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Íntegra

A experiência do voto facultativo como expressão da cidadania

Por: Francisco Xavier Medeiros Vieira

1 Introdução

"O cidadão que se ergue, propugnando contra o poder delirante, a liberdade extorquida, não representa uma vocação do seu egoísmo: exerce verdadeira magistratura" (Ruy BARBOSA, Novos discursos e conferências, 96).

A dimensão conceitual de cidadania transcende, em seu conteúdo substantivo, o sentido lexicográfico que os dicionaristas lhe emprestam. Para avaliar sua verdadeira extensão bastaria dizer que ela se confunde com democracia, sem a qual não seria lícito falar em soberania popular, nem em distribuição eqüitativa de poder ou em liberdade do processo eleitoral. Cidadania - alguém cunhou -"é a palavra-síntese dos novos tempos". Nas sociedades modernas, como enfatizou o insuperável RUY, cidadão é o envoltório protetor do indivíduo (Coletânea literária 320). Penso, contudo, não ser bastante o gozo dos direitos civis e políticos e a contra partida dos deveres para com o Estado, num quadro de desestruturação social, em que a base da pirâmide é miserável e inculta, sem voz nem vez, vítima histórica da exploração, da injusta distribuição da renda, sem acesso à educação, à saúde, ao saneamento básico.

Depois da frustração da Revisão Constitucional, pesa hoje sobre os políticos e as instituições do Estado a execração nacional. O Executivo e o Legislativo enfrentam pesadas críticas. O Judiciário, um Poder praticamente desconhecido, está sendo questionado. A sociedade, atenta e insatisfeita, exige de todos um comportamento ético. Cobram-no, os cidadãos, dos que exercem função pública e das demais categorias, profissionais liberais, empresários, trabalhadores.

Guardadas as proporções, assim como a idade média foi "a longa noite dos dez séculos", as últimas décadas têm sido de obscurantismo político propício ao alheamento da cidadania.

É que não basta votar e ser votado, nem mesmo participar: a Democracia exige mais - uma postura político-administrativa retilínea, eticamente irrepreensível.

Mas a cidadania igualitária só pode ser afirmada como resultado e produto da tomada de consciência de cada um.

2 Cidadão adolescente, analfabeto e idoso

É permitido açoitar um cidadão romano que nem sequer foi julgado? (At 22-25).

Recolhido à cidadela para ser açoitado e submetido à tortura, por ordem do tribuno Cláudio LlSIAS que, ao saber de sua cidadania romana logo o livrou, indagou PAULO: "É permitido açoitar um cidadão romano que nem sequer foi julgado?"

É preciso, como o Apóstolo, invocar freqüentemente o privilégio num País em que, nada obstante assegurá-lo a Carta Política, se o nega a milhões de párias, marginalizados, esfomeados, doentes ...

Numa democracia o único instrumento válido de mudança da estrutura social é o sufrágio livre, consciente, soberano.

Hoje, o cidadão-adolescente, a partir dos 16 anos de idade, assim também os analfabetos e os da terceira idade, com mais de 70, têm a faculdade do voto: são cidadãos qualificados.

O voto facultativo é a escolha livre, a opção consciente por excelência. Ninguém vai à Seção Eleitoral para anular seu voto ou votar em branco. Já o voto obrigatório é um retrocesso democrático que só interessa aos mercadores da consciência, aos que aviltam a liberdade, valor maior do ser humano.

Por isso, todo nosso esforço deveria ser canalizado para conscientizar a juventude, particularmente os adolescentes, no sentido de que, em grande parte, está em suas mãos a exigência de um comportamento ético na prática político-partidária.

Ensinou CHARBONNEAU, inesquecível e festejado educador, que o jovem é facilmente tragado pelo presente. O passado parece longe, irreal. E o futuro está distante, fora de seu alcance e de sua preocupação.

Cumpre reagir contra isso: o amanhã já chegou. "A presença do futuro é fundamental em educação". É na qualidade do seu presente que se decide, irremediavelmente, sua vida, sua felicidade. O adolescente, assim, deve descobrir que só tem uma vida e só dispõe de uma felicidade: não pode passar por outras "porque, na sua contingência, o ser humano não tem repetição". Decorre daí a necessidade de ultrapassar a perspectiva individual, para se reconhecer membro indispensável da comunidade humana. De sorte que pais e educadores devem considerar esses parâmetros. Certamente não é fácil educar. Os acontecimentos de hoje geram perplexidade e insegurança. Grassa o desamor, a discriminação, o vale-tudo nas relações sociais, a incerteza e a desesperança. Em outros tempos havia equilíbrio entre liberdade e autoridade. A liberdade era privilégio dos adultos. A criança e o adolescente, submissos. Rompido esse equilíbrio, a autoridade paterna é contestada de modo radical, "demolidos os antigos pilares em que ela se apoiava há séculos. Atualmente a juventude se permite qualquer audácia. Os diques foram dinamitados". Resultado: pais confusos. É preciso reencontrar o equilíbrio. Como não há educação neutra, a omissão é sempre um comportamento negativo. Educar é ensinar a viver. É aperfeiçoar o homem, na expressão de Santo TOMAZ DE AQUINO. "É lapidar o ser humano, com arte e amor, para, que ele possa vir-a-ser".

Após tantos escândalos da Previdência Social, do Orçamento, do Jogo do Bicho, da corrupção que derrubou o último Presidente mas ainda não extirpada, é natural o desencanto. Porém, a omissão, o anular o voto, o voto em branco são atitudes que agravarão a crise moral. Só uma autêntica cruzada cívica acerca da importância da cidadania, do fortalecimento das agremiações partidárias, da participação efetiva, pode salvar a Democracia. Este é um dos aspectos mais importantes da educação.

Convém insistir, com o Primaz do Brasil, D. Lucas Moreira NEVES:

"Nada é mais urgente para o Brasil de hoje do que a Educação. Promoção humana, libertação, transformação de estruturas e instituições, revolução: coisas certamente boas e válidas. Nenhuma delas, porém, se faz com analfabetos, com legiões de ignorantes, à margem da civilização e da sociedade. Ora, pesa sobre a juventude brasileira uma inquietante hipoteca, para o futuro, se este país não for capaz de oferecer aos seus jovens reais possibilidades de educação. Mais exatamente, pesa sobre o país inquietante hipoteca, pois a sorte dele depende da educação dos seus jovens. Uma nação não é digna da juventude que possui se e enquanto não se mostra capaz de educá-la. Mas, além de alfabetização, educação é instrução, transmissão de cultura, formação integral da personalidade".

Fala-se na relação do desenvolvimento econômico com o ensino fundamental. A nossa força de trabalho com educação secundária não atinge 40%, enquanto que, na França e no Canadá, o percentual chega a 99%.

Temos, hoje, mais de cem milhões de eleitores. Em 1988 havia 75.813.519. Destes, maiores de 16 anos, apenas 8% tinham mais de oito anos de escolaridade.

Conta, o Brasil, com cerca de 50 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos. Um terço de toda a população infantil da América Latina. Ou quase toda a população da França, nove vezes a da Suíça ou metade da do Japão. Destas, 10 milhões - a população do Chile - não freqüentam escolas.

Os excluídos não são cidadãos! Adolescentes, analfabetos, idosos têm a opção do voto. Como seria decisiva sua adesão maciça à causa da Democracia!

A construção da História de um povo é obra permanente, é missão perene, é empreitada indesviável e corajosa, a reclamar o esforço diuturno de todos. A sonhada pátria da Democracia, do Direito, da Liberdade e da Justiça depende de nós. Como falar em desenvolvimento, em trabalho, em paz, em saúde, em cultura, em estradas, em escolas, em regeneração dos costumes políticos, em progresso técnico e científico, sem participação?

3 A influência da família

"Os sentimentos e os costumes, que são base da felicidade pública, formam-se no lar" (MIRABEAU, Discours sur les successions).

"A família é o primeiro modelo das sociedades políticas: o chefe é a imagem do primeiro pai, o povo a imagem dos filhos" (Jean Jacques ROUSSEAU, Ou contrat social).

A ONU proclamou 1994, pela Resolução 44/82, de 08.12.89, como o "O ANO INTERNACIONAL DA FAMÍLIA", propondo como tema: "Família, Recursos e Responsabilidades num Mundo em Transformação". A reflexão proposta faz-nos concluir que é urgente rever princípios, hierarquizar valores, mudar as estruturas.

CHARBONNEAU, lembrou que "nossa sociedade é marcada por um ritmo destruidor: ela mergulha o homem nas ondas de um materialismo que de conceitual se fez existencial, gerando uma nefasta negação do Espírito. Criou cidades monstruosas, nas quais o indivíduo é esmagado por um urbanismo irracional. Ela propõe o consumo como primeiro objeto da esperança. Torna o amor impossível, o encontro cordial uma exceção, a solidariedade impraticável". Numa cultura de negação, que perdeu o próprio sentido das coisas, onde estão os valores antigos? Os do espírito, do compromisso, da fidelidade, da liberdade engajada?

Perpassa o País uma crise de auto-estima.

Síndrome que nem a sonhada conquista do tetracampeonato de futebol e a adoção do real como moeda forte serão o antídoto bastante se nós, brasileiros, não formos capazes de pensar, de discernir, de mudar, de acreditar em nossas potencialidades. Afinal, somos um povo inteligente, de boa índole, um caldeamento de raças, uma miscigenação que deu certo. Falta-nos civismo, orgulho de termos nascido aqui.

A falência das instituições, o desprestígio do Poder Público, a sucessão de escândalos, a incompetência administrativa, ferem a cidadania, constróem um desencanto generalizado. Essa situação mudará se não nos omitirmos.

Só a família, formadora de pessoas, pode reverter esse quadro. Partindo do berço, o processo educativo fará com que o adolescente tome consciência, crítica e profunda, da comunidade nacional onde está inserido. Toda uma cultura - é ainda o saudoso CHARBONNEAU quem fala - envolverá o adolescente e o momento nacional infalívelmente o marcará. Será indispensável estar apto a aderir ao que haja de valores certos na comunidade e a criticar serena, porém corajosamente, os contravalores que puder nela discernir. Cabe aos pais e educadores despertar no adolescente a consciência do momento da civilização em que vive, e armá-lo para que se adapte da melhor e mais digna maneira. "Cada vida é uma aventura individual".

Na quadra atual "a vida se decide entre os 15 e os 18 anos. Aos vinte tudo está praticamente decidido".

Dos pais e educadores se exige integridade: caráter, fidelidade, dignidade, equanimidade, coerência. Deles se espera, igualmente, uma sensibilidade social, traduzida em participação comunitária, em partilha e solidariedade. Pede-se-Ihes, igualmente, uma fé sem ingenuidade: racionalidade, atualização, abertura. Da mesma forma, opção ideológica, senso crítico e atuação positiva, se possível com filiação partidária. Enfim, autenticidade e postura ética.

Como se constata, educa-se preferentemente por osmose.

4 O papel da Justiça Eleitoral na construção da cidadania

"A força moral de um povo se mede pelo seu grau de cidadania."

Penso que o Judiciário Eleitoral não deve reduzir-se a mero processador de pleitos, seja registrando Diretórios e Comissões Executivas de agremiações partidárias, expedindo títulos, controlando a propaganda política, dirimindo dúvidas, nomeando mesários, recolhendo e contando votos ou diplomando os eleitos. Não! Esta Justiça especializada deve facilitar o exercício democrático e assumir-se como instrumento inspirador da cidadania.

Vivemos uma época de grandes transformações. O mundo se prepara para o início do Terceiro Milênio. Projeta-se a construção de aeronaves gigantes, para mais de 600 passageiros, e de edifícios com capacidade jamais sonhada - 4000 metros, para abrigar 700 mil pessoas. A informática continua revolucionando os serviços. Uma nova era se anuncia para a Humanidade. Ou nos reciclamos já "ou teremos perdido o bonde da História".

Em primeiro lugar impõe-se uma postura funcional nova. Prestamos um serviço que deve merecer o selo da "qualidade total". O atendimento aos cidadãos não pode ser desqualificado. Presteza, pontualidade, atenção, respeito, conforto - direitos do cidadão. Conclamá-lo ao exercício responsável da cidadania é de importância fundamental, pela credibilidade de que somos portadores. Seremos ouvidos porque a Justiça Eleitoral transcende interesses isolados. Na verdade somos um organismo transpartidário.

O primeiro passo são as metas a atingir. O segundo, não fugir, jamais, da Imprensa, Rádio e Televisão.

À proposta do voto branco ou nulo devem contrapor-se o Juiz, os Tribunais Eleitorais, com a autoridade que Ihes é inerente.

Não sejamos, contudo, ingênuos. A seara é imensa e o terreno pedregoso. O ideal seria garimpar a gleba fértil da adolescência, sempre idealista, corajosa, aberta. Abrir-se-á uma oportunidade ímpar de conscientização de adolescentes e jovens sobre a importância do voto como fator de reestruturação social, de resgate dos valores éticos. Com efeito, o voto é o instrumento válido de participação democrática que decide o modo como se pretende a condução da coisa pública em determinado período.

Foi assim pensando que o Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina deflagrou a Campanha "CIDADANIA UM DIREITO" que, em cinqüenta dias, alistou 167.000 adolescentes de 16 e 17 anos de idade, tendo logrado outros 100.000 novos eleitores, incluídas transferências.

Estado geograficamente pequeno, Santa Catarina conta, hoje, com 3.200.000 eleitores, numa população de menos de cinco milhões. São 11.247 Seções espalhadas em 83 Zonas.

Todas as regiões do Estado foram percorridas. O Presidente do Tribunal se reuniu com Juizes, Promotores, Prefeitos, Vereadores, Agremiações Partidárias, Igrejas, OAB, Clubes de Serviço, entidades ligadas à Família, autoridades educacionais, Universidades. Palestras e debates encontraram eco em todos os quadrantes, quando se pregou o fortalecimento da Democracia, a necessidade da participação de todos, a revitalização partidária, a insubstituível experiência do sufrágio universal.

5 Conclusão

"Cidadão consciente é o que se não deixa excluir, o que exerce seus direitos, sabe o que quer, tem objetivos e se organiza com outros para consegui-los" (João Edênio VALLE)

O exercício do voto é antes um direito que um dever. Infelizmente, nem todos assim o entendem.

Lembra o psicólogo-social Pe. João Edênio VALLE:

"Nossas origens escravocatas, nossos costumes e instituições políticas excludentes e inveteradamente clientelistas precisam ser superadas através do exercício consciente da cidadania que estabelece o primado do público sobre o privado, para garantir os verdadeiros direitos de cada pessoa e de todas as pessoas e para criar novas formas de relação das pessoas e das classes sociais entre si e destas com a sociedade civil organizada e o Estado" (Relações para a cidadania consciente, Família, liberdade e participação, EPB, 1987, p. 102).

Claro que as dificuldades econômicas, o aspecto da recessão, a proliferação dos bolsões de miséria, a favelização dos centros urbanos em decorrência de equivocada política agrária, os dez milhões de crianças fora das escolas, o analfabetismo, a promiscuidade dos cortiços onde se amontoam pessoas em mansardas desumanas, e tantas outras conhecidas mazelas obstaculizam o acesso à cidadania consciente.

Cumpre-nos, nada obstante, enfrentar todos os desafios. Nós, da Justiça Eleitoral, não construímos escolas, postos de saúde, redes de água e esgoto, estradas. Nem por isso ser-nos-ia lícita qualquer omissão, nos limites de nossa competência. E dentro deste balizamento julgo imprescindível valorizar a cidadania, incentivando a participação democrática, responsável, livre e soberana de todos os eleitores no pleito que se aproxima e naqueles que virão.

Ex-Presidente do TRESC.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 1, n. 1 (jul./dez. 1994).

 

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