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Íntegra

A ação impugnatória de mandato eletivo e o segredo de justiça

Por: Volnei Ivo Carlin

Introdução

A Constituição, como regra maior, admite a ação de impugnação de mandato eletivo, que tem pressupostos estabelecidos no Código eleitoral (Lei n. 4.737, de 15.07.65), por abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

Na distribuição do poder jurisdicional, a Lei Magna fixa certos pontos em critério eleitoral que merecem reflexão especial, numa lógica do razoável, como é o caso, verbi gratia, dos arts. 14, § 11, e 93, IX, que estão, aliás, intimamente conectados.

As normas constitucionais em referência exaurem, per se, a matéria, descabendo, num raciocínio jurídico, complementação por lei ordinária. Bastam as interpretatio sistemática e teleológica ao caso concreto1. É o dinamismo formal de um ordenamento jurídico, no qual as normas se apoiam e se complementam mutuamente.

Há que se observar, contudo, que a pretensão de uma justiça eleitoral plena e perfeita é apenas um ideal, que possui, muitas vezes, finalidade eminentemente política, embora o objetivo maior seja o de resguardar os legitimamente eleitos contra o arbitrário, o despotismo e as próprias fraquezas dos juízes eleitorais de primeiro grau.

A melhor qualificação dos serviços públicos - através de uma orientação capaz e pedagógica, além da adoção de teorias fundamentais de interpretação constitucional, no melhor estilo de Jean Jacques Rousseau e John Locke - somente irá robustecer a confiança no administrador da Justiça Eleitoral.2

1 Ação Impugnatória de Mandato Eletivo

Procura-se conseguir um resultado constitucionalmente correto através de um procedimento racional e controlado, criando, desse modo, certeza e previsibilidade jurídicas.

A Constituição criou esta actio (art. 14, § 10), por abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, como já mencionado. Ela segue o rito ordinário e tem como requisito essencial a apresentação imediata das provas conclusivas, sendo proposta perante a Justiça Eleitoral, no prazo de quinze dias contados da diplomação3.

Trata-se, na verdade, da absorção pela Lei Maior de matéria versada pelo Código eleitoral (Lei n. 4.737, de 15.07.65). Houvera sido melhor, adianta Celso Ribeiro Bastos, que o texto constitucional inovasse, propiciando alguma sorte de ataque à ilegalidade no curso do pleito e com chances de julgamento antes da diplomação. A superveniência desta cria como que um fato consumado de difícil remoção jurídica4. O objetivo da ação é o da cassação do mandato impugnado, sem qualquer natureza penal.

Quanto à prova, ensina o Tribunal Superior Eleitoral-TSE, "é de difícil apuração, (...) embora os indícios constituam meio de prova tão válido como qualquer outro", e ainda que o objetivo da lei é punir, "não só aqueles que praticarem o abuso, como, também, e principalmente, o que obteve o benefício"5. A questão, assim, é de valoração dessa prova6.

a) Princípio da Publicidade Absoluta dos Julgamentos

A Constituição pátria de 1988 insere, como regra geral, o princípio da publicidade ampla de todos os julgamentos do Poder Judiciário (art. 93, IX), sob pena de nulidade. Aliás, essa orientação é politicamente consentânea ao regime democrático (art. 52, itens LX e XXXIII), abrangendo, também, o conhecimento da conduta interna dos agentes públicos ao abandonar o obscurantismo administrativo.

A publicidade deve ser encarada como a possibilidade de quaisquer pessoas chegarem aos atos processuais que se realizem a portas abertas, como a audiência (art. 444, CPC), nos juízos inferiores, e os julgamentos, nos juízos superiores7 ; também são exemplos o livre acesso de qualquer pessoa aos cartórios dos juízos e secretarias dos tribunais, a fim de consultar autos, tanto em andamento como findos, bem como obter certidões ou cópias das peças em que tiver interesse8.

Houve, nota-se, preocupação em alterar a tradição do secreto, na medida em que se passou a mostrar o contrário para garantir o direito dos administrados, consistente na transparência ou visibilidade9.

b) Segredo de Justiça ou Publicidade Restrita

À regra do artigo da publicidade opõem-se as exceções a que o texto alude. Nos casos em que a relação jurídica versada no processo o exigir, o feito correrá em segredo de justiça, como causa de publicidade restrita, e o princípio inerente à publicidade absoluta dos atos processuais, então, não incide10. Cabe ao juízo pelo segredo de justiça zelar11.

O art. 14, § 11, da Constituição, a propósito, deve ser entendido restritivamente, ao afastar o princípio da publicidade em favor da defesa da intimidade, visto ser um conceito obviamente flexível12.

Doravante, a "defesa da intimidade" exige que todo processo de impugnação de mandato eletivo tramite em segredo de justiça, aumentando, pois, o poder discricionário do julgador, que é menos amplo do que aquele que consta no Código de processo civil e que restringe a incidência do princípio da publicidade dos atos processuais a somente dois casos (art. 155, incisos I e II, CPC) e que tem aplicação, aqui, supletiva13.

No entanto, a Constituição não explicita a extensão do segredo, afetando, assim, todos os atos praticados no processo e atendida a moral pública do candidato eleito.

2 Garantia Constitucional

Na forma do já citado § 11 do art. 14 da Carta Constitucional, todo o curso do processo, em suas diversas fases que objetivam apurar uma infringência ao princípio da moralidade fraudando a eleição, deve ser procedido em segredo de justiça.

a) Sistema Eleitoral

O objetivo do atual sistema eleitoral é excluir da contenda todos os que contribuíram e/ou foram beneficiados pela fraude, corrupção ou abuso do poder econômico ou político, pois o anseio geral é que haja eleições legítimas em que se preserve a igualdade da disputa, resguardando o interesse público de lisura eleitoral, sua normalidade e legitimidade

A razão do segredo de justiça, nas várias etapas da progressão do processo, não pode ser, em sua tramitação, divulgada pela imprensa, uma vez que ele começa a vigorar a partir de sua distribuição. Ele é observado por causa da grande repercussão que teria, em virtude dos nomes envolvidos, tanto que, inúmeras vezes, o candidato é absolvido, sem que afete o feito sua futura vida pública14. Ordena-se em razão de matéria que humilhe, rebaixe, vexe ou ponha o impugnado em situação de embaraço. O Juiz e o Tribunal não podem, nesses casos, tornarem-se meros spectateur engagé, desinteressados da vida do candidato eleito e impugnado.

No que se refere à consulta aos autos e obtenção de cópias ou certidões, a relação jurídica fica restrita à parte e aos advogados, que poderão, em cartório ou secretaria, examiná-los, folha por folha. Praticam-se, por isso, todos os atos processuais, a portas fechadas, que passam a não ser acessíveis ao público.

b) Orientação vigente no TSE

De outro lado, a orientação recente do egrégio Tribunal Superior Eleitoral-TSE, quanto ao disposto no art. 14, § 11, da Constituição Federal, implica, tão-somente, a tramitação do processo em segredo de justiça (e não o seu julgamento), que deve ser, imperativamente, público, a teor do art. 93, IX, da mesma Carta15.

Ementa:

"Em tal caso, o julgamento da causa é público, a teor do disposto no art. 93, IX, da Constituição. Mas cabe também à parte zelar pela tramitação do feito em segredo de justiça (Constituição, art. 14, § 11), competindo-lhe, nos momentos próprios, insurgir-se contra a não-tramitação. A falta de alegação da nulidade acarreta a preclusão. Sem prova de prejuízo, nulidade não há."

O julgamento da ação de impugnação de mandato eletivo, portanto, é público, conforme ressai das disposições inscritas nos arts. 14, § 11, e 93, IX, da Constituição Federal, e essas devem ser analisadas de forma articulada, demandando uma verdadeira técnica de implementação, mas tendo sempre em mente a interpretação como um todo, a compreensão global do seu sentido16.

c) Regra de Pas de Nullité Sans Griet

Assim, sendo o julgamento público (art. 93, IX), como se sabe, qualquer nulidade de ato processual deve ser alegada na primeira oportunidade em que operou a violação ao segredo de justiça, sob pena de preclusão. Não se apontando a falta e o prejuízo (que deve ser provado), não deverá ser declarada nulidade, em homenagem à regra de que pas de nullité sans grief.

d) Princípios de Aplicação Imperativa

Diga-se, ademais, que, mesmo seguindo a actio sua: tramitação em sigilo, devem ser assegurados, ao impugnado, sempre, os princípios do contraditório e ampla defesa, além da cláusula do devido processo legal (due process of law) e da presunção de inocência. É sempre importante destacar, enfim, que a Justiça Eleitoral, quando examinar ações dessa natureza, há de se prender aos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito de que tanto nos fala Bobbio17.

Não basta o candidato ser eleito: é necessário que sua eleição seja sem mácula e revestida do caráter de legitimidade18.

Considerações finais

O interesse público genérico (art. 93, IX) - interesse transindividual - cede ante a possibilidade de lesão a direito constitucional específico (art. 14, § 11 ). Isso porque a presunção de correção da prestação jurisdicional específica é bem menos expressiva do que a da escolha do titular do mandato impugnado (art. 14, § 10), pela vontade manifestada pelo sufrágio universal, embora a preservação desta última deva ser sempre o principal escopo do Direito Eleitoral.

Com efeito, quando a Constituição autoriza que se proceda em segredo à ação de impugnação de mandato eletivo (art., 14, § 10), sem dúvida possível, pode-se dizer, como dito no § 11, que o interesse predominante é do impugnado, pois é o que mais avulta à primeira vista19. Não é possível, porém, menosprezar o outro dado, igualmente referido (art. 93, IX), de que macula não mais o interesse do impugnado mas, sim, o interesse público, na realização do Direito através do processo, por meio do qual o Estado visa, na sua função jurisdicional, à pacificação social com a resolução dos conflitos20.

A visão científica a ser seguida, adotada em seu ponto nuclear e consoante ensinamento do Tribunal Superior Eleitoral- TSE (Recurso Ordinário no 32 - Classe 27ª - Rio de Janeiro), é a aplicação dos arts. 14, § 11 e 93, IX, da Constituição Federal, que devem ser interpretados em necessária, íntima e harmônica combinação21. Consiste, sobretudo, em colaborar, de maneira decisiva e preferencialmente concomitante, fazendo desaparecer a distância entre os princípios regentes da publicidade dos atos processuais na ação de impugnação de mandato eletivo e a realidade do julgamento, emprestando vida aos princípios da confiança e da probidade administrativa, ao mesmo tempo em que dignifica normas, valores e pessoas22.   

Notas

1 HESSE. Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid : Centro de Estudios Constitucionales. 1992. p. 36.

2 Ensina Maurício Antônio Lopes" "A função da moralidade administrativa é aperfeiçoar a atividade pública e de fazer crescer no administrado a confiança no administrador" (in: Ética e administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 70).

3 ROSAS, Roberto. Direito processual constitucional. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 164-5. Para eventual discussão: COSTA, Tito. Recursos em matéria eleitoral. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 110-7.

4 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989. v. 2, p. 590-2.

5 Brasil. Tribunal Superior Eleitoral. Ação de impugnação de mandato eletivo. Segredo de Justiça. Recurso Ordinário n. 32. Márcia M. D'Avilla Cibilis Viana e Diretório Regional do PDT versus Procuradoria Regional Eleitoral e Carlos Alberto T. Campista. Relator: Ministro Nilson Naves. 5 de maio de 1998. Diário da Justiça [da República Federativa do Brasil], Brasília, v. 73, n. 96-E, p. 72, 22 de maio de 1998. Seção 1.

6 Consulte-se, acerca das origens, legitimidade, cabimento, competência e relação de causalidade, a obra específica de Lauro Barreto, intitulada Investigação judicial eleitoral e ação de impugnação de mandato eletivo São Paulo: Edipro, 1994. p. 33-59.

7 Utiliza-se, aqui, o termo publicidade como transparência, na acepção de Bobbio, como "visibilidade do poder", "governo democrático", ou "governo de Poder Público em público". In: O futuro da democracia, na defesa das regras do jogo. Tradução por Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 156-60. Alguns estudos histórico-comparativos sobre o tema são mencionados nas notas de Pinto Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1992. p.12-3.

8 ARAGÃO, E. O. Moniz de. Comentários ao código de processo civil. 8. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1995. p. 15-7.

9 MEOAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 222-4.

10 Não se deve esquecer, em particular, o papel onipresente do princípio geral da publicidade em todas as ações.

11 NIESS, Pedro Henrique Távora. Ação de impugnação de mandato eletivo. São Paulo: Edipro, 1996. p. 56.

12 ARAGÃO, E. O. Moniz de. Op. cit. , p. 16.

13 NIESS, Pedro Henrique Távora. Op. cit. , p. 106.

14 CRETELLA Júnior, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1989. v. 2, p. 1.113.

15 Brasil. Tribunal Superior Eleitoral. Ação de impugnação de mandato eletivo. Segredo de Justiça. Recurso Ordinário n. 32. Márcia M. D'Avilla Cibilis Viana e Diretório Regional do PDT versus Procuradoria Regional Eleitoral e Carlos Alberto T. Campista. Relator: Ministro Nilson Naves. 5 de maio de 1998. Diário da Justiça (da República Federativa do Brasil], Brasília, v, 73, n. 96-E, p. 72, 22 de maio de 1998. Seção 1.

16 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed, São Paulo: Malheiros, 1996. p.394

17 BOBBIO. Norberto. A era dos direitos. Tradução por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro : Campus. 1992. p. 69.

18 Uma discussão mais completa e de agudo debate jurídico-político. acerca da essência da legitimidade. encontra-se inserida na obra de José Afonso da Silva: Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1982. p. 34-50, para quem "a legitimidade deve ser compreendida como correspondente a um querer social predominante no momento".

19 A Constituição se deve realizar na acepção emprestada por José Joaquim Gomes Canotilho ao termo: a de que se tornem juridicamente eficazes suas prescrições. In: Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina. 1993. p. 143.

20 SUNDFELD. Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros. 1993. p. 20.

21 Justificado é, portanto, o enfoque adotado pelo TSE, onde se pode adaptar, entre outras, a lição de Mauro Cappelletti: "Nous sommes donc en présence de la responsabililé de l'appareil judiciaire, en quelque sorte séparément des fondements de la responsabilité des juges particuliers ...". In: Juizes irresponsáveis? Porto Alegre: Fabris, 1989. p. 53. nota n. 81.

22 Sobre valores dominantes na Sociedade. consultar a clássica obra de Chaim Perelman: Ética e direito. Tradução por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins.

Juiz efetivo do TRESC. Juiz de Direito. Mestre em Direito pela UFSC. Doutor em Direito (UST/França). Pós-Doutor em Éticas públicas (IAEJ/Paris). Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado do CPGD-UFSC e Professor convidado do Curso de Mestrado em Direito da UNIVALI.

Publicado na RESENHA ELEITORAL - Nova Série, v. 5, n. 2 (jul./dez. 1998).

 

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