estrutura e ao desempenho do ente estatal, tanto condicionando o exercício do poder, como a composição e o acionamento de suas instituições. Em face do seu caráter normativo-impositivo, é plenamente eficaz e imediatamente aplicável.

A consagração da justiça social como fonte consistente de direitos aos membros da sociedade não encontra sujeição à edição de qualquer outra norma infraconstitucional. Dessarte, o Princípio da Justiça social obriga, impõe, exige que todos órgãos estatais tenham a conduta pautada à realização da justiça social. Isso implica que todas as leis, decretos e os atos administrativos hão de vincular-se aos preceitos que integram o Princípio da Justiça social. O eventual descompasso do poder público no cumprimento do Princípio da Justiça social, seja por ação ou omissão, representa uma violação às normas constitucionais que lhe servem de substrato, e por isso reveste-se do vício da inconstitucionalidade.

Tal qual ocorre em relação a todo princípio expresso na Constituição, a violação ao Princípio da Justiça social constitui ofensa não apenas a um mandamento obrigatório, mas a todo um sistema de comandos. Contudo, uma vez que o Princípio da Justiça social capta a partir dos próprios fins perseguidos pelo Estado brasileiro e de determinados direitos fundamentais do ser humano, violá-lo representa uma das mais graves formas de inconstitucionalidade. Isso porque tal modalidade de inconstitucionalidade atenta contra todo o cerne do sistema constitucional brasileiro face à subversão dos seus valores cardeais e a corrosão da sua estrutura mestra.37

À guisa de conclusão e reflexão, tem-se que a superação do triste panorama econômico-social brasileiro passa, necessariamente, nos termos propostos, pelo estrito cumprimento do Princípio da Justiça social.

Referências bibliográficas

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PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social – revitalizando as regras do jogo democrático, p. 81 e 94.

Notas

1 Disponível em: <www.ipea.gov.br/SobreIpea/td_1000/microeconomia.htm> Acesso em 14 jun. 2005.

2 Conforme: FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, dominação, decisão, p. 123.

3 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 82.

4 Ibidem, p. 86.

5 Ibidem, p. 89, 139-147 e 524.

6 Ibidem, p. 88.

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 261.

8 AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo, p. 39.

9 Com base em: BASTOS, Celso Ribeiro. Teoria do Estado e ciência política, p. 120; AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 39.

10 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, p. 53, 56-57.

11 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual constitucional, p. 17.

12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.1127.

13 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 86, 186-210.

14 GEBRAN NETO, João Pedro. A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória, p. 134.

15 PAULA, Jônatas Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social, p. 39.

16 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social: In Anais da IX Conferência Nacional dos Advogados, p. 192-193.

17 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica, p. 240.

18 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição federal anotada, p. 1139.

19 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, p. 766.

20 CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos de Direito Constitucional, p. 220.

21 Ibidem, p. 222.

22 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 772.

23 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 354.

24 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 767.

25 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada, p. 1141.

26 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 767.

27 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 355.

28 Sobre a função da propriedade: Código Civil, art. 1.228, §§ 1º a 5º; Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, art. 2º.

29 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada, p. 1142.

30 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 354.

31 DANTAS, Ivo. Direito Constitucional econômico: globalização & constitucionalismo, p. 78

32 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo, p.775.

33 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 356.

34 PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social, p. 174.

35 Nesse sentido: art. 1º; III; 5º, caput; 6º, 7º e 14º da Constituição.

36 Nesse sentido: art. 23, X, da Constituição.

37 Com base em: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ato administrativo e direitos dos administrados, p. 88; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. In: Anais da IX Conferência Nacional dos Advogados, p. 193-194.

Juiz Eleitoral em Concórdia, SC.

O presente artigo é resultado de uma versão resumida e adaptada de um capítulo de Defensoria Pública e o Princípio da Justiça social, publicado em 2005 pela Editora Juruá, de Curitiba.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 12, n. 1 (jan./jun. 2005).

 

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