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Íntegra

A Justiça e a Mídia*

Por: Volnei Ivo Carlin

1 Introdução

O direito de informação reveste-se, em dias atuais, de agudas incertezas. É que as discussões a respeito são quase sempre dominadas pelas emoções, por considerações filosóficas e interesses mistificados, capazes de afastar a notícia do terreno adequado do justo. Léon Duguit1 reconhece ser esse sentimento infinitamente variável e permanente na natureza humana2.

É verdade que, nos países desenvolvidos, há uma reconhecida importância pelo Direito Constitucional ao direito à informação, sendo fácil perceber que a maior razão pela qual se protege o direito de informar é, precisamente, porque uma Sociedade será mais livre e democrática na proporção em que der oportunidade de acesso aos seus integrantes do que ocorre em seu próprio meio.

A atualidade oferece ilustrações das difíceis relações entre a mídia e a Justiça. Assiste-se, passivamente, a verdadeiras audácias da imprensa, sem que se saiba como reagir. De outra parte, a tentação em "brilhar" de certos "pequenos juízes"3 é atribuída malquerença ao tratamento com os homens da comunicação, projetando verdadeira ilusão coletiva. Tais desdobramentos ultrapassam os limites do bom senso ao direito, cuja idéia primeira deveria ser a interpretação de um sinal de evolução da democracia na busca de um novo e superior controle.

2 A ilusão da democracia direta

Que a imprensa critique a Justiça, sem desprezar seus postulados fundamentais e aqueles próprios da pessoa humana, é até concebível. Sob o ângulo da exteriorização da verdade é que se anseia ver as relações entre a Justiça e a ambigüidade do papel da mídia, dissipando mal-entendidos em cada uma dessas instituições do Estado de Direito.

2.1 A jurisdição de emoções

Vê-se, na mídia, por vezes; um verdadeiro diálogo entre advogados, cujo objetivo do bem comum da pesquisa da verdade é relegado das regras processuais. O jornalista de investigação contemporâneo quer ser, ao mesmo tempo, informante e julgador. As partes de um processo, consciente ou inconscientemente, estimulam a imprensa contra a Justiça, ou esta contra a imprensa, ao agrado de seus interesses, como se a democracia pudesse lhes oferecer duas instâncias para defesa.

Nota-se, então, uma mídia não mais satisfeita em só informar, mas que procura intervir diretamente no curso dos acontecimentos.

Na realidade, o espaço público procede mediante o equilíbrio entre um poder instituído e impulsionado por procedimentos, a Justiça instalada, e um outro poder, não instituído: a imprensa.

Necessário, pois, que cada qual permaneça em seu campo de ação, sem incorrer no crasso erro de desempenhar os dois papéis. Num affaire, por exemplo, cada um deverá bem identificar seu lugar4.

2.2 Transparência e verdade democrática

Essa vontade que os meios de comunicação têm de tudo dizer e tudo mostrar advém, sem dúvida, de uma concepção mal compreendida da transparência. Esta, numa democracia, não é só referente aos homens, mas, antes, aos seus comportamentos. Não raro, a imprensa transporta os juízes para fora do contexto profissional.

A democracia, como pressentira Tocqueville5, já em 1835, pode vir a acabar com a autoridade da pessoa pública, causando uma lamentável e perigosa confusão quando não for clara. Não se pode querer privatizar a palavra pública. A mídia tende a tornar mais sensível a fragilidade do discurso judiciário6.

Enfim, transparência significa, na essência, publicidade. E com esta se evita a crise de confiança e nasce a verdade democrática.

2.3 A invocação da ética profissional

A imagem que se dá ao conjunto do Judiciário é a de uma instituição desgastada. O próprio poder político o apresenta como passível de uma crise de legitimidade7. A falta de evidência e de clareza de sua nova missão constitucional o deixa vis-à-vis a sociedade, inadaptado.

Numa sociedade colocada em movimento, a adoção das regras do procedimento e do contraditório exige a aplicação de uma consciência éticas. Passada esta à imprensa, ela poderá constituir-se num instrumento magnífico do espírito público. A grande jogada será colocar a mídia a serviço dos interesses da Justiça, portanto.

A intervenção do legislador no domínio das liberdades fundamentais dos indivíduos, bem como da intimidade de sua vida privada é sempre delicada. Qualquer texto legal seria o fruto de um amadurecimento que permitiria esclarecer as escolhas do legislador acerca do árduo ofício de passar da ética ao direito de informar. Do ponto de vista prático, esta conscientização é urgente.

3 Imagens dos Tribunais

As dificuldades opostas nas relações entre a Justiça e a mídia não são exclusivas do Brasil. Elas aqui se complicam, diante de uma dificuldade suplementar resultante de uma cultura política nacional menos preparada que em outros países. E a solução depende de medidas específicas que dêem melhor qualidade à democracia9.

3.1 Autoridade moral e legitimidade política

A influência política dos juizes brasileiros resta marginal, ao contrário da Itália e França, onde é o último recurso a ser usado no caso de o Estado se apresentar corrompido.

É bem verdade que sua independência, hoje mais real do que há alguns anos, faz pensar na imagem do juiz do chamado sistema da common law e em sua legitimidade profissional confirmada, além de uma atuação transparente e neutralidade política reconhecidas10; A legitimidade política do magistrado depende também de uma autoridade moral no meio em que vive, hoje, mais forte do que aquela calcada nas prerrogativas de seu estatuto11.

O que se deve evitar é o confronto direto entre os juízes e a classe política, notadamente dos dirigentes econômicos. Marginalizando a Justiça e frustando seus juízes, política e materialmente, o Estado, evidentemente, reforça os movimentos populistas e as facções corporativistas.

3.2 A sentida falta de jurisprudência

A enorme cobrança do público, seja a partir da mudança de mentalidade ou da renovação de comportamentos, tem impulsionado o serviço judiciário a implantar outras características específicas12. É a busca da adaptação científica do Direito aos novos fatos, alertando a opinião pública quanto às informações habilmente orquestradas. Daí, no momento, o uso de expressões como "politique jurísprudentielle" e "politique législatíve"13.

Estamos distantes, em realidade, de construir uma sólida jurisprudência nesta área particularmente complexa, sendo que a evolução ainda está suscitando consideráveis conflitos.

3.3 Breves reflexões sobre a Justiça Eleitoral e a mídia

Nos últimos anos, consolida-se um intenso movimento de inovações nas atividades dos órgãos a que pertence a Justiça Eleitoral, em prol dos interesses político-eleitorais, como expressão da cidadania, e não dos Estados. Tudo isso torna mais viável a prática da democracia, permanecendo, qual nova sociedade, mais próxima do povo, com a realização de eleições não-manipuladas14.

Ao contrário do que vem destacado pelo Prof. Dalmo DALLARI(15), a Justiça Eleitoral, ao menos em Santa Catarina, não se apresenta frágil, condescendente e demorada. Ela se caracteriza pela presteza jurisdicional, seriedade e modelo informatizado, inserindo-se nessa tendência a publicidade ampla da Justiça, o que a distingue na nova ordem política de preservação dos direitos e garantias fundamentais. Portanto, não há urgência em qualquer reformulação nos procedimentos adotados.

Pois bem: é certo que o tema enfocado, pela audiência que hoje encontra, constitui uma interpelação permanente á consciência da mídia. Igualmente, não tem deixado de trazer uma colaboração ideológica a esse assunto predominantemente político.

Há um consenso universal sobre a necessidade de se promover e defender o direito ao voto, onde ninguém deve se furtar à batalha pelo futuro da democracia, como uma iniciativa providencial para permitir uma convivência humana pacífica, criando uma sociedade livre de dominações. E aí que a mídia, com a proteção das fontes e toda sua força, inteligência e liberdade pode galgar o seu espaço para evitar manipulações e dar sua original contribuição. O difícil, no entanto, é a fixação do justo ponto de equilíbrio entre o direito de informação (como expressão de liberdade) e as exigências de segurança pública ou individual (privacy).

4 Considerações finais

Sobre as realidades dos papéis da mídia e da Justiça, condição indispensável para se constituir uma civilização de perfil mais refinado, capaz de superar certos métodos rústicos na lida com as relações sociais e com referências do pluralismo democrático, as pessoas devem refletir seriamente.

Diga-se, na mídia, que a qualidade da ação administrativa e jurisdicional aparece, de mais a mais, em relação direta com a aptidão intelectual e profissional adquirida pelos componentes de seus quadros. É que o espírito do serviço público, contemporaneamente, prima pela famosa tolerância excessiva (tendência para o relaxamento - laxisme francês), dificultando uma tendência evolutiva em seu modo de operar.

Ademais, é possível observar, nessa matéria, que existem restrições muito amplas, capazes de causar, na praxis, certas dificuldades de interpretação nos tribunais, sobretudo porque há um forte elemento subjetivo na definição da natureza criminosa de alguns atos cometidos pela imprensa. E os tribunais têm a responsabilidade de identificar tais situações especificas Nessa dimensão, a expectativa da opinião pública, de formação não acadêmica, fica pendente, vinculada à regra de direito e a um certo tipo de civilização. 

Notas

1 DUGUIT, Léon. Traité du droit constitutionnel. 2 ed. Paris. Biccard, 1921. v. 1, p.8.

2 Para estudar a noção do justo e do injusto, em diversas fases da História, veja-se MARINHO, Inezil Penna. O direito natural como fundamento de uma teoria do direito justo e os pressupostos de uma sociedade justa. Instituto de direito natural. Brasília, 1979.

3 Em França, a expressão "petits jugues" denomina os profissionais que aparecem na mídia, fazendo "explodir" a verdade dos fatos, porque preparados emocional e intelectualmente. O fenômeno não ocorre, aliás, em outros países, para quem, trazendo Montesquieu, "Ia noblesse de robe" é insuficiente para cobrir certos disparates profissionais Um bom exemplo, ocorrido há poucos dias, é o do ex-Presidente Collor, no sentido de que ele pudesse voltar a candidatar-se a Presidente, apesar da cassação de seus direitos políticos, por 8 anos, pelo Congresso Nacional. Oportuna a leitura, também, da obra de Richard Sennett, O declínio do homem público, São Paulo Companhia das Letras, 1989.

4 Vide referência no específico, de Felipe Augusto de Miranda Rosa, Juiz de Direito/Rio, in: Revista da AMB, n 13 p 26-32, dez 1975

5 TOCQUEVILLE, Alexi de La démocratie en Amérique Paris. Garnier Flammarion, t. II, p. 1 C.

6 Consulte-se, sobre o assunto. CARLIN, Volnei Ivo Deontologia Jurídica. ética e justiça. 2. ed. Florianópolis Obra Jurídica, 1997. p 148-152

7 ACKERMANN Werner et BASTARD Benoil Innovation et gestion dans l' Instituition Judiciaire L G D. J , Collectiom Droit et Société, v 6, p 92-101.

8 CARLIN, Volnei Ivo. op. cit., p 127 e segs.

9 Existe ampla literatura, velha e nova, sobre o tema. Citam-se as obras de Celso Fernandes CAMPILONGO. O Judiciário e a democracia no Brasil. In: Revista USP - Dossiê Judiciário, n. 21, 1994 p 116-125 e Direito e democracia São Paulo. M Limonad,1997 p 141

10 Para uma melhor reflexão desse tema, com referência ao Brasil, ver o lúcido trabalho do Jornalista Marcílio MEDEIROS FILHO, Os Juizes e a política, in: O Estado, 21-22 de fevereiro de 1998, Secção Opinião, p. 2

11 CANIVET, Georges. Droitetsociété 1992, 20-21, p. 141.

12 Tribuna da Magistratura. A PM, n. 64, 1995, p.6.

13 ATIAS, Christian e LlNOTTl, Didier Le mythe de radaptation du droit au fait Recueil Dalloz. 1997, Chronique, XXXIV, p 251-258

14 CARLIN, Volnei Ivo Eleições como mecanismo político-jurídico da democracia. In: Jurisprudência Catarinense: v. 54, p 39-45

15 DALLARI, Dalmo de Abreu O poder dos juízes. São Paulo Saraiva, 1996, p. 125-132. 

* A palavra "Justiça" é obviamente usada, aqui, em sentido lato. Como escreve Shetreet, "a atividade jurisdicional tem três componentes principais: o componente administrativo, o processual e o substancial" (in Cappelletti, Mauro. Juizes Irresponsáveis? Porto Alegre S A. Fabris, 1989. p. 17).

Doutor em Direito. Pós-Doutor em Éticas Públicas. Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UFSC. Juiz de Direito e do Tribunal Regional Eleitoral.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 5, n. 1 (jan./jun. 1998).

 

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