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A (ainda) insuspeitada força da cidadania

Por: Francisco Xavier Medeiros Vieira

Assim como, graças à ciência médica, a expectativa de vida aumentou consideravelmente nos últimos cinqüenta anos, a democracia vem se fortalecendo, se bem que em espaço e avanços mais reduzidos. O Governo ainda não "é do povo", nem o povo participa do Governo, de forma lúcida e independente. As agremiações partidárias, via de regra, descumprem seus programas, confundem-se em suas metas. Quase sempre prevalece o interesse na conquista de uma fatia ou do próprio bolo do Poder. Os eleitores se deixam manipular, vítimas do marketing e da desinformação. Ideologia, a fonte e formação de idéias que identificam o modo de ser e de pensar, um programa a cumprir, isso só vale na hora do discurso, para iludir as pessoas. Aí estão as coligações extravagantes... Claro, nós, cidadãos, temos culpa. A maioria não se filia a partidos, não luta por seus ideais, marginaliza-se voluntariamente do processo democrático, que, por evidente, não se resume à disputa eleitoral, sem dúvida imprescindível no contexto.

Há, nada obstante, motivo para júbilo, mormente quando a sociedade civil se organiza, como sucedeu com a grande mobilização popular que colheu, sob as bênçãos da CNBB e participação da OAB, mais de um milhão de assinaturas em um projeto de lei. Resultado dessa manifestação da soberania do povo foi a edição da Lei n. 9.840/1999, a primeira de iniciativa popular na vigência do atual Pergaminho Fundamental, visando punir a corrupção eleitoral. Antes dela, a compra quase escancarada de votos, forma mais freqüente de delinqüência em tais disputas, configurava crime de apuração demorada. Com o novo diploma (art. 41-A), comprovado o delito, sujeita-se o candidato à cassação do registro ou do mandato (se já diplomado), em processo com tramitação rápida e execução imediata. Tentou-se, no Senado, ao que se sabe sem êxito, a modificação dessa lei, a fim de que eventual punição só viesse a ser aplicada depois do trânsito em julgado de sentença condenatória, esgotados os recursos até a instância derradeira, o que desvirtuaria o espírito moralizador daquele pergaminho.

Cumpre reconhecer o avanço dessa legislação. Na prática dos julgamentos, contudo, é questão que está a exigir o acompanhamento dos cidadãos, não só para se evitar linchamentos morais estimulados pelo poder político ou econômico e pela mídia comprometida, expondo inocentes à execração pública, mas também para que se garanta a efetividade das leis mesmo contra os poderosos.

Em meio século, o Brasil deu um salto qualitativo no aperfeiçoamento democrático. Nas eleições que se seguiram à ditadura Vargas (para não falar de períodos anteriores em que a cidadania era mais fortemente bisonha), era comum a fraude que os moralmente deformados aplicavam sem medo de punição. A compra de votos, pela força do poder econômico, era praticada em larga escala, sob os olhos vendados de Themis: eleitores sem consciência da cidadania formavam filas, noite adentro, nas vésperas dos pleitos, em casas de políticos e comitês de campanha, recebendo envelopes com as cédulas (dos candidatos e da Casa da Moeda). Havia, evidentemente, exceções.

Essa forma ostensiva foi abolida. Entretanto, há, ainda, os famosos "currais eleitorais", com seus todo-poderosos coronéis... Troca de favores, internações hospitalares, fornecimentos de dentaduras, passagens de ônibus, empregos, doações, promessas, tudo isso e muito mais intermediado por cabos eleitorais constitui nefasta violência contra a cidadania. É verdade que, no universo dos profissionais da política, encontramos idealistas, homens e mulheres de irreprochável formação moral e intelectual, vocacionados, capacitados para os cargos pleiteados ou já conquistados. Não é justo generalizar, como negativa, a atuação dos que se dedicam a esse múnus. O importante é sopesar as propostas e examinar o passado de quem as defende.

De todos os ramos do Judiciário, o Eleitoral é aquele que melhor estampa a cidadania. A Justiça comum, ressalvadas ilhas de excelência, confirma a ficção constitucional da igualdade perante a lei. Lenta, cara e elitista, está longe do povo. Na verdade, o pior mal do Judiciário não é, como se propala, sua crônica lentidão, mas a negação do acesso. Para vergonha dos catarinenses, nosso Estado é um dos três que, na Federação, descumprem a Constituição da República (em SC desobedecemos também a Carta Estadual) ao não criar e instalar a Defensoria Pública.

Espera-se muito da Reforma do Judiciário, há mais de um decênio percorrendo os escaninhos do Legislativo da União. Para frustração geral, a Reforma não enfrenta os verdadeiros obstáculos à democratização do Poder, à Humanização da Justiça. Preocupa-se com o "controle externo", súmulas "vinculante" e "impeditiva" e outras filigranas judiciais... Mesmo sem que ninguém ignore que a verdadeira "crise" se concentra em duas vertentes: na ausência de garantia do acesso e nas leis processuais (estas, como consabido, de solução infraconstitucional).

Por aí se vê que temos um longo caminho a percorrer. E, nesse passo, a Justiça Eleitoral poderia servir de paradigma, pela urgência com que soluciona as pendências levadas à sua apreciação: todos os prazos, peremptórios e preclusivos, impedem as conhecidas procrastinações tão a gosto dos chicanistas... De fato, as Cortes da Cidadania, mercê de suas reconhecidas qualidades, vêm demonstrando, com invejável credibilidade, que não é impossível vencer os desafios da modernidade.

Uma nova ordem social, centrada na dignidade do ser humano, delineia-se no horizonte. Mas a Nação só logrará tal status no momento em que, pelas políticas públicas, o subcidadão possa fazer seu upgrade para a cidadania. Cidadania que inclui séria reflexão sobre a necessidade premente de um ativismo cultural contra todos os tipos de violência que apequenam e até destroem a pessoa: a globo-colonização; a política econômica ensejadora da concentração da renda, exacerbando a desigualdade social; a dívida interna e externa, tantas vezes paga e seus "serviços" extorsivos; a corrupção; o sistema de saúde precário; a Educação, privilegiando os abonados; o Judiciário, com suas conhecidas carências; o sistema prisional, triste negação dos direitos humanos; a tortura; o terrorismo; o racismo; a agressão ao meio ambiente; a escravidão em seu estilo moderno; o trabalho infantil; o desemprego; a violência sexual; o preconceito; a violação dos direitos dos índios; a ditadura da mídia e tantos outros.

Inspirados na célebre alegoria da caverna, de Platão, devemos abrir os olhos, rebentar os grilhões que nos aprisionam, fugir das sombras, emergir da caverna subterrânea para desfrutar, enfim, da liberdade. Mas é necessário, também, impedir que os habitantes da caverna, atavicamente omissos e incrédulos, que nela teimam em permanecer, acabem por matar nossos ideais de cidadania, como fizeram com seu companheiro de trevas, agora liberto, pelo crime de haver descoberto o sol, as flores, a vida, a liberdade, o mundo até então desconhecido...

A (ainda) insuspeitada força da cidadania haverá de destruir esses muros, pela força das idéias e da mobilização social e, sobretudo, pela prática corajosa e honesta dos postulados que honram a Civilização.

Desembargador aposentado, ex-Presidente do TRESC e do TJSC. Membro da Academia Catarinense de Filosofia.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 11, n. 1 (jan./jun. 2004).

 

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